à procura de uma linguagem inabitável louca desgarrada é ela que traz água aos moinhos
o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)
sexta-feira, 21 de outubro de 2016
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
Estamos aqui talvez para dizer água
As palavras
desistem
São poucas eu
muito
Apesar de
ficar longe
De mim esse tempo todo
O silêncio
voz dos introvertidos
Pode durar
dez anos
O resto são
fragmentos
De uma longa tarde
Ou das graves
sombras do rio
Por onde me
seguem
Os líquidos passos da morte
Meu caminho
ondeia & despista
Sabe eu vivo
sempre nas margens
Sob a chuva
vermelha das metáforas
Apenas um dos
meus pés está no fogo
Perto daqui
não há consolo
As gaivotas
no inverno fogem para as águas doces
Nunca retornei
Ney Ferraz Paiva
Imagem: Marepe
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
SOBRETUDO NO INSTANTE EM QUE O VENTO DE OUTUBRO
Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
vem com os dedos de geada flagelar os meus cabelos
e eu, preso pelas garras do sol, caminho sobre as chamas
e estendo sobre a terra uma garra sombria
junto à orla do mar, ouvindo o ruído dos pássaros
e o crocitar do corvo nas ramarias de Inverno,
é que mais estremece o meu coração com a sua voz
e se derrama o sangue silábico ou as suas palavras perdidas
Assim encerrado numa torre de palavras eu desenho
sobre o horizonte, ao caminhar como as árvores,
os perfis verbais de mulheres e, num parque, as filas longas
das crianças cujos gestos se assemelham a estrelas.
Há quem pretenda que eu te crie das faias vocálicas,
das vozes dos carvalhos ou que te conte uma narrativa
a partir das raízes de muitas províncias espinhosas,
e há quem pretenda que te crie das palavras de água.
Através de um vaso de fenos, o relógio que oscila
pronuncia a palavra das horas, o sentido enervado
paira sobre o círculo do pêndulo, declama a manhã
e vem anunciar no cata-ventos a tempestade.
Há quem pretenda que dos sinais do prado eu te crie;
a erva memorável que me diz tudo o que já sei
rompe através do olhar com o Inverno cheio de vermes.
E há quem pretenda que eu te conte os pecados do corvo.
Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
(há quem pretenda que te crie de uma outonal magia,
dos sonoros montes do país de Gales ou da baba das aranhas)
vem com o punho dos bolbos flagelar a terra,
há quem pretenda que te crie com palavras sem coração.
O coração esgota-se estremecendo com a fuga
do sangue químico, consciente de como a agitação chega.
Junto à orla do mar, escuta as negras vogais dos pássaros.
Dylan Thomas
Tradução de Fernando Guimarães
vem com os dedos de geada flagelar os meus cabelos
e eu, preso pelas garras do sol, caminho sobre as chamas
e estendo sobre a terra uma garra sombria
junto à orla do mar, ouvindo o ruído dos pássaros
e o crocitar do corvo nas ramarias de Inverno,
é que mais estremece o meu coração com a sua voz
e se derrama o sangue silábico ou as suas palavras perdidas
Assim encerrado numa torre de palavras eu desenho
sobre o horizonte, ao caminhar como as árvores,
os perfis verbais de mulheres e, num parque, as filas longas
das crianças cujos gestos se assemelham a estrelas.
Há quem pretenda que eu te crie das faias vocálicas,
das vozes dos carvalhos ou que te conte uma narrativa
a partir das raízes de muitas províncias espinhosas,
e há quem pretenda que te crie das palavras de água.
Através de um vaso de fenos, o relógio que oscila
pronuncia a palavra das horas, o sentido enervado
paira sobre o círculo do pêndulo, declama a manhã
e vem anunciar no cata-ventos a tempestade.
Há quem pretenda que dos sinais do prado eu te crie;
a erva memorável que me diz tudo o que já sei
rompe através do olhar com o Inverno cheio de vermes.
E há quem pretenda que eu te conte os pecados do corvo.
Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
(há quem pretenda que te crie de uma outonal magia,
dos sonoros montes do país de Gales ou da baba das aranhas)
vem com o punho dos bolbos flagelar a terra,
há quem pretenda que te crie com palavras sem coração.
O coração esgota-se estremecendo com a fuga
do sangue químico, consciente de como a agitação chega.
Junto à orla do mar, escuta as negras vogais dos pássaros.
Dylan Thomas
Tradução de Fernando Guimarães
Imagem: Francesca Woodman
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Visão
de São Paulo à noite
Poema
Antropófago sob Narcótico
Na
esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende
velas no meu crânio
há
místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um
silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo
azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se
como raízes
Maldoror
em taças de maré alta
na
rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a
cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria feroz na plena
alegria das praças, meninas esfarrapadas definitivamente fantásticas
há
uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua
não se apoia em nada
eu
não me apoio em nada
sou
ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias
simples fervem minha mente enlouquecida
há
bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um
sino que não toca
há
anjos de Rilke dando o cu nos mictórios
reino-vertigem
glorificado
espectros
vibrando espasmos
beijos
ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras
tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos
na primeira infância
os
malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu
vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo
roubando a caixa dos milagres
Chet
Baker ganindo na vitrola
eu
sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas
do meu cérebro
eu
vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas
homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e abrem-se em mim como lua gás
rua árvores lua medrosos repuxos
colisão
na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me
como uma tômbola
a
cabeça afundando-me na garganta
chove
sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me nas tripas, meu amor, eu
carrego teu grito como um tesouro afundado quisera derramar sobre ti todo meu
epiciclo de centopeias libertas ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas,
torvelins de vergonha,
correias
de maconha em piqueniques flutuantes
vespas
passeando em voltas das minhas ânsias
meninos
abandonados nus nas esquinas
angélicos
vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre
a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o
Estrondo
Roberto Piva
Ernesto Timor
quinta-feira, 13 de outubro de 2016
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
Orides Fontela
quinta-feira, 6 de outubro de 2016
MÍMESIS
quando esqueço
as grandes
assombrações
e beijo teu regaço
escuro, tua pequena
pele surpreendente
temo que o meu
rosto se desfigure e volte
a imitar
os mistérios da
noite e a trágica história do malabarista
ana cristina cesar, antigos e
soltos - poemas e prosas da pasta rosa, são paulo: ims, 2008
imagem: ney ferraz paiva, "as grandes assombrações", colagem, 2009
domingo, 25 de setembro de 2016
Testamento do Homem Cansado
Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim...
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.
Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.
Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,
deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.
Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim...
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.
Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.
Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,
deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.
Carlos Pena Filho
Imagem: Dionysos
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
disseram: mande um
poema para a revista onde colaboram todos
e eu respondi:
mando se não colaborar ninguém, porque
nada se reparte:
ou se devora tudo
ou não se toca em
nada,
morre-se mil vezes
de uma só morte ou
uma só vez das
mortes todas juntas:
só colaboro na
minha morte:
e eles entenderam
tudo, e pensaram: que este não colabore nunca,
que o demônio o
leve, e foram-se,
e eu fiquei
contente de nada e de ninguém,
e vim logo
escrever este, o mais curto possível, e depressa, e
vazio poema de
sentido e de endereço e
de razão deveras,
só porque sim,
isto é: só porque não agora
HERBERTO HELDER, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.
Imagem: Igor Malaschenko, da série "back to babel - back and forth from babel", 2015.
domingo, 11 de setembro de 2016
EM ALGUM LUGAR SECO E ENORME, 1949
Você e eu vestidos confortavelmente observando a linha reta
enquanto no céu as nuvens correm como no filme
que às vezes Você sonha fazer comigo sem os filhos olhando
a linha reta entre dois amarelos que antes foram
a massa amarela e que nunca saberemos em que demônios
se converteram (nem nos importa!) Você e eu na casa alugada
sentados junto ao janelão a verdade dizes é que poderia
chorar por toda a tarde a verdade é que não tenho fome e sim
um pouco de medo de embebedar-me outra vez sentados junto
a um janelão reto, não? enquanto atrás de nós
os pássaros saltam de galho em galho e a luz da cozinha
pisca Você e eu em uma cama, ali estamos! Observando
as paredes brancas – dois contornos que se misturam – ajudados
pela luz da rua e pela luz de nossos corações frios
que se negam a morrer.
enquanto no céu as nuvens correm como no filme
que às vezes Você sonha fazer comigo sem os filhos olhando
a linha reta entre dois amarelos que antes foram
a massa amarela e que nunca saberemos em que demônios
se converteram (nem nos importa!) Você e eu na casa alugada
sentados junto ao janelão a verdade dizes é que poderia
chorar por toda a tarde a verdade é que não tenho fome e sim
um pouco de medo de embebedar-me outra vez sentados junto
a um janelão reto, não? enquanto atrás de nós
os pássaros saltam de galho em galho e a luz da cozinha
pisca Você e eu em uma cama, ali estamos! Observando
as paredes brancas – dois contornos que se misturam – ajudados
pela luz da rua e pela luz de nossos corações frios
que se negam a morrer.
ROBERTO BOLAÑO
Imagem: Eugenio Recuenco
quinta-feira, 8 de setembro de 2016
Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.
Malcolm Lowry
Imagem: Ernesto Timor, 2012-2014
segunda-feira, 5 de setembro de 2016
SEM TÍTULO
Agora teu corpo é sacudido por
pesadelos. Já não és
o mesmo: o que amou,
que se arriscou.
Já não és o mesmo, ainda que
talvez amanhã tudo se desvaneça
como um sonho ruim e comeces
de novo. Talvez
amanhã comeces de novo.
E o suor, o frio,
os detetives erráticos,
sejam como um sonho.
Não desanimes.
Agora tremes, mas talvez
amanhã tudo comece de novo.
Roberto Bolaño
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Tempos Modernos, Charles Chaplin, 1936
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