o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013


A Terceira Via

Jonathan me traiu com uma mulher
que não sofreu por ele
um terço do que eu sofri;
uma mulher turista espairecendo na Europa.
Jonathan é bastante tolo.
Estou sem saber se me mudo
para alguém mais ladino,
se espero Jonathan crescer.
Sem desgastar-me, sem gastar um tostão
o moço oferece-me pensamentos diários
com irresistível margem de perigos:
posso ficar tísica,
posso engordar,
posso entender de física,
posso jejuar
produzindo sua imagem na hora mais quente do dia.
Ismália me diz: 'Deus é um tijolo,
está aqui no nariz do meu cachorro.
Eu sou puro pecado'.
E imediatamente come docinho de aletria
com descansada certeza:
'Irei salvar-me porque Deus me ama'.
Não tenho o peito de Ismália
pra chegar perto de Deus.
Por isso fico granindo
e chego perto dos homens,
cheiro a camisa de Pedro,
o travo ingrato de Jonathan.
Todos viram que minha boca secou
quando disse muito prazer e desfaleci na cadeira.
O amor me envergonha.
Da geração da cachaça,
do é ou não é,
do ou casa ou vai pro convento,
não posso ser gay e dizer: depende,
vou ver, vou tratar do seu caso.
Comigo é na pândega
ou na santidade mais rigorosa.
Eu não servia para ter nascido,
para comer com boca, andar com pés
e Ter dentro de mim oito metros de tripas
desejando a filigrana de tua íris
cuja cor não digo para não estragar tudo
e novamente ficar coberta de ridículo.
Sei agora, a duras penas,
porque os santos levitam.
Sem o corpo a alma de um homem não goza.
Por isso Cristo sofreu no corpo a Sua paixão,
adoro Cristo na Cruz.
Meu desejo é atômico,
minha unha é como meu sexo.
Meu pé te deseja, meu nariz.
Meu espírito – que é alento de Deus em mim – te deseja
pra fazer não sei o quê com você.
Não é beijar, nem abraçar, muito menos casar
e ter um monte de filhos.
Quero você na minha frente extático
– Francisco e o Serafim, abrasados –,
e eu para todo o sempre
olhando, olhando, olhando... 

Adélia Prado
Calvato

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

ITINERÁRIO


Rumor de risos, vozes, tinir de louças, é dia de festa e 

comemoram um santo ou


um aniversário. Meus primos e primas, maiores, 


pulam no terraço. Há um ir e


vir de gente que passa ao lado do vulto sem se deter. 


O vulto chora. Desde


séculos chora e ninguém o ouve. É o único que chora 


seu pranto. Extraviou-se


num mundo que é, ao mesmo tempo, familiar e 


remoto, íntimo e indiferente. 


Não é um mundo hostil: é um mundo estranho, 


embora familiar e cotidiano, 


como as guirlandas da parede impassível, como as 


risadas da sala de jantar. 


Instante interminável: ouvir a si mesmo chorar em 


meio à surdez universal... 


Não lembro mais. Sem dúvida minha mãe me 


acalmou: a mulher é a porta de 


reconciliação com o mundo. Mas a sensação não se 


apagou nem se apagará. 


Não é uma ferida, é um oco. Quando penso em mim, 


toco nele; ao apalpar-me, 


o apalpo. Alheio sempre e sempre presente, nunca 


me deixa, presença sem 


corpo, mudo, invisível, perpétua testemunha de 


minha vida. Não fala comigo, 


mas eu, às vezes, ouço o que seu silêncio me diz: esta 


tarde começaste a ser tu 


mesmo; ao descobrir-me, descobriste tua ausência, 


teu oco: te descobriste. Já 


sabes, és carência, busca. 





Octavio Paz

Mel Bochner

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

LÊDO IVO CONTINUA VIVO

APENAS TOMOU O CAMINHO DO 

HOSPÍCIO



ASILO SANTA LEOPOLDINA


Todos os dias volto a Maceió.

Chego nos navios desaparecidos, nos trens sedentos, nos aviões 

cegos

Que só aterrizam ao anoitecer.

Nos coretos das praças brancas passeiam caranguejos.

Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar

Fluindo docemente dos sacos armazenados nos trapiches

e clareiam o sangue velho dos assassinados.

Assim que desembarco tomo o caminho do hospício.

Na cidade em que meus ancestrais repousam em cemitérios

marinhos

só os loucos de minha infância continuam vivos e à minha 

espera.

Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos

e gestos obscenos ou espalhafatosos.

Perto, no quartel, a corneta que chia

Separa o pôr-do-sol da noite estrelada.

Os loucos langorosos dançam e cantam entre as grades.

Aleluia! Aleluia! Além da piedade

a ordem do mundo fulge como uma espada.

E o vento do mar oceano enche os meus olhos de lágrimas.


Lêdo Ivo


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012




Em conversa com Thomas Bernhard


Hofmann: Vamos jogar um pequeno jogo. O senhor não é agora
o Thomas Bernhard, mas um vizinho, um agricultor.

Bernhard: E eu tenho que dizer então qualquer coisa sobre o

Thomas Bernhard?

Hofmann: Sim, sim. Há quanto tempo mora já o Thomas

Bernhard em Ohlsdorf?

Bernhard: A mim não me parece que haja tanto tempo, mas ele
afirma que há 25 anos. Mas ele continua a ser novo.

Hofmann: Já falou alguma vez com ele? Têm contato?

Bernhard: Uma vez por ano. Ele muito raramente sai de casa, e
então vai à igreja.

Hofmann: Aonde é que ele vai?

Bernhard: À igreja.

Hofmann: Quando?

Bernhard: De noite, quando mais ninguém vai. Publicamente
não se atreve. Ele afirma que não tem nenhuma relação com a
igreja e assim isso é provavelmente desagradável para ele.

Hofmann: E como é que ele é, quando o encontra?

Bernhard: Tímido, muito tímido. Misantropo. Preguiçoso e
misantropo.

Hofmann: Com certeza vêm aqui jornalistas. Vêm então ter

consigo?

Bernhard: Eles vêm então ter comigo e não com ele. E às vezes
conto alguma coisa sobre ele. Como ele está e como vai.

Hofmann: O senhor é agricultor de profissão.

Bernhard: Sou, fui sempre agricultor. Os meus avós eram
agricultores, e todos eram agricultores. Os meus filhos também

são...

Hofmann: O que é que pensa de alguém que...

Bernhard: Que não é agricultor?

Hofmann: Que escreve...

Bernhard: isso é uma idiotice, porque não tem utilidade para
ninguém e não serve de nada. Nada.

Hofmann: Leu alguma coisa dele?

Bernhard: Sim, uma vez. Mas aborrece-me.

Hofmann: O quê?

Bernhard: Já não sei. Ele só diz disparates. É só destrutivo e
perverso e tudo isso.



Em Conversa com Thomas Bernhard, de Kurt Hofmann, traduzido por José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Agosto, 2006.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Luca Mantovanelli


Pássaro Azul



há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu sou demasiado duro para ele,

e digo, fica aí dentro,


não vou deixar ninguém ver-te.

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu despejo whisky para cima dele

e inalo fumo de cigarros

e as putas e os empregados do bar

e os funcionários da mercearia

nunca saberão que ele se encontra

lá dentro.


há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu sou demasiado duro para ele,

e digo, fica escondido,

queres arruinar-me?

queres foder-me o

meu trabalho?

queres arruinar

as minhas vendas de livros

na Europa?

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu sou demasiado esperto,

só o deixo sair à noite

por vezes

quando todos estão a dormir.

digo-lhe, eu sei que estás aí,

por isso

não estejas triste.

depois,

coloco-o de volta,

mas ele canta um pouco lá dentro,

não o deixei morre de todo

e dormimos juntos

assim

com o nosso

pacto secreto

e é bom o suficiente

para fazer um homem chorar,

mas eu não choro,

e tu?


Charles Bukowski

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012



A armadilha do diário 

por Maurice Blanchot


O interesse do diário é sua insignificância. Essa é sua inclinação, 

sua lei. Escrever cada dia, sob a garantia desse dia e para lembrá-lo 

a si mesmo, é uma maneira cômoda de escapar ao silêncio, como ao 

que há de extremo na fala. Cada dia nos diz alguma coisa. Cada dia 

anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação. Assim, 

vivemos duas vezes. Assim, protegemo-nos do esquecimento e do 

desespero de não ter nada a dizer. "Prendamos com alfinetes nossos 

tesouros", diz horrorosamente Barrès; e Charles du Bos, com a 

simplicidade que lhe é própria: "O diário, na origem, representou 

para mim o supremo recurso para escapar ao desespero total diante 

do ato de escrever"; e também: "O curioso, no meu caso, é quão 

pouco tenho o sentimento de viver quando meu diário não recolhe 

seu depósito". Mas que um escritor tão puro quanto Virginia Woolf, 

que uma artista tão empenhada em criar uma obra que retivesse 

somente a transparência, a auréola luminosa e os leves contornos 

das coisas, tenha se sentido de certa maneira obrigada a voltar para 

junto de si, num diário tagarela em que o Eu se derrama e se 

consola, isso é significativo e perturbador. O diário aparece aqui 

como uma proteção contra a loucura, contra o perigo da escrita. Lá, 

em As Ondas, ruge o risco de uma obra em que é preciso 

desaparecer. Lá, no espaço da obra, tudo se perde e talvez a própria 

obra se perca. O diário é a âncora que raspa o fundo do cotidiano e 

se agarra às asperezas da vaidade. Da mesma forma, Van Gogh tem 

suas cartas e um irmão para quem escrevê-las.

Parece haver, no diário, a feliz compensação, uma pela outra, de 

uma dupla nulidade. Aquele que nada faz de sua vida escreve que 

não faz nada, e eis, apesar de tudo, algo de feito. Aquele que se 

deixa desviar da escrita pelas futilidades do dia, agarra-se a esses 

nadas para contá-los, denunciá-los ou gozá-los, e eis um dia 

preenchido. É "a meditação do zero sobre ele mesmo", de que fala, 

valentemente, Amiel.

A ilusão de escrever, e por vezes de viver, que ele dá, o pequeno

recurso contra a solidão que ele garante [...], a ambição de eternizar 

os belos momentos e mesmo de fazer da vida toda um bloco sólido 

que se pode abraçar com firmeza, enfim a esperança de, unindo a 

insignificância da vida com a inexistência da obra, elevar a vida 

nula à bela surpresa da arte, e a arte informe à verdade única da 

vida, o entrelaçamento de todos esses motivos faz do diário uma 

empresa de salvação: escreve-se para salvar a escrita, para salvar 

sua vida pela escrita, para salvar seu pequeno eu (as desforras que 

se tiram contra os outros, as maldades que se destilam) ou para 

salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e então se escreve 

para não se perder na pobreza dos dias ou, como Virginia Woolf, 

como Delacroix, para não se perder naquela prova que é a arte, que 

é a exigência sem limite da arte. 

O que há de singular nessa forma híbrida, aparentemente tão fácil, 

tão complacente e, por vezes, tão irritante pela agradável 

ruminação de si mesmo que mantém (como se houvesse o menor 

interesse em pensar em si, em voltar-se para si mesmo), é que ela é 

uma armadilha. Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos sua 

salvação à escrita, que altera o dia. Escrevemos para nos salvar da 

esterilidade, mas nos tornamos Amiel que, voltando-se para as 

catorze mil páginas em que sua vida se dissolveu, reconhece nelas o 

que o arruinou "artística e cientificamente", por "uma preguiça 

ocupada e um fantasma de atividade intelectual". Escrevemos para 

nos lembrar de nós, mas, diz Julien Green: "Eu imaginava que 

aquilo que anotava reanimaria, em mim, a lembrança do resto... mas 

hoje nada mais resta senão algumas frases apressadas e 

insuficientes, que me dão, de minha vida passada, apenas um 

reflexo ilusório". Finalmente, portanto, não se viveu nem se 

escreveu, duplo malogro a partir do qual o diário reencontra sua 

tensão e sua gravidade.


terça-feira, 11 de dezembro de 2012


Plegária

Verde, âmbar as
pedras,
e as violetas rosadas –
eternas e o humo que
cobria o chão negro
como a noite, e quisera
falar-lhe em seu idioma
antigo
e recordar os lobos
correndo ao redor da
casa e a hera selvagem
cobrindo os vestidos e
os animais, pequenos,
nos bordados coloridos e
ramitos a entreabrir-se
brancos e escuros, cristal
de la luna ao reflexo
como a aparição das
lebres e das ovelhas
correndo os campos sob
as nuvens e a subterra
profunda do horto na
pele do ar em minutos
precisos, envolvendo o
tempo quando vi morrer
o sol, e o vento girando,
soprando mirações da
cor da água, nas rosas e
nos insetos. Quisera falar
seu idioma antigo e
guardar-lhe nas luzitas
do espelho como os
cravos também tão
antigos sobre a toalha
branca, e uma lua de
seda derrama um rosário
de ouro mais os rumores
de um sonho, quisera.


Jussara Salazar

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012





POR VEZES


Quando conheces alguém
mais inteligente ou mais estúpido do que tu –
não faças caso disso.
As formigas e os deuses,
acredita, sentem o mesmo.
Que exista mais gente na China,
digamos, que em San Marino,
não é uma desgraça.
A maioria das pessoas, sem dúvida, é
mais negra ou mais branca que tu.
Por vezes és um gigante,
qual Gulliver, ou um anão.
Em algum lugar ou outro estás sempre a descobrir
uma beleza ainda mais radiante,
alguém ainda pior.
És medíocre,
felizmente. Aceita-o!
Sete graus centígrados a mais
ou a menos no termômetro -
e estarias além da salvação.


HANS MAGNUS ENZENBERGER
Imagem: Duane Michals