o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

POEMAS MUNDANOS
21 DE JUNHO DE 1962


Trabalho todo dia como um monge
e à noite vagueio, como um gato
à cata de amor… Vou sugerir
à Cúria que me santifique.
Com efeito, respondo à mistificação
com a mansidão. Olho com olhos
de imagem os que vão linchar-me.
Observo o meu massacre com a coragem
serena de um sábio. Pareço
sentir ódio, mas escrevo
versos cheios de amor atento.
Estudo a perfídia como um fenômeno
fatal, como se dela não fosse objeto.
Tenho pena dos jovens fascistas,
e aos velhos, que são para mim formas
do mais horrível mal, oponho
apenas a violência da razão.
Passivo como um pássaro que, voando,
tudo vê, e, no seu vôo para o céu,
leva no coração a consciência
que não perdoa.



Pier Paolo Pasolini 

sábado, 10 de novembro de 2012



NOITE ROMANA

Sexo, consolo da miséria!
A puta é uma rainha, o seu trono
são ruínas, a sua terra um naco
de prado merdoso, o seu cetro
uma bolsa de verniz vermelho:
ladra na noite, porca e feroz
como uma mãe antiga: defende
o seu território e a sua vida.
Os chulos, em redor, em bandos,
soberbos e pálidos, com bigodes
brindesianos ou eslavos, são 
chefes, regentes: tramam,
nas trevas, os seus negócios de cem liras,
pestanejando em silêncio, trocando
palavras de ordem: o mundo, excluído, cala-se
à volta deles, que dele estão excluídos,
carcaças silenciosas de aves de rapina.

Mas nos destroços do mundo, nasce
um novo mundo, nascem leis novas
onde não há lei; nasce uma nova
honra onde a honra é desonra…
Nascem poderes e nobrezas,
ferozes, nos montes de tugúrios,
nos lugares perdidos onde se julga
que a cidade acaba, mas onde
recomeça, inimiga, recomeça
por milhares de vezes, com pontes
e labirintos, estaleiros e aterros,
atrás de vagas de arranha-céus
que velam horizontes inteiros.

Na facilidade do amor
o miserável sente-se homem:
firma tanto a fé na vida, que
despreza quem outra vida tem.
Os filhos lançam-se à aventura,
certos de estarem num mundo
que os teme, a eles e ao seu sexo.
A sua piedade é não terem piedade,
a sua força é não terem cuidados,
a sua esperança é não terem esperança.

Pier Paolo Pasolini

recortando a noite como se fosse 
com uma faca


a noite perde a pele
agressiva é a escuridão
ter corpo alma & uma rosa
 na lapela
e o caminho duro das palavras
e o silêncio depois da festa
olhos perfurados pra ver melhor
 a dissipação do mistério




ney ferraz paiva
matt mahurin

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Poesia como prática = Outridade

 (Octavio Paz)


págs. 96-97.

[...] não há poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é palavra social; não há sociedade sem poesia, mas a sociedade não pode realizar-se nunca como poesia, nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a desvincular-se. Não podem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversação mútua. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada.

Uma comunidade criadora seria aquela sociedade universal em que as relações entre os homens, longe de ser uma imposição da necessidade exterior, fossem como um tecido vivo, feito da fatalidade de cada um ao enlaçar-se com a liberdade de todos. Essa sociedade seria livre porque, dona de si mesma, nada exceto ela mesma poderia determiná-la; e solidária porque a atividade humana não consistiria, como ocorre hoje, no domínio de uns sobre outros (ou na rebelião contra esse domínio) e sim procuraria o reconhecimento de cada um por seus iguais, ou melhor, por seus semelhantes. A idéia cardeal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de uma sociedade universal que, ao abolir as opressões, desenvolva simultaneamente a identidade ou semelhança original de todos os homens e a radical diferença ou singularidade de cada um. O pensamento poético não tem sido alheio às vicissitudes e aos conflitos dessa empresa literalmente sobre-humana. A gesta da poesia ocidental, desde o romantismo alemão, foi a de suas rupturas e reconciliações com o movimento revolucionário. Em um movimento ou noutro, todos os nossos grandes poetas acreditaram que na sociedade revolucionária, comunista ou libertária, o poema cessaria de ser esse núcleo de contradições que ao mesmo tempo nega e afirma a história. Na nova sociedade a poesia seria por fim prática.

págs.100 e 101

[...] A idéia de uma comunidade universal na qual, pela abolição das classes e do Estado, cesse o domínio de uns sobre outros e a moral da autoridade e do castigo seja substituída pela da liberdade e da responsabilidade pessoal – uma sociedade em que, ao desaparecer a propriedade privada, cada homem seja proprietário de si mesmo e essa propriedade individual seja literalmente comum, compartida por todos graças à produção coletiva; a idéia de uma sociedade na qual se apague a distinção entre o trabalho e a arte, essa idéia é irrenunciável. Não só constitui a herança do pensamento moral e político do ocidente desde a época da filosofia grega, como faz parte da nossa natureza histórica. Renunciar a ela é renunciar a ser o que desejou ser o homem moderno, renunciar a ser. Não se trata unicamente de uma moral nem de uma filosofia política. O marxismo é a última tentativa do pensamento ocidental para conciliar razão e história. A visão de uma sociedade universal comunista está ligada a outra: a história é o lugar da encarnação da razão. Ou mais exatamente: o movimento da história ao desdobrar-se, revela-se como razão universal. Algumas vezes a realidade da história desmente esta idéia; algumas vezes procuramos um sentido para a sangrenta agitação. Estamos condenados, a buscar a razão da desrazão. É verdade que, se há de surgir um novo pensamento revolucionário, terá que absorver duas tradições desdenhadas por Marx e seus herdeiros: a libertária e a poética, entendida esta última como experiência de outridade; não é menos certo que este pensamento, tal como o marxismo, será crítico e criador; conhecimento que abraça a sociedade em sua realidade concreta e em seu movimento geral e a transforma. Razão ativa.

Manuel Alvarez Bravo
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. Coleção Debates. Editora Perspectiva.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012









INVESTIGANDO A VIDA DE UM TEXTO BASTARDO
Paulo Leminski

1
"Joyce é o maior prosador do século XX". Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contestação, extremos. Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust. Há Kafka. Thomas Mann. – Faulkner! No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico. – Solidão aristocrática.– Insensibilidade aos problemas reais do seu povo. – Elitismo hermético.– Intelectualismo pedante e cosmopolita. Do outro lado, cada vez mais abundantes os que objetam. Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve. – Maior que Cervantes? E Quevedo? – E Balzac? – E Stendhal? E Flaubert? – E Dostoievski?! E Tolstoi?! Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior? Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida). Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de "Dublinenses" (1906), "Retrato do Artista Quando Jovem" (1914), "Ulysses" (1922) e "Finnegans Wake" (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um "romance de formação" (um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as "Confissões", de S. Agostinho), os "Dublinenses" e o "Retrato" ainda cabem dentro da estética textual do século XIX. "Ulysses", porém, é puro século XX, o século das megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o "Wake". Mas o "Ulysses" ainda é, apesar de tantas inovações, um romance,mesmo que seja o "romance para acabar com todos os romances", do dito célebre. O "Wake" já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê? "Ulysses" foi difícil (é cada vez menos). O "Wake", cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto).(1)
A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no "Ulysses", fazem, hoje, parte do repertório comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em "Xogun", "best-seller" mundial,James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda."Ulysses"/Joyce é influência determinante na prosa mais criativa deste século. E a lista dos influenciados, clireta ou in-diretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Virgínia Woolf, Musil ("O Homem Sem Qualidades"), Broch ("A Morte de Virgílio"), Guimarães Rosa, Carlo Emílio Gadda, Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...

2
Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre as quatro obras-primas de Joyce.Nos trinta anos entre os "Dublinenses" e o "Wake", sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica.O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido.Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia taxa, "agenbite of inwit", memória, o único tempo possível,Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, crescendo, dos "Dublinenses" ao "Wake". Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.

3
"Os Dublinenses": a Irlanda, vista do lado de fora."Retrato do Artista" : a Irlanda, vista de dentro."Ulysses": entrechoque entre o fora e o dentro, "monólogo interior", o Dia, a História."Finnegans Wake": síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras-primas, "Giacomo Joyce" faz as vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica.Alinha, assim, com os livros de poemas, "Chamber Music" e "Pomes Penyeach", performances líricas de uma maestria métrica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos "Cantares" de Ezra Pound e do "Waste Land", de T. S. Eliot.Ou com "Exiles", a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou.Mas, por favor, não façamos pouco de "Giacomo Joyce". Quando o escreveu, Joyce, terminando o "Retrato" e grávido do "Ulysses", já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Europa.Em "Giacomo Joyce", já dá pra ver o surgimento dos germes do "monólogo interior", a técnica central do "Ulysses" e uma das grandes conquistas da ficção do século XX.Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro romance francês do século passado, "Les Lauriers Sont Coupés" (1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada ao movimento simbolista.Esse "monólogo interior" parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índices do tipo, "disse consigo", "pensou", "refletiu", e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor.A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, linguisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si, em lugar de um narrador. É a linguagem de Deus, o narrador onisciente.O monólogo interior representa um princípio de economia narrativa. E, consequentemente, um aumento de velocidade no tempo do texto e da leitura.Alguns traços dele em "O Vermelho e o Negro", de Stendhal (1830).E em Dostoiesvski (1821-1881).O monólogo interior, de resto, representa uma espécie de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda. Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar. Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no espaçotempo, sem antes nem depois.No quarto bloco de "Giacomo Joyce", a voz que diz "alguém quer falar com a senhorita" já comparece sem aviso, como numa página de "Ulysses".

4
Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que fale Richard Ellmann.(2) Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não fosse a solicitude de um irmão.Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico, isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele momento."Giacomo Joyce" é uma novela, cinematográfica, ideogrâmica, como uma peça Nô, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.Neste texto, o arquiteto de "Ulysses" ensaiou, orquestrando relâmpagos.Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.

Paulo Leminski Curitiba, 5 de janeiro de 1985.
Do livro "Giacomo Joyce" Editora Brasiliense, 1985
Imagem: Eugenio Recuenco

(1) É preciso entender, é claro, que a incompreensibilidade de uma obra é, como tudo mais, historicamente determinada: questão que sucessivas leituras irão pouco a pouco resolvendo, até criar em torno do corpo estranho certo número suficiente de constelações hermenêuticas, interpretações, diluições, sobretudo, que nos permita pisar no terreno firme da redundância, do já sabido, do "estou começando a entender". Em arte, o novo sempre se manifesta sob a modalidade do difícil.(Nota de Leminski)(2) Referência à introdução de Richard Ellmann ao livro "Giacomo Joyce"

domingo, 21 de outubro de 2012

Desenho de Giselda Leirner


TODOS CANTAM SUA SEMANA...
por MAX MARTINS


Domingo – Compadre, eufórico, copinho de batida de jenipapo na mão, balançava o copo satisfeito, sentado na rede armada no quintal. Sacudia a pedra de gelo no copo, semicerrava os olhos por um instante, como se quisesse ouvir melhor o ciscar das galinhas. Eram duas horas da tarde. Eu o invejava.

Segunda feira – O bilhete marcava um encontro para as dez e pedia o endosso de uma promissória. As dez encontramo-nos. Tudo foi acertado, mais quinhentos cruzeiros que lhe emprestei. Para os selos.

Terça-Feira – Debaixo do birô as pontas de cigarro atestavam o meu mau humor. O lápis arranhava o papel. Os números indo saindo indiferentes, muito cínicos. Iam alinhando-se na folha comuns diabinhos.

— Clarinha telefona. Está ainda inconsolável porque domingo não foi a Salinópolis. O senhor diretor não deu o vale para a compra do maiô. “Fiquei chateadíssima o domingo todo”. Clarinha tem 22 anos e um precário noivo na Guanabara há seis meses. Outro dia pediu que eu escrevesse pra ela uma carta “saudosa” ao Luiz. Clarinha sabe chatear.

Quarta-Feira – José me escreve do Rio. Fala de coisas “secretíssimas” é a prima Helena, sua atual amante. Todo mundo sabe. O que se ignora é se ela será a última como ele diz. “Essa mulher é pra toda vida”. Ela e Mariinha (Mariinha é sua mulher). José é um pouco complicado, mas boa praça.

Quinta-Feira – “Camões também tem borradas como toda gente e tem passos no Lusíada que são uma caceteação, a gente lê porque, por preconceito, quer dizer que leu os Lusíadas. Eu nunca li o Lusíada inteirinho. Me causa, fica pro dia seguinte e não pego mais”. Isto foi dito por Mário de Andrade, Escoei a tarde lendo as cartas dele.

Sexta-Feira – Minha filha menor me pede um laboratório químico de brinquedo para inventar uma droga que a torne invisível.
O mundo marcha. Com a idade dela eu queria um avião para descer com ele em frente à escola e raptar a professora.

Sábado – Porque é sábado, tome Vinicius. O poeta detesta as mulheres que fazem ginástica. “Ela era uma madona de formas arredondadas e modelo grande. A mulher não nasceu para as fitas métricas e, sim, para os homens que as amam”.

— Numa rede, copinho na mão (batida de maracujá), não mais o compadre. O copo está comigo e eu na rede, folheando a prova escrita da minha filha mais velha. Bahia, capital Salvador. Me vem na memória Mario Cravo e o Dr. Rui Barbosa.

— Alguém me perguntou se vou entrar para Academia. Fico admirado. Se todo mundo pensa que sou de lá... Não minto nem desminto. A Academia dá um certo cartaz. Na repartição, no ônibus, entre os vizinhos. Ruim é quando me pedem para escrever uma mensagem de aniversario para o rádio. “O Sr. Sabe. O Sr. É “imortal”, sabe manejar as palavras”. Sempre faço as mensagens. Sou uma boa pessoa, perfeitamente transitável entre meus semelhantes.

— Joca me pede um soneto para a namorada, Marco Aurélio uma gravata para uma festa. Minha mulher um pic nic, minha filha uma bicicleta. Maria quer um abraço, Meireles uma carta de apresentação. Só ainda não dei a bicicleta.



Crônica publicada no jornal A FOLHA DO NORTE, anos 1940.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

ballet & metamorfose

minha mãe foi morar com outra mulher
um amor que estava já por aí ao ar livre 

mas não se desejavam em segredo: em 
segredo amar não é sempre o bastante



ney ferraz paiva
gui mohallem

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O JARDIM DO SOLAR


As fontes estão secas e as rosas acabaram.
Incenso da morte. O teu dia aproxima-se.
As peras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul prolonga o lago.

Moves-te através da era dos peixes,
dos presumidos séculos do porco...
A cabeça, os dedos dos pés e das mãos
saem nítidos da sombra. A História


alimenta estas caneluras quebradas,
estas coroas de acantos,
e o corvo vem arranjar as suas vestes.
Tu herdas a urze branca, uma asa de abelha.

Dos suicidas, os lobos da família,
horas de escuridão. Algumas estrelas isoladas
já iluminam os céus.
A aranha na sua própria teia

atravessa o lago. Os vermes
abandonam as suas casas habituais.
As pequenas aves convergem, convergem
com as suas dúvidas para um difícil nascimento.


Sylvia Plath
tradução: Maria de Lourdes Guimarães
imagem: Eugenio Recuenco

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

ESQUECIMENTO


Há dúzias de maneiras de se fazer isso –
de uma ponte, da traseira de um barco,
pílulas, cabeça no forno ou
embrulhada no velho casaco mink da mãe,
na garagem, uma pisada no acelerador,
o motor do Cougar rangendo
enquanto ela atravessa.

O que elas deixaram pra trás –
o esboço de um romance protelado, diários,
seus melhores poemas, o bilhete que termina em
agora você acreditará em mim,
descendência de várias épocas, cônjuges
que se preocupavam e ainda choram ou
admitem alívio agora que isso acabou.

Como elas inflamam, os velhos detalhes
expostos à luz com um ícone de vidro colorido – a espingarda na boca, o barbante no dedo do pé ao gatilho; a língua
uma ameixa azul forçada entre os lábios
quando ele se enforcou nos aposentos dela –
(para nós isso nunca acaba)

que roubou a cena, cortou o nariz,
puxou a tomada da banheira na água rósea,
quebrou janelas, fechou o gás,
passeou de ambulância, apenas minutos depois
de carregar o corpo rebentado de más notícias.
Estamos, cada um de nós, presos na armadilha deste enredo.
Deixados para trás, não há esquecimento.





Maxine Kumin
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Eugenio Recuenco

terça-feira, 2 de outubro de 2012

CONTINUUM: UM POEMA DE AMOR 

indo para a videira com
a escada de mão e o balde na
primeira chuva cortante 
de setembro chuva
embebendo o cisco

num alegre ruído o céu
levantando-se como vapor
de um tacho de uvas
a ferver selvagens uvas azedas
malvadamente altas envolvidas num sumo
de teia de aranha e espuma de inseto
indo para videira ano
após ano nós dois com uma escada de mão e balde manchado
pela chuva de uvas
nossa secreta linguagem







Maxine Kumin
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Tim Walker

domingo, 23 de setembro de 2012



1.
Primeiros sinais da manhã
na madrugada ainda de mão fechada
sobre a garganta das árvores.
No escuro antes da alba
de flautas geladas,
flui mais que o orvalho
nublado do piar de pássaros:
uma, duas, três vezes
três aves até ser incontável,
por toda parte, um parque
de canoros fantasmas
na hora da nossa sorte,
amém.
Morte de horas atrás,
azar recente do ontem
irreal, absurdo
(como a palavra “azar”
afastada do vocabulário
dos supersticiosos).
Azar, azar, azar.
Piar, piar, piar
e retinir do bronze de sinos
na distância matinal,
enquanto tão próximas
são as dissonantes aves
com o silêncio da solidão
a dois no quarto.
Um oculto coro
perto
longe
como agora estamos,
unidos
separados
apesar da palavra “amem”
sem o assento de Deus
para sempre esmagando-a
também (o trono da divindade
vazio como a dispensa dos pobres).
2.
Os excitados passarinhos (assim,
no diminutivo das penas)
sabem do coração cerrado
da noite que passou?…
Na manhã de empoeiradas árvores,
o rio claro de presente
sucede o escuro mar
do que já foi,
do que ficou para trás,
e não podem saber,
os pássaros,
sobre seus anúncios de cantores
soarem mais fúnebres do que o dobrar
das matinas aos dois ouvidos humanos
divididos pelas sombras do que foi dito
e do que foi calado antes da alva,
na hora anterior ao amanhecer
dos proclamas festivos
de aves invisíveis
como o canário da infância.
De harmonia furtiva,
a manhã nova continua o breve instante
de acreditar matinalmente em Deus,
para logo maquinalmente desacreditar
Dele,
no seguimento do dia ateu das longas
iniqüidades permitidas se tudo
é apenas e tão somente
o presente interminável
que finge contar as horas
sem contas a ajustar
com nenhuma divindade boa,
má,
antiga,
nova,
impiedosa,
misericordiosa
etc.
3.
Essa também é a hora
de claramente perceber
que tudo se passa na fixidez
do permanente agora
paradoxal nas palavras
ontem
anteontem
semana passada
mês findo
ano passado
décadas atrás…
Não há fuga do tempo
que não apaga
o que nem parecia
vir a ser sob as ondas
já borrado?…
Qual era a praia alegre
do ultrapassado dia
datado no falso calendário?
“Nos separamos na manhã
de tanto de tanto de ano nenhum”,
está escrito no diário
que será esquecido num navio
afundado na mais funda fossa
dos oceanos de infelicidade.
4.
Há (efetivamente há)
o despertar do despertar
menos tímido
do que a própria aurora tateante
sobre as paredes sujas
e as limpas notas dos pássaros
cantando contra os sinos.
As aves avisam sobre um nascimento
— o da manhã —
e não sobre a morte sem céu
nem inferno,
no vazio de cima e no deserto de baixo
— Tabula Esmeralda —
de janela com vista para a rua lavada
da noite chuvosa.
A manhã?
A manhã não espera por nada,
nem traz coisa alguma para ninguém,
oca deusa trocando de roupa
à vista das inocentes aves
cantando porque não sabem
fazer outra coisa.
Como um autômato de corda
de três voltas,
ela troca de túnica nestas primeiras
horas brancas.
E, como tarde dourada,
veste para a negra noite
um longo entardecer em honra
da festa e do luto,
do mirto e do lírio dos campos.
Porém são, todas, a mesma manhã
disfarçada,
a mesma natureza indiferente
a que a vejam nua,
vestida de sol ou velada
pelo eclipse da porta
do tempo que passa
(ou não passa?)…
5.
Vai ser dada a prima volta
do parafuso da manhã
em marcha como marcham
as manhãs de relógios
sem ponteiros
marcando mudanças
somente para a ilusão
da luz neste momento
projetada sobre as árvores.
É manhã!: a primeira sessão
do cinema da realidade:
baixa comédia, alto drama,
beleza, feiúra, claridade,
obscuros mictórios públicos,
jardins luxuriantes,
praças apertadas,
ruínas e construções novas,
de cima a baixo também vestidas
de túnicas… ó Manhã!,
que mudanças poderias trazer
para isso tudo que surge
sob os auspícios
claros, claríssimos,
dos trinados da melro de ouro
de Bizâncio sem esperança
ao enviar seus sábios
ao encontro de um mar
de bárbaros?
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Fragmento do livro Mattinata, de Fernando Monteiro, a quem sempre me refiro como um dos três melhores poetas brasileiros vivos - ainda que a literatura permaneça morta para o grande público no Brasil. E daí? O que se deve entender por isso? Que tudo se amplifica na Grande Máquina de Reprodução da Cultura do Entretenimento, financiada inclusive pelos governos dos estados onde menos se lê? Sim é isso mesmo. Mas o importante aqui é saber que duas editoras se unem para fazer passar essa extraordinária poesia por outros mares que não estes sem rotas-e-encontros em que a mediocridae segue embarcada em direção aos abismos. Trata-se da primeira co-edição de Nephelibata Edições (SC) e Edições Sol Negro (RN), unindo duas pontas extremas do país em torno da literatura. O livro se compõe de dois poemas longos — Mattinata e Para que ser poeta em tempos de penúria? — e um mais curto (Escritos no túmulo), cuja forma semelha à das lápides de necrópoles romanas. O poema que aqui aparece em fragmento é formado por um total de 25 estâncias. A capa de Mattinata é de outro extraordinário artista ignorado pelo grande público, Francisco Brennand.