o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Poesia como prática = Outridade

 (Octavio Paz)


págs. 96-97.

[...] não há poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é palavra social; não há sociedade sem poesia, mas a sociedade não pode realizar-se nunca como poesia, nunca é poética. Às vezes os dois termos aspiram a desvincular-se. Não podem. Uma sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria sociedade transumana em que todos seriam um ou cada um seria um todo auto-suficiente. Uma poesia sem sociedade seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversação mútua. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada.

Uma comunidade criadora seria aquela sociedade universal em que as relações entre os homens, longe de ser uma imposição da necessidade exterior, fossem como um tecido vivo, feito da fatalidade de cada um ao enlaçar-se com a liberdade de todos. Essa sociedade seria livre porque, dona de si mesma, nada exceto ela mesma poderia determiná-la; e solidária porque a atividade humana não consistiria, como ocorre hoje, no domínio de uns sobre outros (ou na rebelião contra esse domínio) e sim procuraria o reconhecimento de cada um por seus iguais, ou melhor, por seus semelhantes. A idéia cardeal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de uma sociedade universal que, ao abolir as opressões, desenvolva simultaneamente a identidade ou semelhança original de todos os homens e a radical diferença ou singularidade de cada um. O pensamento poético não tem sido alheio às vicissitudes e aos conflitos dessa empresa literalmente sobre-humana. A gesta da poesia ocidental, desde o romantismo alemão, foi a de suas rupturas e reconciliações com o movimento revolucionário. Em um movimento ou noutro, todos os nossos grandes poetas acreditaram que na sociedade revolucionária, comunista ou libertária, o poema cessaria de ser esse núcleo de contradições que ao mesmo tempo nega e afirma a história. Na nova sociedade a poesia seria por fim prática.

págs.100 e 101

[...] A idéia de uma comunidade universal na qual, pela abolição das classes e do Estado, cesse o domínio de uns sobre outros e a moral da autoridade e do castigo seja substituída pela da liberdade e da responsabilidade pessoal – uma sociedade em que, ao desaparecer a propriedade privada, cada homem seja proprietário de si mesmo e essa propriedade individual seja literalmente comum, compartida por todos graças à produção coletiva; a idéia de uma sociedade na qual se apague a distinção entre o trabalho e a arte, essa idéia é irrenunciável. Não só constitui a herança do pensamento moral e político do ocidente desde a época da filosofia grega, como faz parte da nossa natureza histórica. Renunciar a ela é renunciar a ser o que desejou ser o homem moderno, renunciar a ser. Não se trata unicamente de uma moral nem de uma filosofia política. O marxismo é a última tentativa do pensamento ocidental para conciliar razão e história. A visão de uma sociedade universal comunista está ligada a outra: a história é o lugar da encarnação da razão. Ou mais exatamente: o movimento da história ao desdobrar-se, revela-se como razão universal. Algumas vezes a realidade da história desmente esta idéia; algumas vezes procuramos um sentido para a sangrenta agitação. Estamos condenados, a buscar a razão da desrazão. É verdade que, se há de surgir um novo pensamento revolucionário, terá que absorver duas tradições desdenhadas por Marx e seus herdeiros: a libertária e a poética, entendida esta última como experiência de outridade; não é menos certo que este pensamento, tal como o marxismo, será crítico e criador; conhecimento que abraça a sociedade em sua realidade concreta e em seu movimento geral e a transforma. Razão ativa.

Manuel Alvarez Bravo
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. Coleção Debates. Editora Perspectiva.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012









INVESTIGANDO A VIDA DE UM TEXTO BASTARDO
Paulo Leminski

1
"Joyce é o maior prosador do século XX". Semelhante afirmação está sujeita a dois tipos de contestação, extremos. Não é bem assim. Maior, em que sentido? Afinal, há Proust. Há Kafka. Thomas Mann. – Faulkner! No terreno ideológico, as objeções se multiplicam pela infinita imbecilidade que caracteriza o pensamento ideológico. – Solidão aristocrática.– Insensibilidade aos problemas reais do seu povo. – Elitismo hermético.– Intelectualismo pedante e cosmopolita. Do outro lado, cada vez mais abundantes os que objetam. Não é o maior prosador do século XX. É o maior prosador que jamais houve. – Maior que Cervantes? E Quevedo? – E Balzac? – E Stendhal? E Flaubert? – E Dostoievski?! E Tolstoi?! Em que sentido, nesse time de gigantes, Joyce vem a ser o maior? Primeiro, claro, pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (e esse domínio sobre a arte é um domínio sobre a vida). Depois, pela coerência arquitetônica única que conseguiu imprimir ao conjunto de sua obra o autor de "Dublinenses" (1906), "Retrato do Artista Quando Jovem" (1914), "Ulysses" (1922) e "Finnegans Wake" (1939). Os dois primeiros livros, um, uma coletânea de contos, e o outro um "romance de formação" (um Bildungsroman, como dizem os alemães, grandes cultores do gênero, que começa, no século V, com as "Confissões", de S. Agostinho), os "Dublinenses" e o "Retrato" ainda cabem dentro da estética textual do século XIX. "Ulysses", porém, é puro século XX, o século das megalópoles, das massas, do comunismo, do fascismo, o século do cinema, do rádio, da psicanálise, da bomba atômica, que encerrou a guerra, que começou no ano em que foi publicado o "Wake". Mas o "Ulysses" ainda é, apesar de tantas inovações, um romance,mesmo que seja o "romance para acabar com todos os romances", do dito célebre. O "Wake" já é um texto para o século XXI, prosa, poesia?, o quê? "Ulysses" foi difícil (é cada vez menos). O "Wake", cápsula do tempo, é ilegível (por enquanto).(1)
A irradiação da obra de Joyce atinge uma área imensa na prosa de ficção do século XX. Suas conquistas técnicas, como o monólogo interior, no "Ulysses", fazem, hoje, parte do repertório comum, do parque de recursos de qualquer ficcionista que preze seu ofício. Hoje em dia, o monólogo interior já foi incorporado até pela ficção dita comercial, de consumo de massas: em "Xogun", "best-seller" mundial,James Clavell tira um belo partido desse recurso, outrora, de vanguarda."Ulysses"/Joyce é influência determinante na prosa mais criativa deste século. E a lista dos influenciados, clireta ou in-diretamente, impressiona pela excelência literária: Faulkner, Beckett, Virgínia Woolf, Musil ("O Homem Sem Qualidades"), Broch ("A Morte de Virgílio"), Guimarães Rosa, Carlo Emílio Gadda, Augusto Roa Bastos, Lezama Lima, Cabrera Infante, Burgess...

2
Impecável a coerência crescente da engenharia de vôo entre as quatro obras-primas de Joyce.Nos trinta anos entre os "Dublinenses" e o "Wake", sempre escreveu-se o mesmo livro, o mesmo universo sempre levado a graus cada vez mais agudos de criatividade verbal e inventiva arquitetônica.O mesmo Universo: a Irlanda, a Irlanda, a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, duende, sempre rebelde e sempre submissa à Inglaterra, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, com toda a parda mediocridade pastosa de Dublin, sua capital, Irlanda papista, abafada debaixo de um catolicismo retrógrado, castrador, aldeão.O mesmo Universo: vidas rotineiras, sem grandeza, sem horizontes, sem sentido.Joyce só partiu para um exílio espontâneo pela Europa (Paris, Zurich, Trieste) para melhor cultivar, à distância, sua obsessão pela Irlanda, execrada e idolatrada na própria veemência dessa execração, idéia taxa, "agenbite of inwit", memória, o único tempo possível,Os temas, os tipos, e até frases inteiras se repetem, crescendo, dos "Dublinenses" ao "Wake". Joyce nunca saiu da Irlanda. Nunca saiu de sua obra.

3
"Os Dublinenses": a Irlanda, vista do lado de fora."Retrato do Artista" : a Irlanda, vista de dentro."Ulysses": entrechoque entre o fora e o dentro, "monólogo interior", o Dia, a História."Finnegans Wake": síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras-primas, "Giacomo Joyce" faz as vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica.Alinha, assim, com os livros de poemas, "Chamber Music" e "Pomes Penyeach", performances líricas de uma maestria métrica e verbal extraordinária, mas apenas um pouco mais que isso, no século dos "Cantares" de Ezra Pound e do "Waste Land", de T. S. Eliot.Ou com "Exiles", a peça que Joyce quis fazer, mas o mundo do teatro nunca amou.Mas, por favor, não façamos pouco de "Giacomo Joyce". Quando o escreveu, Joyce, terminando o "Retrato" e grávido do "Ulysses", já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Europa.Em "Giacomo Joyce", já dá pra ver o surgimento dos germes do "monólogo interior", a técnica central do "Ulysses" e uma das grandes conquistas da ficção do século XX.Joyce teria descoberto o recurso em um obscuro romance francês do século passado, "Les Lauriers Sont Coupés" (1887), de Édouard Dujardin, figura de menor importância, ligada ao movimento simbolista.Esse "monólogo interior" parece consistir, sobretudo, numa súbita (e não anunciada) passagem da terceira para a primeira pessoa no universo do discurso, uma passagem direta, sem índices do tipo, "disse consigo", "pensou", "refletiu", e outros verbos que acusam a interioridade de um emissor.A ficção clássica, realista, naturalista, repousa sobre a falácia da objetividade, fundada, linguisticamente, na terceira pessoa, no pólo do ELE, o pólo das coisas, como se as próprias coisas falassem de si, em lugar de um narrador. É a linguagem de Deus, o narrador onisciente.O monólogo interior representa um princípio de economia narrativa. E, consequentemente, um aumento de velocidade no tempo do texto e da leitura.Alguns traços dele em "O Vermelho e o Negro", de Stendhal (1830).E em Dostoiesvski (1821-1881).O monólogo interior, de resto, representa uma espécie de carnavalização do eixo pronominal do relato. A tarde está linda. Preciso dizer a ela tudo o que sinto. Você não perde por esperar. Ela, eu, você: sem aviso, sem hierarquia, como no fluxo da vida e da consciência, onde eu, tu e ele podem ocupar o mesmo lugar no espaçotempo, sem antes nem depois.No quarto bloco de "Giacomo Joyce", a voz que diz "alguém quer falar com a senhorita" já comparece sem aviso, como numa página de "Ulysses".

4
Das circunstâncias particulares em que foi escrito, que fale Richard Ellmann.(2) Da paixão do professor maduro pela bela aluna judia italiana de Trieste. Dos destinos do manuscrito quase perdido, não fosse a solicitude de um irmão.Para nós interessa, sobretudo, encontrar o Joyce que conhecemos e aprendemos a admirar, senhor de todas as forças da língua inglesa, num momento fragmentário, em mosaico, isomórfico com a situação pessoal que Joyce vivia naquele momento."Giacomo Joyce" é uma novela, cinematográfica, ideogrâmica, como uma peça Nô, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio.Neste texto, o arquiteto de "Ulysses" ensaiou, orquestrando relâmpagos.Bem-vindo de volta à casa, Giacomo Joyce.

Paulo Leminski Curitiba, 5 de janeiro de 1985.
Do livro "Giacomo Joyce" Editora Brasiliense, 1985
Imagem: Eugenio Recuenco

(1) É preciso entender, é claro, que a incompreensibilidade de uma obra é, como tudo mais, historicamente determinada: questão que sucessivas leituras irão pouco a pouco resolvendo, até criar em torno do corpo estranho certo número suficiente de constelações hermenêuticas, interpretações, diluições, sobretudo, que nos permita pisar no terreno firme da redundância, do já sabido, do "estou começando a entender". Em arte, o novo sempre se manifesta sob a modalidade do difícil.(Nota de Leminski)(2) Referência à introdução de Richard Ellmann ao livro "Giacomo Joyce"

domingo, 21 de outubro de 2012

Desenho de Giselda Leirner


TODOS CANTAM SUA SEMANA...
por MAX MARTINS


Domingo – Compadre, eufórico, copinho de batida de jenipapo na mão, balançava o copo satisfeito, sentado na rede armada no quintal. Sacudia a pedra de gelo no copo, semicerrava os olhos por um instante, como se quisesse ouvir melhor o ciscar das galinhas. Eram duas horas da tarde. Eu o invejava.

Segunda feira – O bilhete marcava um encontro para as dez e pedia o endosso de uma promissória. As dez encontramo-nos. Tudo foi acertado, mais quinhentos cruzeiros que lhe emprestei. Para os selos.

Terça-Feira – Debaixo do birô as pontas de cigarro atestavam o meu mau humor. O lápis arranhava o papel. Os números indo saindo indiferentes, muito cínicos. Iam alinhando-se na folha comuns diabinhos.

— Clarinha telefona. Está ainda inconsolável porque domingo não foi a Salinópolis. O senhor diretor não deu o vale para a compra do maiô. “Fiquei chateadíssima o domingo todo”. Clarinha tem 22 anos e um precário noivo na Guanabara há seis meses. Outro dia pediu que eu escrevesse pra ela uma carta “saudosa” ao Luiz. Clarinha sabe chatear.

Quarta-Feira – José me escreve do Rio. Fala de coisas “secretíssimas” é a prima Helena, sua atual amante. Todo mundo sabe. O que se ignora é se ela será a última como ele diz. “Essa mulher é pra toda vida”. Ela e Mariinha (Mariinha é sua mulher). José é um pouco complicado, mas boa praça.

Quinta-Feira – “Camões também tem borradas como toda gente e tem passos no Lusíada que são uma caceteação, a gente lê porque, por preconceito, quer dizer que leu os Lusíadas. Eu nunca li o Lusíada inteirinho. Me causa, fica pro dia seguinte e não pego mais”. Isto foi dito por Mário de Andrade, Escoei a tarde lendo as cartas dele.

Sexta-Feira – Minha filha menor me pede um laboratório químico de brinquedo para inventar uma droga que a torne invisível.
O mundo marcha. Com a idade dela eu queria um avião para descer com ele em frente à escola e raptar a professora.

Sábado – Porque é sábado, tome Vinicius. O poeta detesta as mulheres que fazem ginástica. “Ela era uma madona de formas arredondadas e modelo grande. A mulher não nasceu para as fitas métricas e, sim, para os homens que as amam”.

— Numa rede, copinho na mão (batida de maracujá), não mais o compadre. O copo está comigo e eu na rede, folheando a prova escrita da minha filha mais velha. Bahia, capital Salvador. Me vem na memória Mario Cravo e o Dr. Rui Barbosa.

— Alguém me perguntou se vou entrar para Academia. Fico admirado. Se todo mundo pensa que sou de lá... Não minto nem desminto. A Academia dá um certo cartaz. Na repartição, no ônibus, entre os vizinhos. Ruim é quando me pedem para escrever uma mensagem de aniversario para o rádio. “O Sr. Sabe. O Sr. É “imortal”, sabe manejar as palavras”. Sempre faço as mensagens. Sou uma boa pessoa, perfeitamente transitável entre meus semelhantes.

— Joca me pede um soneto para a namorada, Marco Aurélio uma gravata para uma festa. Minha mulher um pic nic, minha filha uma bicicleta. Maria quer um abraço, Meireles uma carta de apresentação. Só ainda não dei a bicicleta.



Crônica publicada no jornal A FOLHA DO NORTE, anos 1940.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

ballet & metamorfose

minha mãe foi morar com outra mulher
um amor que estava já por aí ao ar livre 

mas não se desejavam em segredo: em 
segredo amar não é sempre o bastante



ney ferraz paiva
gui mohallem

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O JARDIM DO SOLAR


As fontes estão secas e as rosas acabaram.
Incenso da morte. O teu dia aproxima-se.
As peras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul prolonga o lago.

Moves-te através da era dos peixes,
dos presumidos séculos do porco...
A cabeça, os dedos dos pés e das mãos
saem nítidos da sombra. A História


alimenta estas caneluras quebradas,
estas coroas de acantos,
e o corvo vem arranjar as suas vestes.
Tu herdas a urze branca, uma asa de abelha.

Dos suicidas, os lobos da família,
horas de escuridão. Algumas estrelas isoladas
já iluminam os céus.
A aranha na sua própria teia

atravessa o lago. Os vermes
abandonam as suas casas habituais.
As pequenas aves convergem, convergem
com as suas dúvidas para um difícil nascimento.


Sylvia Plath
tradução: Maria de Lourdes Guimarães
imagem: Eugenio Recuenco

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

ESQUECIMENTO


Há dúzias de maneiras de se fazer isso –
de uma ponte, da traseira de um barco,
pílulas, cabeça no forno ou
embrulhada no velho casaco mink da mãe,
na garagem, uma pisada no acelerador,
o motor do Cougar rangendo
enquanto ela atravessa.

O que elas deixaram pra trás –
o esboço de um romance protelado, diários,
seus melhores poemas, o bilhete que termina em
agora você acreditará em mim,
descendência de várias épocas, cônjuges
que se preocupavam e ainda choram ou
admitem alívio agora que isso acabou.

Como elas inflamam, os velhos detalhes
expostos à luz com um ícone de vidro colorido – a espingarda na boca, o barbante no dedo do pé ao gatilho; a língua
uma ameixa azul forçada entre os lábios
quando ele se enforcou nos aposentos dela –
(para nós isso nunca acaba)

que roubou a cena, cortou o nariz,
puxou a tomada da banheira na água rósea,
quebrou janelas, fechou o gás,
passeou de ambulância, apenas minutos depois
de carregar o corpo rebentado de más notícias.
Estamos, cada um de nós, presos na armadilha deste enredo.
Deixados para trás, não há esquecimento.





Maxine Kumin
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Eugenio Recuenco

terça-feira, 2 de outubro de 2012

CONTINUUM: UM POEMA DE AMOR 

indo para a videira com
a escada de mão e o balde na
primeira chuva cortante 
de setembro chuva
embebendo o cisco

num alegre ruído o céu
levantando-se como vapor
de um tacho de uvas
a ferver selvagens uvas azedas
malvadamente altas envolvidas num sumo
de teia de aranha e espuma de inseto
indo para videira ano
após ano nós dois com uma escada de mão e balde manchado
pela chuva de uvas
nossa secreta linguagem







Maxine Kumin
tradução: Ney Ferraz Paiva
imagem: Tim Walker

domingo, 23 de setembro de 2012



1.
Primeiros sinais da manhã
na madrugada ainda de mão fechada
sobre a garganta das árvores.
No escuro antes da alba
de flautas geladas,
flui mais que o orvalho
nublado do piar de pássaros:
uma, duas, três vezes
três aves até ser incontável,
por toda parte, um parque
de canoros fantasmas
na hora da nossa sorte,
amém.
Morte de horas atrás,
azar recente do ontem
irreal, absurdo
(como a palavra “azar”
afastada do vocabulário
dos supersticiosos).
Azar, azar, azar.
Piar, piar, piar
e retinir do bronze de sinos
na distância matinal,
enquanto tão próximas
são as dissonantes aves
com o silêncio da solidão
a dois no quarto.
Um oculto coro
perto
longe
como agora estamos,
unidos
separados
apesar da palavra “amem”
sem o assento de Deus
para sempre esmagando-a
também (o trono da divindade
vazio como a dispensa dos pobres).
2.
Os excitados passarinhos (assim,
no diminutivo das penas)
sabem do coração cerrado
da noite que passou?…
Na manhã de empoeiradas árvores,
o rio claro de presente
sucede o escuro mar
do que já foi,
do que ficou para trás,
e não podem saber,
os pássaros,
sobre seus anúncios de cantores
soarem mais fúnebres do que o dobrar
das matinas aos dois ouvidos humanos
divididos pelas sombras do que foi dito
e do que foi calado antes da alva,
na hora anterior ao amanhecer
dos proclamas festivos
de aves invisíveis
como o canário da infância.
De harmonia furtiva,
a manhã nova continua o breve instante
de acreditar matinalmente em Deus,
para logo maquinalmente desacreditar
Dele,
no seguimento do dia ateu das longas
iniqüidades permitidas se tudo
é apenas e tão somente
o presente interminável
que finge contar as horas
sem contas a ajustar
com nenhuma divindade boa,
má,
antiga,
nova,
impiedosa,
misericordiosa
etc.
3.
Essa também é a hora
de claramente perceber
que tudo se passa na fixidez
do permanente agora
paradoxal nas palavras
ontem
anteontem
semana passada
mês findo
ano passado
décadas atrás…
Não há fuga do tempo
que não apaga
o que nem parecia
vir a ser sob as ondas
já borrado?…
Qual era a praia alegre
do ultrapassado dia
datado no falso calendário?
“Nos separamos na manhã
de tanto de tanto de ano nenhum”,
está escrito no diário
que será esquecido num navio
afundado na mais funda fossa
dos oceanos de infelicidade.
4.
Há (efetivamente há)
o despertar do despertar
menos tímido
do que a própria aurora tateante
sobre as paredes sujas
e as limpas notas dos pássaros
cantando contra os sinos.
As aves avisam sobre um nascimento
— o da manhã —
e não sobre a morte sem céu
nem inferno,
no vazio de cima e no deserto de baixo
— Tabula Esmeralda —
de janela com vista para a rua lavada
da noite chuvosa.
A manhã?
A manhã não espera por nada,
nem traz coisa alguma para ninguém,
oca deusa trocando de roupa
à vista das inocentes aves
cantando porque não sabem
fazer outra coisa.
Como um autômato de corda
de três voltas,
ela troca de túnica nestas primeiras
horas brancas.
E, como tarde dourada,
veste para a negra noite
um longo entardecer em honra
da festa e do luto,
do mirto e do lírio dos campos.
Porém são, todas, a mesma manhã
disfarçada,
a mesma natureza indiferente
a que a vejam nua,
vestida de sol ou velada
pelo eclipse da porta
do tempo que passa
(ou não passa?)…
5.
Vai ser dada a prima volta
do parafuso da manhã
em marcha como marcham
as manhãs de relógios
sem ponteiros
marcando mudanças
somente para a ilusão
da luz neste momento
projetada sobre as árvores.
É manhã!: a primeira sessão
do cinema da realidade:
baixa comédia, alto drama,
beleza, feiúra, claridade,
obscuros mictórios públicos,
jardins luxuriantes,
praças apertadas,
ruínas e construções novas,
de cima a baixo também vestidas
de túnicas… ó Manhã!,
que mudanças poderias trazer
para isso tudo que surge
sob os auspícios
claros, claríssimos,
dos trinados da melro de ouro
de Bizâncio sem esperança
ao enviar seus sábios
ao encontro de um mar
de bárbaros?
_______________________________
Fragmento do livro Mattinata, de Fernando Monteiro, a quem sempre me refiro como um dos três melhores poetas brasileiros vivos - ainda que a literatura permaneça morta para o grande público no Brasil. E daí? O que se deve entender por isso? Que tudo se amplifica na Grande Máquina de Reprodução da Cultura do Entretenimento, financiada inclusive pelos governos dos estados onde menos se lê? Sim é isso mesmo. Mas o importante aqui é saber que duas editoras se unem para fazer passar essa extraordinária poesia por outros mares que não estes sem rotas-e-encontros em que a mediocridae segue embarcada em direção aos abismos. Trata-se da primeira co-edição de Nephelibata Edições (SC) e Edições Sol Negro (RN), unindo duas pontas extremas do país em torno da literatura. O livro se compõe de dois poemas longos — Mattinata e Para que ser poeta em tempos de penúria? — e um mais curto (Escritos no túmulo), cuja forma semelha à das lápides de necrópoles romanas. O poema que aqui aparece em fragmento é formado por um total de 25 estâncias. A capa de Mattinata é de outro extraordinário artista ignorado pelo grande público, Francisco Brennand. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

CAUSAS E RAZÕES DAS ILHAS DESERTAS 

por Gilles Deleuze 

  
Ilha de Hashima, Japão


Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexa-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranquilizador nisso tudo. Do mesmo modo, deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois elementos de pai e mãe, distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte, deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem.

Mas tudo o que nos dizia a geografia sobre dois topos de ilhas, a imaginação já o sabia por sua conta e de uma outra maneira. O impulso [NT] do homem, esse que o conduz em direção às ilhas, retoma o duplo movimento que produz as ilhas em si mesmas. Sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco importa, é sonhar que se está separando, ou que já se está separado, longe dos continentes, que se está só ou perdido; ou, então, é sonhar que se parte de zero, que se recria, que se recomeça. Havia ilhas derivadas, mas a ilha é também aquilo em direção ao que se deriva; e havia ilhas originárias, mas a ilha é também a origem, a origem radical e absoluta. Separação e recriação não se excluem, sem dúvida: é preciso ocupar-se quando se está separado, é preferível separar-se quando se quer recriar; contudo, uma das duas tendências domina sempre. Assim, o movimento da imaginação das ilhas retoma o movimento de sua produção, mas ele não tem o mesmo objeto. É o mesmo movimento, mas não o mesmo móbil. Já não é a ilha que se separou do continente, é o homem que, estando sobre a ilha, encontra-se separado do mundo. Já não é a ilha que se cria do fundo da terra através das águas, é o homem que recria o mundo a partir da ilha e sobre as águas. Então, por sua conta, o homem retoma um e outro dos movimentos da ilha e o assume sobre uma ilha que, justamente, não tem esse movimento: pode-se derivar em direção a uma ilha todavia original, e criar numa ilha tão-somente derivada. Pensando bem, encontrar-se-á aí uma nova razão pela qual toda ilha é e permanecerá teoricamente deserta.
Para que uma ilha deixe de ser deserta, não basta, com efeito, que ela seja habitada. Se é verdade que o movimento do homem em direção à ilha retoma o movimento da ilha antes dos homens, ela pode ser ocupada por homens em geral, mas é ainda deserta, mais deserta ainda, desde que eles estejam suficientemente, isto é, absolutamente separados, desde que eles sejam suficientemente, isto é, absolutamente criadores. Sem dúvida, de fato, isso nunca é assim, se bem que o náufrago se aproxime de uma tal condição. Mas, para que isso seja assim, há de se impelir na imaginação o movimento que conduz o homem à ilha. É só em aparência que um tal movimento vem romper o deserto da ilha; na verdade, ele retoma e prolonga o impulso que a produzia como ilha deserta; longe de compromete-la, esse movimento leva-a à sua perfeição, ao seu apogeu. Em certas condições que o atam ao próprio movimento das coisas, o homem não rompe o deserto, sacraliza-o. Os homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade, se estivessem suficientemente separados, se fossem suficientemente criadores, eles apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma, uma consciência do movimento que a produziu, de modo que, através do homem, a ilha, enfim, tomaria consciência de si como deserta e sem homens. A ilha seria tão-somente o sonho do homem, e o homem seria a pura consciência da ilha. Para tanto, ainda uma vez, uma única condição: seria preciso que o homem se sujeitasse ao movimento que o conduz à ilha, movimento que prolonga e retoma o impulso que produzia a ilha. Então, a geografia se coligaria com o imaginário. Desse modo, a única resposta à questão cara aos antigos exploradores (“que seres existem na ilha deserta?”) é que o homem já existe aí, mas um homem pouco comum, um homem absolutamente separado, absolutamente criador, uma ideia de homem, em suma, um protótipo, um homem que seria quase um deus, uma mulher que seria uma deusa, um grande Amnésico, um puro Artista, consciência da Terra e do Oceano, um enorme ciclone, uma bela bruxa, uma estátua da Ilha de Páscoa. Eis o homem que precede a si mesmo. Na ilha deserta, uma tal criatura seria a própria ilha deserta na medida em que ela se imagina e se reflete em seu movimento primeiro. Consciência da terra e do oceano, tal é a ilha deserta, pronta para recomeçar o mundo. Porém, dado que os homens, mesmo voluntários, não são idênticos ao movimento que os põe na ilha, eles não reatam o impulso que a produz; é sempre de fora que encontram a ilha e o fato de sua presença contraria, nela, o deserto. Portanto, a unidade da ilha deserta e do seu habitante não é real, mas imaginária, como a ideia de ver atrás da cortina quando ali não se está. E mais: é duvidoso que a imaginação individual possa por si mesma elevar-se até essa admirável identidade; veremos que isso requer a imaginação coletiva no que ela tem de mais profundo, nos ritos e nas mitologias.
A confirmação, pelo menos negativa, de tudo isso pode ser encontrada nos próprios fatos, quando se pensa naquilo que uma ilha deserta é realmente, geograficamente. A ilha e ilha deserta, com mais forte razão, são noções extremamente pobres ou frágeis do ponto de vista da geografia; elas têm apenas um fraco teor científico. Isso é um privilégio para elas. Não há unidade objetiva alguma no conjunto das ilhas. Menos ainda nas ilhas desertas. Sem dúvida, a ilha deserta pode ter um solo extremamente pobre. Deserta, ela pode ser um deserto, mas isso não é necessário. Se o verdadeiro deserto é inabitado, isso ocorre na medida em que não apresenta as condições de direito que tornariam possível a vida, vida vegetal, anima ou humana. Contrariamente, que a ilha deserta esteja inabitada mantém-se como puro fato devido às circunstâncias, isto é, aos arredores. A ilha é o que o mar circunda e aquilo em torno do que se dão voltas, é como um ovo. Ovo do mar, ela é arredondada. Tudo se passa como se ela tivesse posto em torno de si o seu deserto, fora dela. O que está deserto é o oceano que a circunda inteiramente. É em virtude das circunstâncias, por razões distintas do princípio do qual ela depende, que os navios passam ao largo e não param. Mais do que ser um deserto, ela é desertada. Desse modo, mesmo que ela, em si mesma, possa conter as mais vivas fontes, a fauna mais ágil, a flora mais colorida, os mais surpreendentes alimentos, os mais vivos selvagens e, como seu mais precioso fruto, o náufrago, além de contar, finalmente, por um instante, com o barco que a vem procurar, apesar de tudo isso ela não deixa de ser a ilha deserta. Para modificar tal situação, seria preciso operar uma redistribuição geral dos continentes, do estado dos mares, das linhas de navegação.
Novamente, isso quer dizer que a essência da ilha deserta é imaginária e não real, mitológica e não geográfica. Simultaneamente, seu destino está submetido às condições humanas que tornam possível uma mitologia. A mitologia não nasceu de uma simples vontade, e os povos admitiram bem cedo não compreender seus mitos. É nesse mesmo momento que uma literatura começa. A literatura é o ensaio que procura interpretar muito engenhosamente os mitos que já não se compreende, no momento em que eles já não são compreendidos, porque já não se sabe sonha-los e nem reproduzi-los. A literatura é o concurso dos contra-sensos que a consciência opera naturalmente e necessariamente sobre os temas do inconsciente; como todo concurso, ela tem seus preços. Seria preciso mostrar como a mitologia entra em falência nesse sentido e morre em dois romances clássicos da ilha deserta, Robinson e Suzana. Suzana e o Pacífico [DL] acentua o aspecto separado das ilhas, a separação da moça que aí se encontra; Robinson [NT] acentua o outro aspecto, o da criação, o do recomeço. É verdade que são bem diferentes as maneiras pelas quais a mitologia entra em falência nesses dois casos. Com a Suzana de Giraudoux a mitologia sofre a morte mais bonita, a mais graciosa. Com Robinson, a mais penosa. É difícil imaginar um romance tão aborrecido, e é uma tristeza ver ainda crianças lendo-o. A visão de mundo de Robinson reside exclusivamente na propriedade e jamais se viu proprietário tão moralizante. A recriação mítica do mundo a partir da ilha deserta cede lugar à recomposição da vida cotidiana burguesa a partir de um capital. Tudo é tirado do barco, nada é inventado, tudo é penosamente aplicado na ilha. O tempo é tão-só um tempo necessário ao capital para obter um ganho ao final de um trabalho. E a função providencial de Deus é garantir o lucro. Deus reconhece os seus, as pessoas de bem, porque elas têm belas propriedades, ao passo que os maus têm péssimas propriedades, maltratadas. A companhia de Robinson não é Eva, mas Sexta Feira, dócil ao trabalho, feliz por ser escravo, muito rapidamente enfastiado de antropofagia. Todo leitor sadio sonharia vê-lo finalmente comer Robinson. Esse romance representa a melhor ilustração da tese que afirma o liame entre capitalismo e protestantismo. Robinson Crusoe desenvolve a falência e a morte da mitologia no puritanismo. Tudo muda com Suzana. Com ela, a ilha deserta é um conservatório de objetos já prontos, de objetos luxuosos. A ilha já é imediatamente portadora daquilo que a civilização levou séculos para produzir, para aperfeiçoar, amadurecer. Porém, com Suzana, a mitologia também morre, é verdade que de uma maneira parisiense. Suzana nada tem para recriar; a ilha deserta lhe dá o duplo de todos os objetos da cidade, de todas as vitrines de magazines, duplo inconsistente, separado do real, pois ele não recebe a solidez que os objetos ganham ordinariamente nas relações humanas, no seio das vendas e compras, das trocas e dos presentes. É uma moça insípida. Seus companheiros não são Adão, mas jovens cadáveres; e quando reencontrar os homens vivos, ela os amará com um amor uniforme, à maneira de párocos, como se o amor fosse o limiar mínimo de sua percepção.
Trata-se de reencontrar a vida mitológica da ilha deserta. Contudo, na própria falência, Robinson nos dá uma indicação: inicialmente, ele precisaria de um capital. Quanto à Suzana, antes de tudo, ela estava separada. E nem ele nem ela, finalmente, poderiam ser o elemento de um par. É preciso restituir essas três indicações à sua pureza mitológica e retornar ao movimento da imaginação que faz da ilha deserta um modelo, um protótipo da alma coletiva. Primeiramente, é verdade que não se opera a própria criação a partir da ilha deserta, mas a re-criação, não o começo, mas o re-começo. Ela é a origem, mas origem segunda. A partir dela tudo recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, o material sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo irradiante que deve bastar para re-produzir tudo. Evidentemente, isso tudo supõe que a formação do mundo se dê em dois tempos, em dois estágios, nascimento e renascimento; supõe que o segundo seja tão necessário e essencial quanto o primeiro; supõe, portanto, que o primeiro esteja necessariamente comprometido, que ele tenha nascido para uma retomada e já re-negado numa catástrofe. Somente há um segundo nascimento porque houve uma catástrofe e, inversamente, há catástrofe após a origem porque deve haver, desde a origem, um segundo nascimento. Podemos encontrar em nós a fonte desse tema: para apreciar a vida, nós a alcançamos não em sua produção, mas em sua reprodução. O animal, cujo modo de reprodução se ignora, ainda não ocupou lugar entre os vivos. Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. O segundo momento não é aquele que sucede o primeiro, mas é o reaparecimento do primeiro quando se encerrou o ciclo dos outros momentos. A segunda origem, portanto, é mais essencial que a primeira, porque ela nos dá a lei da série, a lei da repetição, da qual a primeira origem apenas nos dava os momentos. Porém, mais ainda do que nos nossos devaneios, esse tema se manifesta em todas as mitologias. Ele é bem conhecido como mito do dilúvio. O arco se detém na única porção da terra que não está submersa, lugar circular e sagrado de onde o mundo recomeça. É uma ilha ou uma montanha, ambas ao mesmo tempo, pois a ilha é uma montanha marinha e a montanha é uma ilha ainda seca. Eis a primeira criação tomada numa recriação que se concentra numa terra santa ou no meio do oceano. Segunda origem do mundo, mais importante do que a primeira é a ilha santa: muitos mitos nos dizem que aí se encontra um ovo, um ovo cósmico. Como ela forma uma segunda origem, ela é confiada ao homem, não aos deuses. Ela está separada, separada por toda a espessura do dilúvio. O oceano e a água, com efeito, são o princípio de uma tal segregação que, nas ilhas santas, são constituídas por comunidades exclusivamente femininas, como as de Circe e Calipso. Enfim, o começo partia de Deus e de um par, mas não o recomeço, que parte de um ovo, de modo que a maternidade mitológica é freqüentemente uma partenogênese. A ideia de uma segunda origem dá todo seu sentido à ilha deserta, sobrevivência da ilha santa num mundo que tarda para recomeçar. No ideal do recomeço há algo que precede o próprio começo, que o retoma para aprofunda-lo e recua-lo no tempo. A ilha deserta é a matéria desse imemorial ou desse mais profundo.

Tradução de
 Luiz B. L. Orlandi



Texto manuscrito dos anos 50, inicialmente destinado a um número especial consagrado às ilhas desertas pelo magazine Nouveau Fémina. Esse texto nunca foi publicado. Na bibliografia esboçada por Deleuze em 1989 ele figura sob a rubrica “Diferença e repetição”.

NT [Apesar de dispormos da palavra elã, traduziremos o termo francês élan por impulso].

DL [L. Giraudoux, Suzanne et lê Pacifique, Paris, Grasset, 1922, reeditado em Oeuvres romanesques complètes,vol. I, Paris, Gallimard, col. “Bibliothèque de la Pléiade”].

NT [Daniel Defoe (1660-1731), Robinson Crusoe  (1719-1722)]. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A alta costura de Giselle Ribeiro vai parar no Hospício


Prêt-à-porter


Primeiro leia este livro
sem compromisso maior.
E se algum poema
nele contido
lhe vestir bem,
sem precisar de ajustes,
ele será todo seu.

Para ir à igreja, 
um encontro marcado,
um passeio no bosque,
uma reunião de negócios,
piscina, praia ou cinema.
Para fazer cooper, yoga
ou jogar sinuca.

Afinal, para que mais serve o poema?



Tarefas da vida cotidiana



Lavamos
todos os dias
a palavra amor
até desbotar.
Passamos a ferro
todos os dias
a palavra desejo
até evaporar.
Depois,
lavamos as mãos.

E quando a iluminura 
do amor se apaga,
gradativamente,
dizemos aos sonhos:
a convivência mata.



Desintoxicação



ela amava as coisas.
As máquinas todas
eram as suas pulsações:

máquina de calcular
máquina de escrever
máquina de fazer filmes e fotografias
máquina de lavar
máquina de secar...

Mas quando viu
que o coração e os olhos
já estavam secos
Ela quis se descoisar.


Giselle Ribeiro, Pequeno livro de poemas para vestir bem, 2011.
imagem: ney ferraz paiva

domingo, 16 de setembro de 2012

Uma criança

Em pensamento, minha mãe montava a casa para seus pais. Isso dá uma biblioteca magnífica, disse ela. De fato, era uma biblioteca magnífica aquela em que, já poucas semanas depois de pago o adiantamento do aluguel, e graças a minha mãe e à mudança para ali de meus avós, se transformou o cômodo da casa de Ettendorf que dava para o sudeste. Com um adiantamento pago pelo editor, um carpinteiro foi incumbido de construir o que meu avô projetara. Um caminhão de livros e manuscritos estacionou diante da casa e as estantes se encheram. Desde o início da juventude, desde a Basiléia, como sempre ele dizia, meu avô juntava livros, não tinham dinheiro, mas cada vez um número maior de livros. Milhares deles. No escritório da cabana do Mirtel não havia lugar para eles, que, em grande parte tinham sido abrigados no sótão. Agora, as paredes do novo escritório em Ettendorf estavam lotadas. Eu nem sabia que tinha juntado tanta riqueza intelectual, disse ele, e tanta pobreza também. Hegel, Kant, Schopenhauer eram nomes que eu conhecia e que para mim sempre haviam ocultado enorme mistério. E Shakespeare, então!, disse meu avô. São luminares, inatingíveis. Sentado ali, ele fumava seu cachimbo, tinha sido melhor eu não ter me matado, mas esperado por ele, disse a mim mesmo. Estávamos prestes, a partir de Ettendorf, a descortinar um novo paraíso para nós, como o de Seekirchen, o fato de ser agora um paraíso bávaro, e não austríaco, já não incomodava. A lembrança de Seekirchen e, no tocante ao meu avô, a de Viena continuavam a ser fundamentais. Mas pouco a pouco a transição para o idílio bávaro se completou com sucesso. Teve lá suas grandes vantagens. Decerto a Baviera era católica, arquicatólica, e nazista, arquinazista, mas como na região em torno do Wallersee, estava ali em terras pré-alpinas, e portanto inteiramente profícuas às intenções do meu avô; seu pensamento, ao contrário do que se temia, não foi sufocado, mas ganhou asas, como se verificou mais tarde. Ele trabalhava com ímpeto maior do que em Seekirchen e afirmava ter, de fato, entrado agora em sua fase decisiva como escritor, alcançara determinado patamar filosófico. Eu não sabia o que aquilo significava. Sempre se dizia apenas que ele estava trabalhando em seu grande romance, e minha avó sublinhava essa observação constantemente sussurrada dizendo vai ter mais de mil páginas. Para mim era um completo mistério como uma pessoa podia se sentar e escrever mil páginas. Que escrevesse cem já me era totalmente incompreensível. Por outro lado, ainda ouço meu avô dizendo que tudo que escreve é besteira. De onde, então, ele tinha ido tirar aquela ideia de escrever mil páginas de besteira? Ele sempre tinha ideias as mais incríveis, mas sentia que elas eram o motivo do seu fracasso. Fracassamos todos, dizia sempre. E esse é também o meu pensamento central constante. Naturalmente, eu não imaginava o que era fracassar, o que isso significava ou podia significar, embora eu próprio atravessasse um processo rumo ao fracasso, ininterrupto, fracassava inclusive com incrível consistência: na escola. Meus esforços de nada adiantavam, minhas tentativas sempre renovadas de me corrigir morriam ainda no nascedouro. Os professores não tinham paciência e me afundavam cada vez mais no pântano do qual deveriam me resgatar. Pisavam-me onde podiam. Também eles gostavam de me chamar de Esterreicher, atormentavam-me com isso, perseguiam-me dia e noite, eu não tinha sossego. Errava na hora de somar, errava ao dividir e logo já não distinguia o direito do avesso. Escrevia com uma caligrafia que, tão logo entregue a tarefa, era alardeada como exemplo supremo de dispersão e negligência ilimitadas. Praticamente não se passava um único dia em que eu não tivesse de me apresentar para levar alguns golpes de vara. Sabia por quê, mas nãos sabia como fora parar ali. Logo fui relegado à categoria dos chamados piores alunos, à horda dos idiotas, que acreditavam que eu fosse um deles. Para mim não havia escapatória. Os ditos inteligentes me evitavam. Não demorou muito para que eu percebesse que não pertencia nem a um grupo nem ao outro, que não me encaixava em nenhum deles. A isso veio se somar o fato de eu não ter pais de respeito, como se dizia, de ser, por assim dizer, o rebento de gente pobre, filho de ninguém. Não tínhamos uma casa, apenas morávamos numa casa, e aquilo já dizia tudo.


Thomas com Ferdl, Graml e Franziska no pátio Wieland Schmied, 1971. 

Thomas Bernhard, Origem, Companhia das Letras, 2006.
Foto: Erika Smith

sábado, 15 de setembro de 2012

























Apresentação
Todos os textos sobre arte são uma mediação. Mas o que dizer do suporte? Há diferença em publicar em jornal, revista, livro e no espaço virtual? Ou tudo estará numa mesma mediação entre fatores tão diversos como o da distância que vai das imagens às palavras, do público especializado ao mais disperso e espontâneo, do autor inventor ao autor crítico e por aí afora. Com tudo o que sabemos sobre a impossibilidade da critica e da representação/símbolos/imagens/ícones contemporâneos. Com tudo o que sabemos sobre a impossibilidade das palavras e simultaneamente sobre a impossibilidade de sermos e existirmos sem elas. Aí o funcionamento do real assume primazia sobre o real.  Como ecoa a canção do U2: Even better than the real thing.

Temário
·         A mensagem: é pra você que escrevo, hipócrita (Mallarmé, Baudelaire, Walt Whitman) - o problema da diferença e transparência no lance de dados virtual;
·         O emissor: sofrer no mundo virtual pega bem? Os blogs confessionais, diários e outros dramas metafísicos;
·         O receptor: o público, o êxito, o sucesso – também no mundo virtual as abelhas só se agrupam perto de sua própria rainha?
·         O código: a estética do belo e do sublime na imensa Máquina abstrata – o real, o individual, o simulacro, a imitação, o rizoma coletivo. 
                     
                          Realização: