o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 15 de março de 2013

RITUAIS APÓCRIFOS DA POESIA

PARADIGMA, ERNESTO TIMOR

Palavra de lesma numa lâmina de grama?
Não é minha. Não aceite.
Sylvia Plath, Os Mensageiros

Guardada por duplos leões monumentais de mármore, o que pode a poesia? Essa que frequentemente pretende ser ainda alguma memória do céu: crédula, pitoresca, meiga – jamais bárbara. Reaproveito aqui um dos motes de Oswald de Andrade ao se referir aos leitores de jornal. Por este ser hoje um espaço onde a poesia não-consagrada dificilmente terá acesso. Para entrar em certos lugares a poesia precisou civilizar-se. No Paraíso das Bienais, Feiras e Festas, e, sobretudo nos roteiros tradicionais, aí não há lugar para Bárbaros. Como nunca, poetas são confrontados com a cobrança cultural do sucesso: o pedestal, a moldura. Algo como um Arnaldo Antunes das Multidões. Incensado pelos comunicadores ávidos do sempre novo, porque sempre o Mesmo e único poeta “concretista desta nova geração”. Algo como chamar Rousseau de Modernista – ainda que por aí tudo ande realmente russo. Vejam o que pode o trocadilho. Nada. O trocadilho não pode nada. Mas já na Farra dos Incensados... Sem pestanejar, o velho vira novo entre os (incautos) novatos. O novo não é mais a Criatividade. O novo é a Moda. Porque antes de tudo se trata das demandas vigentes do mercado, das sobrecargas da institucionalização, das forças que salvaguardam discursos, e não das exigências conceituais e artísticas que se ampliam, vivas, variadas e diversas no ambiente da criação. O ir com tudo, o ir-Bárbaro das multiplicidades e singularidades. Cabe, aqui, intensificar outra abordagem, quase sempre negligenciada pelas análises culturais: num país de desigualdade social brutal, nem de longe, nem mesmo por concessão acidental, muito menos como Projeto, diferença-variedade-diversidade cultural podem entrar na cena para a eclosão dos sistemas de fluxos. Boa parte dos leitores vão continuar pensando que a solidão ou a tristeza vêm do coração do poeta. Que elas não fazem parte de uma textura perversa e dominadora. E para sustentar tal estrutura há um sistema de interpretação implacável, que perdura, irremovível. Cabe a ele a tarefa de encantar os leitores. Nem tanto ler, reler, escolher. Esse leitor menor é que vai interessar cada vez mais ao mercado de livros de poesia. Totalmente indiferente à estruturação da obra poética e à sua feição linguística. Que acredita que o poeta para completar sua obra precisa apenas amar e ser da paz. Que é possível escrever poesia sem enlouquecer. Essa proposição é, na verdade, a menos obscura para os espíritos estáticos. Eles não se colocarão a ler uma elegia em pleno café da manhã. Eis a alma e o segredo do negócio: a sensibilidade também pode ser corrompida. Assim, seguem fascinados à próxima Farra dos Incensados... à modorra acadêmica... ao cochilo da crítica. À cata não dos Bárbaros, mas dos Astuciosos. Sem desconfiar que o mundo dos melhores e mais influentes autores, dos mais vendidos e prolíficos, geralmente nada tem a ver com escrever um bom poema e fazer com eles não só o conjunto de um livro, mas também de uma obra. Com os rituais apócrifos da grande escrita. Na Farra dos Incensados – quem fará ainda voar em estilhaços a palavra bárbara?


Ney Ferraz Paiva, Belém 14.03.2013

domingo, 17 de fevereiro de 2013


roupas usadas para vestir a áfrica

guardar um pouco para o telhado
do fardo de roupas
ou dos peixes guardar um pouco
do refugo do mundo
é assim por enquanto a vida
quem se importa
minha mãe eu não posso deixar
sem um telhado de zinco
uma muda de roupas usadas
para encobrir as vergonhas do mundo
ou um casaco de pele para os animais

ney ferraz paiva

sábado, 16 de fevereiro de 2013


SOLETRAR ADENSAR NÃO INTERPRETAR JOÃO CABRAL

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la
captar sua voz inenfática, impessoal,
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada,
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições d pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Certo está que poesia não educa - nem poeta é educador. Essa não é uma questão para João Cabral. Pelo que consta em sua biografia, ele nunca se pôs a falar a pedagogos. Acontece que ele, de alguma maneira, parece querer fazer uma inversão nas funções de poder, nas suas regras metodológicas. Ele declina da "pedra" sua carnadura feminina, sua fluição, sua voz. Estabelece um contraste, e mais, uma antítese entre o ambiente viril de quem aprende e o modo de abordagem de quem ensina. E quem saberá captar, aqui-agora, nestes Brasis e Espanhas, a música da "cartilha muda"? Soletrar. Adensar. Não interpretar. O agravo objetivamente feito contra o discurso. Gemidos ao invés de música/ gritos que escapam à representação /que reagem a qualquer significação. E para onde terá ido aquela semelhança, ou melhor, similitude atribuída ao discurso verdadeiro e falso por Hesíodo? Atos de pensamento, mais do que figuras retiradas do cotidiano através do olhar, de uma tagarelice do vivido. Seriam estas as lições? As visões? Participar do "escrevível" a partir de um olhar descentrado das formas reinantes da escrita, que tratam a todos como expectadores da história, habilmente negociada pelas moedas do certo e do errado, da lei, da justiça. Pelo que esses mesmos seriam os mecanismos revertedores da Máquina que tudo arquiva, empenhada em fazer proliferar uma unidade insustentável do discurso. A essa máquina outra - a máquina de comover (expressão de Le Corbusier), a que João Cabral não cessa de operar em O Engenheiro (1945). Fazedor de imagens insólitas, deformadas, sem nenhuma sublimação.

Ney Ferraz Paiva

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Henry Miller e Eve McClure, 1953, ano em que se casaram.

PARA CONVENCER O ARTISTA A COMETER SUICÍDIO


Por Henry Miller

– Detesto pensar no que um artista sem recursos tem de enfrentar! – disse o doutor Souchon. Não existe inferno pior, no meu entender. – Como toda grande cidade da América, Nova Orleans está cheia de artistas morrendo de fome, ou quase. O bairro em que moram vem sendo regularmente demolido e pulverizado pelas grandes armas dos vândalos e bárbaros do mundo industrial. Gritamos contra o vandalismo dos hunos, nossos inimigos de antanho, dos alemães, e, no entanto, em nosso próprio meio, no último refúgio arquitetônico da América, o jardim de um mundo que destruímos com nossas próprias mãos, o insidioso trabalho de destruição continua. Ao ritmo em que estamos indo, dentro de cem anos dificilmente haverá neste continente algum traço ou prova da única cultura que fomos capazes de produzir – a rica cultura escrava do sul. Nova Orleans venera o passado, no entanto assiste impassível aos bárbaros do futuro cínica e impiedosamente enterrarem o passado. Quando o belo Bairro Francês não existir mais, quando todo o laço com o passado tiver sido destruído, haverá prédios de escritórios limpos e estéreis, monumentos e prédios públicos horrendos, poços de petróleo, chaminés, aeroportos, cadeias, manicômios, hospitais de caridade, filas do pão, os cinzentos barracos do povo negro, brilhantes esqueletos carros, trens enferrujados, comidas enlatadas, lanchonetes, vitrines iluminadas a neon para inspirar o artista a pintar. Ou, o que é mais provável, para convencê-lo a cometer suicídio. Poucos homens terão coragem de esperar até os sessenta anos para pegar o pincel. Menos ainda terão a chance de se tornar cirurgiões. Quando um famoso dentista tem a audácia de dizer que para o homem trabalhador os dentes – os dentes da própria pessoa – são um luxo econômico, aonde estamos chegando? Logo psiquiatras e cirurgiões estarão dizendo: “Por que preservar a vida se não existe razão para viver?”. Logo, por simples bondade humana, estarão se juntando para formar uma sociedade da eutanásia com a finalidade de eliminar aqueles que não se adaptam aos terrores da vida moderna. O campo de batalha, ao lado do campo industrial, lhes fornecerá todos os pacientes que forem capazes de atender. O artista, assim como o indígena, pode se tornar tutelado do governo; poderá ter licença para zanzar por aí sem rumo, simplesmente porque, assim como no caso dos indígenas, não temos coragem de matá-lo. Ou talvez só depois de ter prestado “serviços úteis” à sociedade ele possa ter permissão de praticar sua arte. Parece-me que estamos chegando a um impasse assim. Só a obra de artistas mortos parece ter alguma atração ou valor para nós. Os ricos sempre podem ser levados a dar apoio a mais de um museu; sempre é possível contar com as academias para nos fornecer os cães de guarda e as hienas; sempre se pode comprar os críticos que matarão o que é fresco e vital; sempre haverá educadores que mal informarão os jovens quanto ao sentido da arte; os vândalos sempre podem ser instigados a destruir o que é poderoso e perturbador. Os pobres não conseguem pensar em nada além de comida e casa; os ricos se divertem colecionando investimentos seguros que lhes são fornecidos pelos demônios devoradores de cadáveres que comerciam com o sangue e o suor de artistas; a classe média paga ingresso para ficar de boca aberta e criticar, orgulhosa de seu conhecimento requentado da arte e tímida demais para defender o homem que no fundo do coração ela teme, sabendo que o inimigo verdadeiro não é o homem acima, que tem de bajular, mas o rebelde que expõe em palavras ou tintas a podridão do edifício que eles, a classe média covarde, são obrigados a sustentar. Os únicos artistas no presente que vêm sendo regiamente recompensados por seu trabalho são os charlatães; entre eles estão não apenas a variedade importada, mas também os filhos nativos que são capazes de levantar uma nuvem de poeira quando se trata de questões reais.

O homem que quer pintar não aquilo que vê, amas aquilo que sente não ter lugar em nosso meio. Ele pertence à cadeia ou ao manicômio. A menos, como no caso do doutor Souchon, que possa provar sua sanidade e integridade com trinta ou quarenta anos de serviços prestados à humanidade no papel de cirurgião.

É esse o estado da arte na América de hoje. Quanto tempo mais vai resistir? Talvez a guerra seja uma benção disfarçada. Talvez, depois de termos atravessado mais um banho de sangue, possamos dar atenção aos homens que procuram arranjar sua vida em outros termos que não ambição, rivalidade, ódio, morte e destruição. Talvez...

Pesadelo Refrigerado. Editora Francis, 2006.
Tradução de José Rubens Siqueira

sábado, 2 de fevereiro de 2013


Na noite em que Edgar Poe falhou ao ler o Corvo

Por Charles Baudelaire

Nessa última visita a Richmond ele fez duas leituras públicas. É preciso dizer uma palavra a respeito dessas leituras que representam um grande papel na vida literária dos Estados Unidos. Nenhuma lei opõe-se a que um escritor, um filósofo, um poeta, alguém que saiba falar, anuncie uma leitura, uma dissertação pública sobre um objeto literário ou filosófico. Ele aluga uma sala. Cada um paga uma contribuição pelo prazer de ouvir emitir ideias e compor frases tais quais. O público comparece ou não. Neste último caso, é uma especulação fracassada como qualquer outra especulação comercial aventurosa. Apenas quando a leitura é feita por um escritor célebre há fluência, e é uma espécie de solenidade literária. Vê-se que essas são as cátedras do Collège de France postas à disposição de todo mundo. Isso faz pensar em Andrieux, em La Harpe, em Baour-Lormian, e lembra essa espécie de restauração literária, que se fez após o apaziguamento da Revolução Francesa nos liceus, ateneus e cassinos.

Edgar Poe escolhe como objeto de seu discurso um tema que é sempre interessante e que foi muito debatido entre nós. Ele anunciou que falaria do princípio da poesia. Existe há muito tempo, nos Estados Unidos, um movimento utilitário que quer arrastar a poesia como o resto. Há poetas humanitários, poetas do sufrágio universal, poetas abolicionistas das leis sobre os cereais, e poetas que querem que se construam work-houses. Juro que não faço nenhuma alusão a pessoas deste país. Não é culpa minha se as mesmas disputas e as mesmas teorias agitam diferentes nações. Em suas leituras, Poe declara-lhes guerra. Ele não defendia, como alguns sectários fanáticos insensatos de Goethe e outros poetas marmóreos e anti-humanos, que toda coisa bela é essencialmente inútil; mas ele se propunha sobretudo como objeto e refutação do que ele chamava espirituosamente a grande heresia poética dos tempos modernos. Essa heresia é a ideia de utilidade direta. Vê-se que, de um certo ponto de vista, Edgar Poe dava razão ao movimento romântico francês. Ele dizia: nosso espírito possui faculdades elementares cujo objetivo é diferente. Umas aplicam-se a satisfazer a racionalidade, as outras preenchem um objetivo de construção. A lógica, a pintura e a mecânica são os produtos dessas faculdades. E como temos nervos para aspirar os bons odores, nervos para sentir as belas cores, e para nos deleitar ao contato dos corpos lisos, possuímos uma faculdade elementar para perceber o belo; ela tem seu próprio objetivo e seus próprios meios. A poesia é o produto dessa faculdade; ela se dirige ao sentido do belo e não a um outro. É fazer-lhe injúria submetê-la ao critério das outras faculdades, e ela nunca se aplica a outras matérias senão àquelas que são necessariamente o alimento do órgão intelectual ao qual ela deve seu nascimento. Que a poesia seja posterior e consequentemente útil isso está fora de dúvida, mas não é esse seu objetivo; isso vem a mais! Ninguém se surpreende que um mercado, um embarcadouro ou qualquer outra construção industrial satisfaça às condições do belo, embora não seja esse o objetivo principal e a ambição primeira do engenheiro ou do arquiteto. Poe ilustrou sua tese através de diferentes trechos de crítica aplicados aos poetas, seus compatriotas, e por recitações de poetas ingleses. Foi-lhe pedido a leitura do seu Corvo. É um poema do qual os críticos americanos falam muito. Falam dele como de uma notável peça de versificação, de ritmo vasto e complicado, um sábio entrelaçamento de rimas que satisfaz seu orgulho nacional um pouco invejoso das proezas européias. Mas parece que o auditório ficou desapontado com a declaração do seu autor, que não sabia fazer brilhar sua obra. Uma dicção pura, mas uma voz surda, uma melopeia monótona, uma negligência muito grande dos efeitos musicais que sua pena sábia tinha de certo modo indicado, satisfizeram pouco aqueles que tinham pensado como uma festa a oportunidade de comparar o leitor com o autor. Isso não me surpreende de modo algum. Com frequência notei que poetas admiráveis eram execráveis atores. Isso acontece muito com os espíritos sérios e concentrados. Os escritores profundos não são oradores, e infelizmente é assim.

Obras Estéticas, Filosofia da imaginação criadora. Editora Vozes, 1993.
Tradução de Edison Darci Heldt

terça-feira, 15 de janeiro de 2013



O POETA MÁRIO FAUSTINO DESCE AOS INFERNOS E SOBE AO EMPYREAM



III. A QUEDA

Sempre ele girava perto demais do sol.
Enquanto Ícaro, ainda derretendo, cai
e cai, 
a queda de Mário tinha apenas
começado.
Lentamente o vácuo esvazia-se
e enche-se.
Os dijecta membra do pássaro
despencam
silenciados no vidro que totaliza o
grisalho do cabelo.
Separadamente a queda, as coisas,
elas flutuam abaixo separadamente.
Em chaminés sem fumaça, a fuselagem,
uma valise que se esvazia
(que vulneráveis pedras-de-toque!); e
fumegante destroço
suja as bordas do coração.
O rastro do jato pendeu um átimo de
um instante no ar.

Sempre ele girava perto demais do sol.
Enquanto Ícaro, ainda derretendo, cai
e cai,
a que da de Mário tinha apenas
começado.
Lentamente o vácuo esvazia-se
e enche-se. 

Quantos, Mário, anos! - quantos você 
sondou o ar,
deixando smoking e pijamas listados
longe para trás?
Rápido demais, rápido demais você
colidiu com os trajes da gravidade.

Por todo céu as estrelas estão caindo.
Lace
o céu, ele está caindo! Mas Lúcifer
que se despedaça
para sempre no perigo do dia-a-dia,
predestina os céus a voltarem a sua
ruptura de proteção.
Fossem ondas como anos, você, num
milênio de safira.
teria se banhado até o dia
do juízo final; 
mas, a morte conhece um atalho
você aventurou-se
a voar na onda abstrata do ar
apenas
para ser mutilado
na metáfora-sem-poema.
E todavia, rápido demais, oh Mário,
rápido demais,
você vestiu suas mudanças
cedo demais.
Atravessando o redemoinho, você
muda seu curso.
Você ultrapassa os levianos
coletadores-de-safira.
Você passa, vertigem do lento levante
das idades;
você, seu corpo como um feto
curvado, você, 
descarnando a semente do transilient
vácuo, você
amante até o fim, circundando o
espaço com seus braços.
Sua queda embaça meus olhos. Oh,
elevando-se para a sua face, meus dedos
congelam no cabo do machado de 
gelo,
haverá algum pico que você não ouse
trair?
Está você escondido, evadido,
daqueles que o amam?
Mário? você está tentando nos dizer
alguma coisa?
Mário-Lúcifer, o que você está 
tentando dizer?

Sempre ele girava perto demais do
sol.
Enquanto Ícaro, ainda derretendo,
cai e cai,
a queda de Mário tinha apenas
começado.
Lentamente o vácuo esvazia-se
e enche-se.


ROBERT STOCK
Robert Mapplethorpe, White gauze

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013


O CANDIDATO


Primeiro, você é a pessoa que queremos?

Você usa

Olho de vidro, dentes falsos ou muletas,

Cinta ou gancho,

Seios ou sexo de borracha,

Pontos para mostrar que lhe falta qualquer coisa? Não, não? depois

Como podemos dar-lhe alguma coisa?

Páre de chorar.

Abra sua mão.

Vazia? Vazia. Aqui está uma mão

Pronta a enchê-la e disposta

A trazer um chá e aliviar enxaquecas

E fazer tudo o que você disser.

Quer casar com ele?

É garantido

Para lhe fechar os olhos no fim

E dissolver de tristeza.

Fazemos tudo de novo com o sal.

Estou vendo que você está completamente nu.

Que tal este terno 

Preto e engomado, e bem ajustado.

Vai casar com ele?

É impermeável, à prova de choque, está provado

Que é contra incêndio e bombas no telhado.

Acredite em mim, vão enterrá-lo com ele.

Agora sua cabeça, desculpe-me, está vazia.

Eu tenho o bilhete para isso.

Venha aqui, querida, fora do armário.

Bem, o que você acha disso?

Nua como folha em branco para iniciar

Mas em vinte e cinco anos ela será prata,

Ouro em cinquenta.

Boneca de carne e osso, completamente.

Ela sabe costurar e cozinhar,

Ela sabe falar, falar, falar.

Ela funciona, não tem defeito.

Você tem um buraco, é um cataplasma.

Você tem um olho, é uma imagem.

Meu rapaz, é seu último recurso.

Você vai casar com ela, casar com ela, casar com ela.

Sylvia Plath, a partir do quadro "Homenagem a Mack Sennett", de René Magritte - escancarando os armários do feminino.
tradução: ney ferraz paiva

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013


A Terceira Via

Jonathan me traiu com uma mulher
que não sofreu por ele
um terço do que eu sofri;
uma mulher turista espairecendo na Europa.
Jonathan é bastante tolo.
Estou sem saber se me mudo
para alguém mais ladino,
se espero Jonathan crescer.
Sem desgastar-me, sem gastar um tostão
o moço oferece-me pensamentos diários
com irresistível margem de perigos:
posso ficar tísica,
posso engordar,
posso entender de física,
posso jejuar
produzindo sua imagem na hora mais quente do dia.
Ismália me diz: 'Deus é um tijolo,
está aqui no nariz do meu cachorro.
Eu sou puro pecado'.
E imediatamente come docinho de aletria
com descansada certeza:
'Irei salvar-me porque Deus me ama'.
Não tenho o peito de Ismália
pra chegar perto de Deus.
Por isso fico granindo
e chego perto dos homens,
cheiro a camisa de Pedro,
o travo ingrato de Jonathan.
Todos viram que minha boca secou
quando disse muito prazer e desfaleci na cadeira.
O amor me envergonha.
Da geração da cachaça,
do é ou não é,
do ou casa ou vai pro convento,
não posso ser gay e dizer: depende,
vou ver, vou tratar do seu caso.
Comigo é na pândega
ou na santidade mais rigorosa.
Eu não servia para ter nascido,
para comer com boca, andar com pés
e Ter dentro de mim oito metros de tripas
desejando a filigrana de tua íris
cuja cor não digo para não estragar tudo
e novamente ficar coberta de ridículo.
Sei agora, a duras penas,
porque os santos levitam.
Sem o corpo a alma de um homem não goza.
Por isso Cristo sofreu no corpo a Sua paixão,
adoro Cristo na Cruz.
Meu desejo é atômico,
minha unha é como meu sexo.
Meu pé te deseja, meu nariz.
Meu espírito – que é alento de Deus em mim – te deseja
pra fazer não sei o quê com você.
Não é beijar, nem abraçar, muito menos casar
e ter um monte de filhos.
Quero você na minha frente extático
– Francisco e o Serafim, abrasados –,
e eu para todo o sempre
olhando, olhando, olhando... 

Adélia Prado
Calvato

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

ITINERÁRIO


Rumor de risos, vozes, tinir de louças, é dia de festa e 

comemoram um santo ou


um aniversário. Meus primos e primas, maiores, 


pulam no terraço. Há um ir e


vir de gente que passa ao lado do vulto sem se deter. 


O vulto chora. Desde


séculos chora e ninguém o ouve. É o único que chora 


seu pranto. Extraviou-se


num mundo que é, ao mesmo tempo, familiar e 


remoto, íntimo e indiferente. 


Não é um mundo hostil: é um mundo estranho, 


embora familiar e cotidiano, 


como as guirlandas da parede impassível, como as 


risadas da sala de jantar. 


Instante interminável: ouvir a si mesmo chorar em 


meio à surdez universal... 


Não lembro mais. Sem dúvida minha mãe me 


acalmou: a mulher é a porta de 


reconciliação com o mundo. Mas a sensação não se 


apagou nem se apagará. 


Não é uma ferida, é um oco. Quando penso em mim, 


toco nele; ao apalpar-me, 


o apalpo. Alheio sempre e sempre presente, nunca 


me deixa, presença sem 


corpo, mudo, invisível, perpétua testemunha de 


minha vida. Não fala comigo, 


mas eu, às vezes, ouço o que seu silêncio me diz: esta 


tarde começaste a ser tu 


mesmo; ao descobrir-me, descobriste tua ausência, 


teu oco: te descobriste. Já 


sabes, és carência, busca. 





Octavio Paz

Mel Bochner

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

LÊDO IVO CONTINUA VIVO

APENAS TOMOU O CAMINHO DO 

HOSPÍCIO



ASILO SANTA LEOPOLDINA


Todos os dias volto a Maceió.

Chego nos navios desaparecidos, nos trens sedentos, nos aviões 

cegos

Que só aterrizam ao anoitecer.

Nos coretos das praças brancas passeiam caranguejos.

Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar

Fluindo docemente dos sacos armazenados nos trapiches

e clareiam o sangue velho dos assassinados.

Assim que desembarco tomo o caminho do hospício.

Na cidade em que meus ancestrais repousam em cemitérios

marinhos

só os loucos de minha infância continuam vivos e à minha 

espera.

Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos

e gestos obscenos ou espalhafatosos.

Perto, no quartel, a corneta que chia

Separa o pôr-do-sol da noite estrelada.

Os loucos langorosos dançam e cantam entre as grades.

Aleluia! Aleluia! Além da piedade

a ordem do mundo fulge como uma espada.

E o vento do mar oceano enche os meus olhos de lágrimas.


Lêdo Ivo