o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 24 de maio de 2016

Clarice é chamada ao telefone


 Alô, Clarice, é você?..

Eu estava pensando, ou melhor, eu estava tentando pensar sobre você e a sua escrita, alguma coisa a partir de Maurice Blanchot… mas o pouco que pude se reduziu à minha escuta longeva de você mesma.

Como? Há quanto tempo nos falamos? Você não se lembra? Desde aquela primeira vez na escola, quando você veio, ou melhor, trouxeram o livro. Nós ainda líamos na escola. Aquela foi a sua vez. A primeira. E diante do livro aberto eu te achei bem esquisita, lia e não entendia nada. Naquela época eu tinha dez pra onze anos, momento em que começava a experimentar a sensação de estar e não estar; de distância com respeito ao que me rodeava; de indefinida fragilidade. Era minha vez de viver o exílio: a minha infância estrangeira em países distantes. Quando criança somos sempre todos viajantes.

Cúmplices?… Sim, cúmplices!

(Tratava-se do livro Água viva, lançado em agosto de 1973. Clarice tinha pela primeira vez um livro inteiramente entregue à desocultadora materialidade da linguagem.)


Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavraa entrelinhamorde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.



— —

Clarice, hoje se sabe bem, o problema enfrentado por você era o de como escrever numa língua (fosse o português, o inglês ou até mesmo o russo) abrindo brechas que lhe permitissem remoldar essa língua e reconstruir seu pensamento. O contato com a obra dos autores de língua inglesa, sua rede de afinidadesem especial Katherine Mansfield e Virginia Woolfpara tanto foi decisivo: através de uma prática de leitura, escrita e tradução. E nesses termos, escrever a partir apenas da escrita, colocou você ainda na categoria de uma anunciante da palavra. De um mundo para o qual o principal resíduo de memória é a palavra. O testemunho. Como em Kafka, sobretudo…


O que? Sim, sei, sei, você detesta todas essas aproximações. Perdoe-me. Estou quase repetindo a estrutura de uma crítica que você rejeitava ativamente. Quando se apontou a náusea sartriana para demonstrar a estranheza latente de sua obra…

É, você não estava interessada nas engrenagens filosóficas existencialistas. Para você era mais um traço de inadaptação das personagensas que querem e não querem; as que mostram e não mostram; as que recuam a cada passo que tentam dar adiante. Conteúdo e forma a se imiscuir. Clarice para construir sua própria língua dentro da língua brasileira terá que passar por outras línguas e por outras poéticas e narrativas por meio da revisita à ficção já escrita numa língua estrangeira. Que poderá ir se metamorfoseando a seu corpo de mulher como também conter a sua assinatura. Produzir uma dicção própria, que não se distancie da sua necessidade de sobrevivência, de produzir brechas, espaços de respiração e, ao repetir o gesto de escrita kafkiano, inscrever-se também numa espécie de genealogia, o que é decisivo para que qualquer pretendente se torne um escritor…
(Clarice, pela sua relação com o passado ou fazendo contas com ele, nunca pretenderia escrever como os russos modernos, nem como palavra de ordem, nem como revoluçãosua escrita foi, isto sim, permanentemente radicalsem ser feroz, nem implacávele ao mesmo tempo fina, tênue, precisa como um estilete).
— -

Olha, Clarice, você na Suíça. Você achou mesmo bem espantosas aquelas mulheres com chapéus espalhafatosos?



Ah, contida Clarice… Eu estava pensando esses dias na sua estada em Berna e fiz um poema. Procuro conferir ao corpoque não se separa da dimensão da escritaum lugar privilegiado.


ABOMINÁVEL CLARICE

Esquiando na Suíça
Avessa a qualquer exagero
Delicado difícil equilíbrio
Não pisoteia a neve
Não espera um guia
Consegue parar fixa
Leve parece meditar
A face barbeada da
Mulher barbada tão
Abominável como um sorriso
Para que sombra se evade?
Leva o incerto na esportiva

Oi, Clarice, diga… Sim, sim, o mundo pegava fogo e você esquiava na Suíça (risos). Kafka não teria sentido o mesmo em relação à guerra? Ele o descreve com suposto descaso em seu diário: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, escola de natação”. Ele nadava, você esquiava. Temos cada um a sua forma de alienação.
Sim, sim, eu sei, você preferia dizer “pulsação estranha”.
Olha, depois você me diz o que achou do poemaque você anda ocupada, fadigada, é claro.

O que? Que diferente de Kafka, em A paixão segundo G. H. sua metamorfose propicia não a transformação num inseto gigantesco e sim que o inseto seja provado, deglutido…

(Estamos sempre de volta ao quarto de Gregor Samsa para vivenciar a mesma irreversibilidade da transformação. Mas para Clarice escrever é comer o interior da barata. Experimentação. Autoconhecimento. Liberdade……………) (nesse ponto a ligação cai……………)

No túmulo de Clarice não há data de falecimento. Ao que parece ela saltou também essa etapa. Nesse ponto ela corrige Ângela Parlini (ou será Ângela Parlini a me corrigir?): “Nãopara falar sinceramentenão permito que o mundo exista depois de minha morte. Dou remorsos a quem eu deixar vivo e vendo televisão, remorsos porque a humanidade e o estado de homem são culpados sem remissão de minha morte.” Para Clarice morte e vida sempre se embaralharam, se misturaram num mesmo mistério. Ela nasce dia 10 e morre dia 9. Como pode uma pessoa ser e não estar? Se ainda nem havia deixado de escrever, se sabia que nunca deixaria. Um sopro de vida: pulsações (1978) será lançado quando já está completamente livre, abandonada ao proibido.
Claricedespadronizada.

Clariceconsternada.

Clariceassustadiça.

A sorte vem, cedo ou tarde, de voltar ao nuncanada.

Sim, você me disse para não escrever mais “num tempo etc.”, não vou realmente mais dizer “num tempo”porque nunca se sabe direito que tempo é agora. O que se consegue fazer como poeta, o que se pode fazer como poeta sem cair no retrospectivo ou no resgate, é evocar, lembrar.

Lembro agora aquela sua última entrevista à tevê Cultura, em novembro de 1977. Há um pequeno trecho no qual você se refere a um conto seu sobre o José Rosa de Miranda, o mineirinho, morto pela polícia do Rio de Janeiro com 13 tirosVocê diz que ao passo que os tiros são disparos 1–2–3–4–5–6–7–8–9–10–11–12, finalmente, no 13º você é atingida. “É, suponho que é em mim”. Quando a situação nos reduz a uma pessoa qualquer. Isso é o intolerável.


A literatura é uma religião. Mas há certo número reduzido de escritores que não se rende à celebração de nenhum dos cultos literários. Clarice nem mesmo chegava a seguir a liturgia própria do escritor, muito menos a do autor. Acreditava que escrever era comer o interior da barata. Definiu a escrita por um ângulo antropófago ainda mais absurdo e desconcertante que Oswald: Tomai e comei a barata.

Lúcio Cardoso





Amiga de Lúcio Cardoso, autor que não só foi um dos primeiros a comer da barata como integralmente, de cabo a cabo, em Crônica da Casa Assassinada(1959) se misturou às secreções selvagens da existência para alcançar, a partir dessa insaciabilidade, uma escrita que é rebelião e catástrofe…
Cúmplices?… Sim, muitos cúmplices!






Atingida pelo 13º tiro ela não quer morrer. Uma escritora não canonizada, truculentamente não morta, se fazendo, refazendo, sempre por nascer.
Comei da barata!

Ney Ferraz Paiva

domingo, 22 de maio de 2016

 SÍSIFO


Fazer rolar
a pedra, sempre a mesma,
para cima do monte,
sempre o mesmo.
O peso da pedra aumentando,
a força de trabalho diminuindo
com a subida.
Empate ante o cume.
Corrida com a pedra,
que rola
monte abaixo
muitas vezes mais rápido
do que ele, trabalhando,
a fazia rolar
monte acima.
O peso da pedra
aumentando relativamente,
a força do trabalho
diminuindo relativamente
com a subida.
O peso da pedra
diminuindo absolutamente
com cada movimento monte acima,
mais rápido
com cada movimento monte abaixo.
A força de trabalho
aumentando absolutamente
com cada passo de trabalho
(fazer rolar a pedra monte acima,
correr antes, ao lado, atrás da pedra monte abaixo).
Esperança
e decepção
Arrondamento da pedra
Desgaste recíproco
de homem, pedra, monte.
Até o clímax
sonhando:
Liberação da pedra
do cume alcançado
para o abismo do outro lado.
Ou
até o temido ponto final da força
diante
do cume não mais alcançável
Ou até o ponto zero imaginável:
ninguém
movimenta
nada
numa planície.
PEDRA, TESOURA, PAPEL.
PEDRA AFIA TESOURA
TESOURA CORTA PAPEL
PAPEL FERE PEDRA






Heiner Müller, Tradução: Walter Schorlies, colaboração: Márcio Meirelles
Imagem: ney ferraz paiva, "artistas e linguagens ascendem e caem" colagem, 40 x 30cm, 2016

domingo, 15 de maio de 2016

 A CRUZ DE FERRO


Em abril de 1945 em Stargard, Mecklenburg, um comerciante de papéis decidiu matar a tiros sua mulher, sua filha de quatorze anos e a si próprio. Através de clientes tinha ouvido falar do casamento e do suicídio de Hitler.
Oficial da reserva na Primeira Guerra, ainda tinha um revólver e dez balas de munição.
Quando sua mulher saiu da cozinha com o jantar ele estava de pé junto à mesa limpando a arma. Trazia a Cruz de Ferro na lapela, como em dias de festa.
O Führer tinha escolhido o suicídio e ele manteria a lealdade, explicou respondendo à sua pergunta. Se ela, sua mulher, estaria disposta a segui-lo também nisso. Com relação à filha, não tinha dúvidas de que ela preferia uma morte honrada pela mão do pai a uma vida indigna.
Chamou-a. Ela não o decepcionou.
Sem esperar pela resposta da mulher, ordenou às duas que vestissem seus casacos, já que ele, para evitar serem vistos, iria leva-las a um local apropriado, fora da cidade. Elas obedeceram. Carregou então o revólver, deixou que a filha o ajudasse a vestir o casaco, trancou a casa e jogou a chave pela abertura da caixa postal.
Chovia quando saíram da cidade pelas ruas escuras, o homem na frente, sem voltar-se para as mulheres, que o seguiam à distância. Ele ouvia os passos delas no asfalto.
Depois de deixar a estrada e tomar o atalho para o faial, virou-se sobre os ombros e pediu pressa. No vento noturno que soprava cada vez mais no descampado, os passos delas não fazia ruído sobre o chão molhado de chuva.
Gritou para que elas fossem na frente. Seguindo-as, não sabia: tinha medo que elas pudessem fugir, ou desejava fugir ele mesmo. Não demorou muito e elas estavam bem na frente. Assim que não podia mais vê-las, ficou claro que tinha muito medo de simplesmente fugir, e desejava muito que elas o fizessem. Parou e deu uma urinada. Carregava o revólver no bolso da calça, sentia-o frio pelo tecido fino. Andou mais depressa a fim de alcançar as mulheres; a arma batia a cada passo em sua perna. Diminuiu o passo. Mas, quando pôs a mão no bolso para jogar a arma fora, viu sua mulher e a filha. Estavam no meio do caminho à sua espera.
Queria fazê-lo no bosque, mas o perigo de os tiros serem ouvidos aqui não era maior.
Quando tomou o revólver na mão e o destravou a mulher enroscou-se, soluçante, em seu pescoço. Ela era pesada; teve que esforçar-se para desvencilhar-se dela. Dirigiu-se à filha, ela o olhava fixamente, apontou o revólver para suas têmporas e disparou de olhos fechados. Tinha esperança de que o tiro não saísse, mas ele o ouviu e viu a menina cambalear e cair.
A mulher tremia e gritava. Tinha de segurá-la. Somente do terceiro tiro ela silenciou.
Estava só.
Não havia ninguém que lhe ordenasse apontar a boca do revólver para as próprias têmporas. Os mortos não o viam, ninguém o via.
Guardou o revólver e curvou-se sobre sua filha. Em seguida começou a correr.
Voltou pelo caminho até a estrada e percorreu um trecho dela, mas não em direção à cidade, foi para oeste. Sentou-se então na beira da estrada, as costas apoiadas numa árvore, e com a respiração pesada pensou em sua situação. Achou que não era desesperadora.
Tinha apenas que continuar sempre para oeste e evitar os próximos vilarejos. Em algum lugar poderia submergir, numa cidade grande de preferência, com cognome, um fugitivo desconhecido, mediano e trabalhador.
Jogou o revólver no acostamento e levantou-se.
Ao caminhar ocorreu-lhe que tinha esquecido de jogar fora a Cruz de Ferro. Ele o fez. 





Heiner Müller
Tradução: Christine Roehrig e Marcos Renaux

sexta-feira, 13 de maio de 2016


CRÔNICA DE VIAGEM
 

Há cinco anos só ando a pé ou de bicicleta viajo a cidade sem poluí-la sigo o signo zodiacal não atropelo ninguém quando bêbado me dirijo a pé pra casa não me envolvo em acidentes quando me envolvo são aventuras tremendas olho o cair da tarde sinto o coração contrair-se dolorosamente ante um ipê na calçada um jasmim no quintal vibra a cidade desembarco no cais estudo os letreiros os limites entre bairros os níveis das marés os deslocamentos da chuva dos ventos cavalgo como um indígena me perco entre os aglomerados não carrego mapa bússola buzina pelo mar no fundo do oceano ou pelo deserto enfrento temerários perigos o ronco surdo da tarde umidade excessiva articulações doloridas extraordinariamente fatigado visito os amigos por numerosas aberturas vão se abrindo outra vez os caminhos... 





Ney Ferraz Paiva
Max Martins, "bicicletando", colagem, 27 de abril de 1989.

 Descida ao limbo, excerto


Aqui estamos no espaço vazio
no vazio nem sabemos onde estamos
e animais tentam preencher o vazio –
animais cada vez maiores
com esqueletos crescentes...
Os monstros cambaleiam
não se conhecem as suas espécies
parecem óleo derramado
suas enormes línguas deslizam sobre nós
como roupa molhada
e através de tudo a tinta iletrada da treva,
espanta-nos – a visão ainda funciona
e aconselha a ocultar-nos sob a terra
não é uma guerra, mas vem esconder-se
entre os animais...
e todos os olhos são zarolhos...
Aqui a mensagem não penetra mais
nem como faca em nosso coração
Mas lá no fundo do recinto, vejam,
Abre-se a portinhola do ninho do camundongo
e luz minúscula e minúsculo ser
procuram alcançar-nos à força.





Miodrag Pávlovitch Tradução Aleksandar Jovanovc
Ney Ferraz Paiva, "banquete das ratazanas", colagem, 2016


terça-feira, 3 de maio de 2016

A VERDADE

Como posso saber se o que vejo desta janela é de fato a paisagem que vejo?... Há muito, finjo acreditar em coisas que o homem teima em trocar pela fragilidade do vidro. Deus existe?... Deus não existe?... Ambas as coisas são verdade ao mesmo tempo. Pergunto-me e pergunto-lhe se a verdade existe mais que um milésimo de segundo. Nada é eterno. A eternidade passa depressa como a ciência.




Artur Cruzeiro Seixas 
Imagem: ney ferraz paiva, "a janela a verdade", colagem, 40 x 30cm, 2016

terça-feira, 19 de abril de 2016

Florêncio tinha família grande. O negro do cilindro sustentava um familião. Aquela gente passava mesmo necessidade. Ali eles tinham que comprar tudo, pagavam o casebre onde moravam. Pior que no engenho. Eles passavam mais fome que no engenho. Lá pelo menos plantavam para comer, tinham as suas espigas de milho, a sua fava para encher a barriga. No Recife tudo se comprava. Estivera na casa do Florêncio para não ir mais. O masseiro, a mulher, e quatro filhos, dormindo numa tapera de quatro paredes de caixão, coberta de zinco. Custava doze mil-réis por mês. A água do mangue, na maré cheia, ia dentro de casa. Os maruins de noite encalombavam o corpo dos meninos. O mangue tinha ocasião que fedia, e os urubus faziam ponto por ali atrás dos petiscos. Perto da rua lavavam couro de boi, pele de bode para o curtume de um espanhol. Morria peixe envenenado, e quando a maré secava, os urubus enchiam o papo, ciscavam a lama, passeando bameiros pelas biqueiras dos mocambos. Comiam as tripas de peixe que sacudiam pela porta afora. Os filhos de Florêncio passavam o dia pelo lixo que as carroças deixavam num pedaço de maré que estavam aterrando. Chegavam em casa, às vezes, com presas magníficas: botinas velhas, roupas rasgadas, trapos que serviam para forrar o chão, tapar os buracos que os caranguejos faziam dentro de casa. Eram bons companheiros os caranguejos. Viviam deles, roíam-lhes as patas, comiam-lhes as vísceras amargas. [...] Morar na beira do mangue só tinha esta vantagem: os caranguejos. Com o primeiro trovão que estourava, saíam doidos dos buracos, enchiam as casas com o susto. Os meninos pegavam os fugitivos e quando havia de sobra encangavam para vender. Para isto andavam de noite na lama com lamparina acesa na perseguição. Caranguejo ali era mesmo que vaca leiteira, sustentava o povo. Ricardo ficou com o pensamento na casa de Florêncio. Os meninos eram amarelos como os do engenho, mas eram mais infelizes ainda. E agrega: [...] pobre não tinha direito de reclamar. Pobre não nascera para ter direito. [...] Ricardo achou então que havia gente mais pobre do que os pobres do Santa Rosa. Mãe Avelina vivia de barriga cheia na casa-grande. Se ela viesse para ali e caísse naquela vida? Se os seus irmãos saíssem para o lixo, ciscando com os urubus? Florêncio ganhava quatro mil-réis por noite. O que eram quatro mil réis no Recife? Uma miséria. Por isso o outro falava em greve com aquela força, aquela vontade de vencer.






José Lins do Rego, O Moleque Ricardo, 1935.
Imagem: Boris Kosoy, Salvador, 1972.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Belém, 6 de fevereiro de 1944

Lúcio:

Quando telefonei para você pra me despedir fiquei aborrecida com um engano seu. Eu disse que nunca tinha podido chegar mais perto de seus problemas porque você nunca deixava; que eu, por encabulamento, então, disfarçava minhas perguntas de amizade em perguntas de curiosidade. É bem possível que você já nem saiba do que estou falando, tenha esquecido. Mas eu precisava lhe repetir que minha amizade não se transformou em curiosidade, o que seria horrível para mim.

Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei a procurar trabalho e começo de novo a me torturar, até que resolvo não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas e me revolto contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Cai-me plenamente nas mãos Madame Bovary, que eu reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que eu tive e as que eu não tive. - Eu nunca tive propriamente o que se chama de 'ambiente' mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem 'mutucas' (isso é besouro, mas por que não chamar tudo de mutuca logo de uma vez?)

Lúcio, como vai você? Responda, se responder, claramente a essa pergunta. (...)

Lúcio, sei que sou antipática e não posso fazer nada. Eu só falo de mim porque nem sei o modo de abordar você (...) Saudades da Clarice.


Colagem, Ney Ferraz Paiva, 2016.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Ode ao Burguês



Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar… – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…








MÁRIO DE ANDRADE. 50 poemas e um Prefácio interessantíssimo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013
Imagem: Gerhard Richter