o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

IMPRESSÕES
O que se encontra no começo histórico das coisas
                                      não é a identidade ainda preservada da origem
– é a discórdia entre as coisas, é o disparate.
A história ensina também a rir das solenidades da origem.

MICHEL FOUCAULT
Nietzsche, a genealogia, a história”

A voz é, no início, surda, pouco audível, desconfiada. Ela clareia e torna-se nítida quando ele se sente seguro. Isto é apenas um detalhe, ínfimo, entre centenas de outros. No entanto, nunca mais ouvi ninguém dizer “alô?” daquele jeito, ao mesmo tempo amedrontado, atento, à espreita. Como se, no segundo seguinte, tudo fosse se tornar possível, uma guerra ou um riso, uma ameaça, uma interrogação, alguma armadilha ou um embate.
            Foucault, dizendo “alô”, estava alerta. Pronto para tudo, lutar e esquivar-se, brincar ou brigar. Ao que me parece, tinha esta atitude com relação a tudo. Em todas as situações, ou quase, ele parecia sobreaviso. Não na defensiva, nada circunspeto, prudente ou reservado. Antes, espreitando, vigilante, pronto para qualquer eventualidade. Penso na famosa frase de Diógenes o Cínico: “O que a filosófica me ensinou? Estar pronto para qualquer eventualidade”. Era isto, sim, a eventualidade. O sentimento do aleatório. A acuidade do guerreiro: quem vem lá? amigo? inimigo? quem quer o que de mim? Mas, dissimuladamente, em voz baixa, sufocada, quase terna: “Alô?”.
            Do lado oposto, na outra ponta do espectro, o riso. Os risos, aliás. Pois, deles, Foucault tinha uma palheta muito variada. De conveniência: para se despedir, para acolher, para agradecer, um riso mais despojado, não exatamente mecânico, mas pouco vivo.  De mais despojado, não exatamente mecânico, mas pouco vivo. De zombaria: quando um crítico lhe desagradava, se um adversário o tivesse ferido, aparecia um riso sibilante, mais ou menos metálico. Diante do absurdo, da estupidez, da idiotice, da ignorância crassa, era um riso largo, sonoro, ruidoso. Havia também aquele outro tipo de riso que parecia submergi-lo quando uma palavra, uma lembrança, um gesto o faziam mergulhar de novo, subitamente, mesmo que por um instante, no universo da conquista e dos encontros ao acaso.
            Eu só frequentei Foucault por alguns meses, o que é bem pouco. Isso foi o bastante para compreender que havia nele algo inatingível. Mas será que se trata de “compreender”? Não, se considerarmos “compreender” uma operação do entendimento que, ao termo de um processo racional, tem um resultado argumentado como conclusão. Reúno, aqui, apenas algumas impressões, vendo claramente que são antigas e fugidias. Isto não parece um motivo suficiente para afastá-las, menos ainda para não confiar nelas.
            Creio, ao contrário, que convém reabilitar as impressões. O que assim nomeamos, na falta de algo melhor, designa, com efeito, algo que não se  encontra, finalmente em nenhum outro lugar. E que não é necessariamente acessório nem negligenciável. Tom de voz, brilho do olhar, postura do corpo, modo de se movimentar ou de se calar, ou de rir, ou de se vestir evocam, amiúde, alguma coisa completamente diferente de um detalhe. Ou melhor: quem então decidiu, desde quando, e como, aquilo que é detalhe e aquilo que não é?

Apagar os traços

            Dentre as impressões que me restam na memória, faz trinta anos, há Foucault de negro, numa manhã de inverno, na entrada da Biblioteca Nacional, um pouco esbaforido e inflamado, acabando de descer da bicicleta, falando rápido, antes de imergir na jornada dos livros. Foi talvez – eu não sei mais – a primeira vez que o vi. Eu estava evidentemente impressionado por encontrar aquele que alguns de nós estávamos lendo com paixão, há muitos anos. Nós o tínhamos apelidado “a cantora careca”, com uma ironia afetuosa e admirativa. E tendo vindo de bicicleta, isto tinha me impressionado. Um sentido do corpo, uma atenção cuidadosa com o esforço, com o músculo, com a esbeltez, mas sem ostentação, como uma brincadeira, uma maneira de passear, um modo também de flanar pela cidade. A impressão de que ele era livre sempre.
            Impressão confirmada, com ou sem razão, por sua aparente disponibilidade. Há pessoas que nunca têm o horário de almoço livre, antes do próximo trimestre, e, às vezes, com um pouco de sorte, só o tempo para o café, mas apenas no mês seguinte. Eu ficava muito surpreso que Foucault, solicitado, célebre, já mundialmente conhecido, causasse sempre a sensação, quando desejávamos encontra-lo, de não ter nada para fazer no dia seguinte. Parecia deixar seu interlocutor escolher o dia e a hora, como se ele tivesse todo o tempo disponível, e nada mais para fazer. Era algo simulado, mas não sem elegância.
            Assim, podíamos almoçar. Notadamente no Mercure Galant, atrás da Biblioteca Nacional da rua Richelieu, restaurante que hoje não existe mais. Este lugar parecia corresponder a Foucault. Havia aí, com efeito, um curioso misto de decoração clássica e de universo insólito. O que confirma sua reação às questões que eu lhe colocava, nesta época, nestes lugares. O que me interessava: sua relação com Kant. Ele havia traduzido Antropologia do ponto de vista pragmático. Este trabalho tinha sido, ao lado da História da loucura, sua tese complementar. E depois, aparentemente, mais nada. Por quê? Como? Não havia alguma coisa, apesar de tudo que perdurasse em segredo? Visivelmente, essas interrogações irritavam muito rapidamente. Uma resposta cortante caía: “Neste momento, eu me interesso pelas portas das retretes nas casernas alemães do século XVIII”. Clássico, sim, e, ao mesmo tempo, defasado. Modernidade atravessada por misturas.
Mesma impressão no apartamento de Foucault, no último andar de um prédio moderno, não longe da estação de metrô Vaugirard. A primeira vez que fui lá, tudo me pareceu curiosamente moderno. Até me surpreendi, não sei porque, que a cozinha tivesse um micro-ondas e que Foucault, com uma camisa de gola rolê branca, preparasse, ele mesmo, um prato de frango ligeiramente cremoso. E depois ele me explicou, rindo, como a parede do fundo, que parecia uma estante de livros fixa, deslizava, para comunicar o seu apartamento com outro, onde morava seu companheiro. Conforme os visitantes, esta divisória ficava fechada ou aberta.
            Na decoração contemporânea, quase design, deste apartamento luminoso, subsistia então, com esta divisória de correr, um quê de uma sombra antiga. Brincadeira de piratas, esconderijo, armadilha, censura. Não é uma piscadela para a história antiga das portas ocultas e das passagens secretas que está aqui em questão. Também não se trata do cuidado que Foucault tinha em só viver abertamente de maneira seletiva. É algo muito difícil de entender, mas interessante, talvez.
            Parece que em sua casa existem, um pouco por toda parte, gavetas secretas, fundos por detrás de outros, disfarçados. Não que sua obra seja esotérica, evidentemente. Fora de questão inscrevê-la na linhagem dos ocultistas e outros autores criptônimos. Porém, as relações de um livro com outro, por exemplo, geralmente se ocultam. As continuidades são marcadas. Na vida do homem, parece-me que o mesmo acontece. Se Foucault tem tantas faces que, frequentemente, não se encaixam, ou tão mal, é também porque ele queria apagar os traços, organizar lacunas, deixar silêncios. É também uma maneira de ser livre.
            E havia muita liberdade em Foucault, de modo sempre singular. Fiquei surpreso com as posturas, nas vezes em que o encontrei em sua casa. Ao falar, ele tinha maneiras não fixas, pouco comuns, de segurar a cabeça com uma só mão, ou de cruzar uma perna, ou ainda de deixar pender um braço. Não vejo aí, simplesmente, sinais de descontração, atitudes descontraídas de alguém que está em casa e que pode, falando, sentar-se sobre a perna ou meio que se atirar no sofá.
            Certamente isto acontecia. Mas também outra coisa. Como um gestual do corpo codificado de modo diferente do que nas convenções que regem também a descontração. Uma maneira livre de se portar, diferente, prestes a perturbar a ordem das posturas ditas normais do corpo em sociedade. Talvez fosse necessário aproximar isto de tudo aquilo que Foucault estudou sobre o adestramento dos corpos na sociedade disciplinar, em que se trata justamente de restringir ou de anular a parte do movimento corporal livre e espontâneo.

            O que é curioso, é que, até onde eu me lembre, essas posturas atípicas, essas maneiras de se portar diferentes, nunca davam a impressão de um desleixo qualquer. Foucault podia ser desengonçado, nunca estava relaxado nem desleixado. Porque, parece-me, havia nele como que uma vigilância sempre alerta, algum movimento sempre organizado uma retirada, uma distância. Impossível imaginá-lo desatento, impossível também imaginá-lo ingenuamente simples.

Febre e ocupação

Alguma coisa nele devia permanecer indefinidamente inacessível. É assim, em todo caso, que eu o imagino. Como se ele buscasse permanentemente cavar uma distância em relação às pessoas. Numa primeira abordagem, sua extrema afabilidade preenchia essa função. Ela era tão excessiva, às vezes, mesmo hiperbólica, que só podia instaurar grandes distancias.
            Sua febre, também, o colocava à parte. Emprego esta palavra na falta de outra melhor. Foucault vivia como que numa perpétua ocupação, sempre atento. Ninguém era menos plácido, nem mais móvel. Ele era capaz, a respeito de um mesmo assunto, de multiplicar as abordagens e os pontos de vista com uma extraordinária velocidade. Aliás, ele não cessou de multiplicar os programas, as listas de coisas a fazer. “Será necessário um dia...” era uma expressão retomada muitas vezes em seus propósitos, tal como figura frequentemente em seus escritos. Esta febre era um excesso, uma profusão, um permanente transbordar. Foucault dava a impressão de ter mais projetos que tempo, mais ideias que livros, mais possíveis que realizações, que eram, por sinal, muito numerosas!
            Finalmente, Foucault era um impulso. Uma espécie do élan permanente, uma extraordinária máquina de arrebatar. Desta força que incita, restam mil traços e mil consequências. Sua influência exerceu-se sobre toda a geração à qual pertenço, que tinha vinte anos por volta de Maio de 68. Outras, sem dúvida, mais jovens, ou vivendo em outras culturas, foram influenciadas de outra maneira por Michel Foucault. Quanto a mim, por mais que eu não seja “foucaultiano”, sei aquilo que creio lhe dever.
            Em primeiro lugar um programa. Meu trabalho de pesquisador inscreveu-se, de fato, num programa que Foucault havia indicado no primeiro prefácio de História da loucura. Por sua vez, ele havia deixado este canteiro de lado, do mesmo modo que não quis reeditar o prefácio. Ele escrevia então:

Na universalidade da ratio ocidental, há esta divisão que é o Oriente: o Oriente, pensado como a origem, sonhado como o ponto vertiginoso de onde nascem as nostalgias e as promessas de retorno, o Oriente oferecido à razão colonizadora do Ocidente, porém, indefinidamente inacessível, pois o limite sempre permanece: noite do começo, em que o Ocidente se formou, na qual traçou uma linha de divisão, o Oriente é, para ele, tudo aquilo que ele não é, ainda, que ele deva buscar nele sua verdade primitiva. Será preciso fazer uma história desta grande divisão, ao longo de todo o devir ocidental, segui-la em sua continuidade e suas trocas, mas deixá-la também aparecer em seu hieratismo trágico.

            Os dois livros que dediquei a determinados aspectos desta divisão inscrevem-se, ao seu modo, na direção indicada por Foucault. O esquecimento da Índia e O culto do nada contribuem, em alguns aspectos delimitados, para esclarecer o lugar e a função do Oriente na consciência europeia bem como a constituição de sua identidade moderna. Eles procuram, com efeito, abordar o processo histórico que viu a descoberta científica do Oriente, mais particularmente, do âmbito do sânscrito, e realizar uma re-elaboração filosófica dos traços que caracterizam “a Europa”, “o espírito” europeu, “a identidade” europeia etc. Não se trata de comprar entidades já definidas em sua integralidade, “a Europa” e “a Índia”. O objetivo é contribuir para a compreensão dos processos dinâmicos em que essas representações delinearam-se reciprocamente.
            Segundo elemento importante, esta convicção, própria de Foucault, de que tudo é dito nos arquivos, explicitamente. Inútil imaginar estratégias secretas, intenções escondidas nos processos de saber e de poder. Tudo é formulado, tornado preciso, repetido, às claras. Esta ideia me ajudou enormemente, durante anos passados pesquisando aquilo que era agenciado, no século XIX, em torno da descoberta do budismo e das interpretações que ela suscitava.  Pude constatar que, efetivamente, se nos damos ao trabalho de ler, tudo está ali, preto no branco, sem pudor e sem rodeios. Não concluo com isso, necessariamente, que conviria desempregar todos os hermeneutas, porém que toda interpretação inútil deve, se possível, ser afastada, quando se tratar de história dos sistemas de pensamento.
            Restam, também, deste impulso chamado Foucault, os grandes registros “guerra” e “urgência”. Foucault fez compreender quanto efeitos de verdade e relações de forças são interligados. Não há senão a guerra, em toda parte, sobretudo sem fim, sem origem nem termo, sem vitória nem trégua, com evoluções apenas, mudanças de estilo ou de campo. É isso que ensina, no fundo: o combate como dimensão essencial do pensamento e da vida. Sem dúvida, Nietzsche o tinha visto, sem contar Heráclito e sua grande intuição da discórdia. Mas foi Foucault quem permitiu entrevar a riqueza desta perspectiva.
            A urgência, este gosto do agir próprio da febre, cresce para intervir nas lutas, para inflecti-las ou modifica-las. Ela é acompanhada, em Foucault, por um desprezo soberano pela metafísica e pelos seus embaraços risíveis. Foi possível segui-lo, neste registro, num domínio determinado, o jornalismo. Pensei, muitas vezes, com emoção e gratidão, nesta maneira que ele tinha de considerar a imprensa com um lugar de intervenção para um intelectual. Um lugar permanente, legítimo, essencial. Não um domínio de incursões pontuais, por onde passariam assinaturas de prestígio. Foucault incitava uma urgência jornalística vivida de dentro, dentro das redações, segundo modalidades que deviam, evidentemente, ser inventadas por cada um.
            Com esta coletânea, desejei fazer uma modesta homenagem à memória de Michel Foucault, por ocasião do vigésimo aniversário de sua morte. Ela começa com um curto estudo sobre sua trajetória, extraído do meu trabalho, A companhia dos filósofos, lembrando alguns dados básicos àqueles que não conhecem bem sua contribuição. Seguem-se três entrevistas, publicadas em jornais, em diferentes datas.
            Reúno estas páginas dispersas com a preocupação de que essas possam ser úteis a uma melhor descoberta de seu pensamento e de seu percurso. Nestas entrevistas, Foucault aborda, efetivamente, de maneira simples e direta, temas maiores do seu trabalho, como, por exemplo, a delinquência, a institucionalização dos saberes, a dispersão dos focos de poder. Mas também evoca temas mais pessoais, que frequentemente não foram desenvolvidos. Em particular, sua relação com a literatura, com o trabalho da escrita, sua relação com o marxismo e com os comunistas, sua formação intelectual, seu olhar sobre seus próprios livros e sobre a acolhida que tiveram. Parece que, ao longo das respostas, desenha-se um Foucault sensivelmente diferente daquele dos trabalhos e dos cursos.
            Tais são as minhas impressões.



             Roger Pol-Droit
             Paris, 12 de julho 2004

quarta-feira, 21 de maio de 2014

ESTAR CONFORME OS PRAZOS


comprei um livro da Adília Lopes
um livro algo danificado
como se tivesse molhado um dia
vou pegar um poema da Adília
para pôr de epígrafe ou epitáfio
vivo sempre entre duas fadigas
ou estico o texto ou a canela




Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d’água

quinta-feira, 3 de abril de 2014

HÉBRIDAS



as nuvens estão baixas enforcam a tarde
a noite parece não terá a menor chance
o amor dá saltos mortais espalhafatosos
sobe ao cimo das árvores aí faz o ninho
o amor começou como se fosse pássaro
dando um duro danado para ir e voltar
enfrenta problemas financeiros sexuais
bebe mau vinho vai a motel vagabundo 
famílias tentam desenterrá-lo na sala
logo depois ele corta o pulso enlouquece
governos esperam elegê-lo suborná-lo 
mas ele é ruim na tv não sabe fazer pose
todos sempre ansiosos em encontrar um
com pulmão que respire debaixo d'água
e que não se mate num sábado à tarde


 


ney ferraz paiva
francesca woodman

quarta-feira, 2 de abril de 2014

AS FOTOS DELA

vi as fotos dela
não tinha ideia
do que acontece
à pessoa que se
joga dum prédio

a pele desaparece 

reprimida no solo
único longo seco 
golpe de martelo

um verso pra lua

amortece a queda?
folhas murmúrios
de cães na praça?

a face se esquiva

de ir ao inferno?
a face se desvia
à faca ao arpão?

do ouvido o vento

marinho e da boca
versos de paixão

vi as fotos dela

nem o sol brando
amortece a queda




ney ferraz paiva

foto de ana cristina cesar

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

NADAR SEM OS SINAIS DE ORIENTAÇÃO



ela sai para nadar no mar do fundo dos quintais
no chafariz da praça na chuva nos pomares
pela cidade cada mergulho fica o rascunho dela
que água não lava nem leva só dura um minuto
ela nada para emanar chegar aos lugares aéreos



ney ferraz paiva
ernesto timor

terça-feira, 17 de dezembro de 2013



























Acumular o Contemporâneo a Partir da Incerteza

Para começar uma abordagem em torno da poesia contemporânea feita no Brasil, talvez estes quatro autores sejam indispensáveis: Aramando Freitas Filho, Augusto de Campos, Adélia Prado e Ana Cristina Cesar. Com a minha incerteza estou querendo deixar claro que se pode começar por outros autores e num outro tempo, ampliando-se ou reduzindo-se as décadas. Mas também quero evocar a indecisão entre tradição e contemporaneidade, própria da passagem do século. O contemporâneo acumula a sua variedade, às vezes célebre (resultado imediato do sucesso alcançado pela obra), mas ainda quase nada canônica. Pode-se começar indiscriminadamente, sobretudo as análises entusiásticas. Mas para efeito do curso, é conveniente procurar se municiar de outras informações que vão além do nome do poeta e do título do livro. Isso não acontece da noite para o dia. No curso vamos ter quatro encontros, cada um com a duração de três horas. Dar conta destes quatro autores, num tempo tão exíguo, é impossível. Basicamente o que se pode tentar, como um método extremamente simples de estudo, é desenvolver linhas de leitura a partir de certos poemas dos livros dos autores aqui mencionados e, a partir de certo ponto, encaminhar a discussão com vistas aos próximos módulos do curso. No universo contemporâneo da imagem, e por empréstimo, da escrita, nada do que se vê é apenas aquilo que se vê. Tudo é, ao mesmo tempo, uma outra coisa. O que, no entanto, não constitui nenhum segredo quanto aos primeiros passos que se deve dar no ambiente da poesia recente feita no Brasil: eles acontecem em um terreno comum, onde a maioria dos autores também circula, e onde os livros deveriam estar disponíveis e acessíveis, tendo a internet como importante aliada. E há outros meios de se instrumentalizar: cinema, galerias de arte, teatro, fotografia, revistas literárias, espaços virtuais etc. No curso se trocará informações diversas, se travará contatos importantes, o que sempre colabora para se formar redes de conhecimentos que podem dar auxílio no futuro. Este mecanismo faz parte da engrenagem fantástica que é a escrita.

Ney Ferraz Paiva

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

BASQUIAT DEVE TER PAGO 40
DÓLARES A ANDY WARHOL

espreguiçados lado a lado na poltrona
resgatada não se sabe mais de que naufrágio
carregar a cruz de horizontes esfolados
sem que um possa ajudar o outro
pouco sabendo da noite de ontem nem do que será hoje
lembro que você pagou a Andy Warhol aquela grana
ele – gigolô da arte – achava se tratar de muito mais
por nunca ter dado conselhos financeiros
não seguimos ao pé da letra o velho Rilke
cartas que jamais escreveu ao jovem grafiteiro estraçalhado
tentando improvisar nas ruas de Nova York uma fala a mais
de longa quilometragem tantos desastres toda essa merda
entranhando-se mais & mais no mar difícil da noite
tórax literalmente perfurado escancarado 
aí se afogar se deixar engolir por amor esse amontoado de destroços
carregar a cruz de horizontes esfolados
um logro uma mentira uma blasfêmia
sem que um possa ajudar o outro
soçobrados lado a lado batemos papo
ficamos tentando ser daquele jeito


ney ferraz paiva

sábado, 16 de novembro de 2013

ALTO-FALANTE PARA IMPROVISAÇÕES



era o rádio sintonizado num som aleijado

era o rádio mergulhado no vômito no sofá

era o rádio insaciável embriagado censurado

era o rádio paralisado por um câncer devastador

era o rádio indo às montanhas respirar o ar da vida

era o rádio gago num diálogo arrastado pelos olhar

era o rádio na chuva escutando ópera a esmo

era o rádio numa vigília ridiculamente romana

era o rádio com medo minuciosamente detalhado

era o rádio com cigarro cortando a pele do pulmão

era o rádio anárquico a qualquer forma de estado

era o rádio desatualizado de papo pro ar

era o rádio sem o menor faro pra notícia




ney ferraz paiva

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

As cismas do destino

I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte Zunia. 
E, na ígnea crosta do Cruzeiro, 
julgava eu ver o fúnebre candeeiro 
Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.

Ali! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignís sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona 
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma taça
Que, violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptises!

Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de tinia artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam 
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, 
jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos, 
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os atos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia, 
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto, 
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram 
Da miniatura singular de uma aspa, 
A anatomia mínima da caspa, 
Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se na laringe,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos, 
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos 
A contração dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes
Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam, 
A pedra dura, os montes argilosos 
Criariam feixes de cordões nervosos 
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigméas! Deus subjuga-as, cinge-as
A imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O, 
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopeias carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos 
Ontogênicos mais elementares, 
Desde os foraminíferos dos mares 
À grei liliputiana dos pólipos.

Todos os personagens da tragédia, 
Cansados de viver na paz de Buda, 
Pareciam pedir com a boca muda 
A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!

E apesar de já ser assim tão tarde, 
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita, 
No meu temperamento de covarde!

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso, 
Vi que, igual a um amneota subterrâneo, 
jazia atravessada no meu crânio 
A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delíríum-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos sêmens!

Enterram as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas, 
Em cujo repugnante receptáculo 
Minha perscrutação via o espetáculo 
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite, 
É que as mulheres ruins ficam sem leite 
E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me 
Na vida universal, e, em tudo imerso, 
Fazer da parte abstrata do Universo, 
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino, 
Reboou, tal qual, num fundo de caverna, 
Numa impressionadora voz interna, 
O eco particular do meu Destino:

III

"Homem! por mais que a Idéa desintegres, 
Nessas perquisições que não têm pausa, 
jamais, magro homem, saberás a causa 
De todos os fenômenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas 
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene 
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!

A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tactos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéa
Dás ao sôfrego estudo da ninféa
E de outras plantas dicotiledôneas!

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;

As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem,

O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha.
Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre, 
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;

O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;

A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopeias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

As projeções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira meteórica do arco-íris;

Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;

O instinto de procriar, a ânsia legitima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;

E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda, 
A morte desgraçada dos açougues...

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;

Última das criaturas inferiores 
Governada por átomos mesquinhos, 
Teu pé mata a uberdade dos caminhos 
E esteriliza os ventres geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes 
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes 
Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço — esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
E só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham 
São verdades de luz que os homens olham 
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes 
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges, 
Também prova o princípio de Arquimedes!

A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranquila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!

Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentor de mil línguas insurretas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.

Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sustenidos de uma endeixa, 
Vinha me às cordas glóticas a queixa 
Das coletividades sofredoras.

O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!



Augusto dos Anjos
Graciela Itubirde