o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 22 de julho de 2012

Mas no vento seu rumor chegava

Ama-a mas ama-a
como se tudo tivesse concluído e passado
como se desde o futuro mais remoto
recordasses o vinho de teus melhores anos
o verão de mil novecentos e oitenta
quatorze de abril
quando foi tua
em um hotel perto do mar
cujas janelas não davam para o mar
mas no vento seu rumor chegava
e ela vinha a ti como uma onda
morrendo às margens de teu corpo




Delfín Prats, O sonho da Insularidade
tradução: Fábio Aristimunho Vargas 
imagem: Bredan George Ko

domingo, 15 de julho de 2012


primeira & última vez de sarah kane

 
viva – a mulher não tem como
ser suficientemente explícita
esvoaça a sua volta um dilema – dois
morta – ela só está fazendo número
que a põe em cartaz uma outra vez
diários cartas caem em domínio público
mas ela ainda não fica satisfeita
pega numa armadilha sem saída
é dessa vez que ela quer tudo
o dom raro da mulher – o azar
suas cinzas coagulam ao vento


ney ferraz paiva 
william eggleston

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Partilha do sensível – o acervo Max Martins


O instinto e a instituição são as duas formas organizadas de uma satisfação possível. 
Gilles Deleuze, “Instintos e Instituições” in A ilha deserta, 2002.


Ao decidir vender o acervo do poeta Max Martins à Universidade Federal do Pará, a família optou predominantemente por um critério emocional – que todo material ficasse em Belém, favorecendo que o espólio estivesse acessível a leitores, estudiosos e pesquisadores da cidade onde o poeta viveu e desenvolveu toda a sua obra. Passados mais de dois anos de sua aquisição, e integrado ao Museu da UFPA, o acervo sequer chegou à fase de catalogação. A redutora falta de verba das instituições públicas de cultura, que corrói transações como essa e, consequentemente os próprios acervos, é a causa alegada. O desgaste de boa parte dos livros da biblioteca particular do poeta já se encontrava em estado avançado bem antes de sua morte. Vê-los amontoados numa sala, fora de estantes e sem a higienização necessária, causa espanto e indignação. Não se conhece os termos ou as condições de compra e venda entre as partes, mas ao fazer a aquisição a Universidade Federal do Pará deveria prever os custos altos que, de fato, envolvem a preservação, conservação, restauração e proteção de acervos bibliográficos. E supor que uma sala, por mais generosa e especial que seja, possa abrigar e vir a ser o espaço adequado para fazer funcionar a usina de criação e pensamento que a obra de Max Martins põe em movimento, na sua diversidade e multiplicidade, aponta e confirma um histórico de enganos e equívocos, um horizonte negativo na guarda de acervos por instituições públicas no Pará. E não cabe aqui apontar exceções, uma vez que se sabe que os espaços de excelência confirmam a desproporcional distribuição dos lugares e a efetiva proscrição. A essa altura, o Museu da UFPA fica devendo à comunidade o levantamento e a publicação de um catálogo que dê conta das informações básicas desse acervo, divulgando-o e incorporando-o à vida cultural de Belém, como informação preciosa à imaginação, pelo que ela é capaz de trazer ao ar livre da cidade, despoluindo saberes e pensabilidades, seus modos e formas de funcionamento, que só a linguagem criativa é capaz de desmobilizar, ativando e articulando qualidade de vida e desenvolvimento humano.

Max Martins em seu gabinete, de onde se vê parte de seu acervo, 1988.

Ney Ferraz Paiva

um pacto


faço um pacto com você, walt whitman -

já o detestei bastante


corro atrás de você como um menino atrevido


que teve um pai caturra;

estou na idade de fazer amigos


você cortou a madeira 


é tempo de cultivar


temos a mesma seiva & a mesma raiz


deixa que haja troca entre nós






ezra paund

tradução: ney ferraz paiva
imagem: bill traylor

sábado, 7 de julho de 2012

Que Tienes Debajo del Sombrero?



A norte-americana Judith Scott trabalhava as suas esculturas como se fosse um inseto. Apanhava peças e cobria-as com lã. Surda-muda e com síndrome de Down. Nada deteve as vozes de Judith Scott.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Democracia é engraçada; Demokratie ist lustig!
Com esta frase Joseph Beuys comenta a sua expulsão da Academia de Artes de Dusseldorf.


Em outubro de 1972 Joseph Beuys participava da Documeta de Kassel 5 com sua escultura social “Escritório de Organização para a Democracia Direta através do Plebiscito”, dias depois volta a Dusseldorf para inicio das aulas de inverno. Chegando em Dusseldorf no dia 11 de Outubro Joseph Beuys com mais 54 estudantes, invadem a secretaria da Academia de Artes de Dusseldorf. Beuys já havia programado a ação e havia escrito aos 125 canditatos que haviam sido recusados no processo de escolha através de portfólios. Dos 125, 54 compareceram à ação onde Beuys pleiteava a inserção e requeria a aceitação de todos os estudantes em sua classe!
Na noite da invasão Beuys recebe a carta de demissão assinada por Johannes Rau, em razão de aceitar estudantes em sua classe que foram recusados pelo processo de seleção. Para finalizar com a ação e manter a ordem, o ministro do estado ordena a retirada de Beuys e seus estudantes com a auxilio da força policial!
O registro da ação por Bernd Nanninga e que ano após se transformaria em uma edição de postais e cartazes, se tornou uma das imagens mais emblemáticas de Joseph Beyus, sorridente com um jeans surrado e um longo casaco, a foto mostra ele e seus alunos abandonando a secretaria da Universidade. Beuys defendeu a liberdade do indivíduo e repudiava as convenções e controle do estado, o com esta ação Beuys se vê diante, deste equipamento de manutenção da disciplina e ordem em nossa sociedade. A imagem em forma de postal torno-se um registro desta ação.


Joseph Beuys postal 1973 14.8 x 10.5 cm e edição em poster de 75 x 114,5 cm com unidades numerada e 5 exemplares assinados.


"É a Demokratie é mesmo lustig" (1973)

domingo, 1 de julho de 2012

Al Berto . Coimbra . Janeiro 1992



Antes de começar a ler só queria perguntar-vos se vocês não são capazes de estar em silêncio cinco minutos com vocês mesmos para conseguirem estar em silêncio às vezes quando é necessário com os outros, e quem não gosta sai e volta a seguir porque se for um merda, deixem-me acabar, se faz favor, se for um merda com uma guitarra que faz três acordes vocês estão em silêncio porque se curte e é imensamente bom para a carola, a poesia, pá, lamento, boa ou má, talvez não fosse má ideia ouvir. E suponho que há montes de gente aqui nesta sala que nunca abriu um livro de poesia sequer. E é uma questão de respeito pelas outras pessoas e por aquilo que elas fazem. Eu vou dormir mas pagaram-me para estar aqui, inclusivamente, e eu não publico livros para idiotas. Importas-te de servir mais um que é para eu me animar? Eu estou bem, só preciso de um reforço aí no copo. O que eu acabo de dizer não obriga ninguém a gostar daquilo que eu escrevo, inclusivamente. Já começo, se for preciso eu espero. À vossa. Eu estou lindamente. Posso começar? Também me posso ir embora, de qualquer maneira não tem importância nenhuma, para mim é-me igual. Não, eu estou lindamente. Eu hoje estou numa de chato também, se não te importas, também tenho o direito. Agora é quando me apetecer também. E como eu não sou a Anabela, não canto, não é, é um problema, ela abre o gasganete, pá... Falta gelo, é horrível isto assim, não leio nada sem gelo, toma. Gelo aí para dentro. Eu já começo, eu vou ler, juro. Nem penses, agora é quando eu quiser. Não, Helder, tu não me conheces! Ouve lá, queres vir comigo? Vais tu primeiro! Agora começo quando me apetecer e se calhar nem sequer leio que é para chatear! Não, eu até me vou embora, não preciso de ler nada, eu. Eu não preciso de ler nada. Mas eu não preciso de ler nada! É-me igual, mais do que eu já bebi... costumo tomar o pequeno-almoço às 10 da manhã. Bom, eu vou tentar abstrair-me do som de fundo.

E um caralho para quem faz barulho.

Vocês são mesmo ordinários, foda-se. Acho que não leio mais nada, não me apetece. Não pensem que me vou embora sem dizer meia dúzia de coisas, eu por acaso lamento imenso que pessoas que têm um nível, penso eu, ou não têm, de facto, é a primeira vez que me acontece e devo dizer que desde 1985 que leio poemas em público, é a primeira vez que não consigo ler ou que estou a ler com imenso sacrifício porque é perturbante ter um barulho e a falta de respeito pelo trabalho dos outros, é a mesma coisa que eu entrar quando vocês estão a fazer exames e eu digo assim então e agora se fossem apanhar no cu, não é, é giro, é muita giro, é fresco, pá, é porreiro à brava. É mais ou menos a mesma coisa só que eu já não faço exames há vinte anos, sou profissional, no sentido que sou... eu sou escritor há vinte anos, há vinte anos que escrevo, há dez que publico neste país, tenho imensa pena da vossa ignorância, ou da ignorância de alguns. Primeiro, e as outras pessoas que aqui estão também, não estou sozinho, não estou, felizmente não estou sozinho! Porque está aqui o Manuel Fernando, está aqui o Helder Moura Pereira, o António Franco Alexandre, o Paulo da Costa Domingos, se vocês não conhecem são mais ignorantes que aquilo que eu pensava, mas muito mais. O que vocês precisam é de Saramagos, muitos. E mais mal escrito, porque ele até nem escreve muito mal. Lamento imenso, mas eu não vou ler mais nada, porque não é possível. As vaias fazem parte também de uma paixão, do mito. Muito obrigado. E eu só trabalho para o meu mito, mais nada. Agradeço aqueles que também me vaiaram porque estão a contribuir para isso, largamente, nesta cidade, sobretudo onde eu nasci, sobretudo na cidade onde eu nasci, é porreiro, porque é a primeira vez que fui vaiado. E é a primeira vez que não houve respeito por mim nem pelas outras pessoas que aqui estiveram, que estão de boa vontade e sem mais algum interesse. Muito obrigado, adorei o whisky que vim tomar a Coimbra. Não vou voltar tão cedo.

terça-feira, 26 de junho de 2012


imagens pesam mais do que o mar

alessandra negrinni como a vi em seus quarenta anos



ela não ri: move-se esquiva de um lado a outro
anda a casa como se fizesse fotos
pés trocados olhar confuso
faz pose pra ele pra o deter de quem?
fisicamente opostos & partidos
o mundo vira de ponta-cabeça
ele a olha com expressão vazia
voz baixa fala devagar
diz ter um problema enorme
precisa urgentemente viajar
ir ao mar ao fogo às nuvens
“ou quem sabe de um bom xampu anticaspa”
sempre diz isso pra fazer as pessoas rirem
ela não ri ele pergunta “por que você não ri?”
desde pequena que não sabe
rir nem dos pequenos dramas
“ria se alguém está sofrendo
perto de você – por causa de você”
pra ela o inferno é isso
ele nada sabe a respeito
não presta muita atenção
suspensa no ar sem deixar





ney ferraz paiva

CANTO VIGÉSIMO OITAVO

Tenho a impressão que a avareza
não é um defeito se acontece na velhice
quando  o tédio já invadiu o cérebro.
A mim salvou-me aos setenta anos
quando uma tarde comecei a apagar as luzes
e meu irmão tropeçava por todo o lado.
Agora recolho os fósforos usados
(com algodão podem servir para limpar os ouvidos)
e de manhã à noite
tenho muito que fazer:
quero que meu irmão deite pouco açúcar
no leite e eu, guloso por mel,
lambo apenas uma colherzita ao domingo,
em pé, entre as duas portas do guarda-louça.
A toalha não é necessária, usámos um pedaço de papel
que depois serve também para acender o lume.
De noite se alguém se levanta
basta uma candeia enquanto o outro permanece no escuro.
Assim passa uma hora, passam duas, passa um mês
e a cabeça trabalha.


Tonino Guerra «O Mel», Assírio e Alvim
imagem: Saul Leiter

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Para o livro de Literatura de segundo grau


Não leias odes, meu filho, lê os horários
(dos trens, dos ônibus, dos aviões):
são mais exatos. Abre os mapas náuticos
antes que seja tarde demais. Sê vigilante, não cantes.
Chegará o dia em que eles, de novo, pregarão listas
no portão e desenharão marcas no peito daqueles que dizem
não. Aprende a ir incógnito, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Entende da pequena traição,
da salvação suja de todos os dias. Úteis
são as encíclicas para se fazer fogo,
e os manifestos: para a manteiga e sal
dos indefesos. É preciso raiva e paciência
para se soprar nos pulmões do poder
o fino pó mortal, moído
por aqueles, que aprenderam muito,
que são exatos, por ti.







Poema: Hans Magnus Enzensberger
Tradução: Kurt Scharf e Armindo Trevisan

Imagem: Carlos Vergara

quarta-feira, 2 de maio de 2012

adeus às coisas aqui embaixo


tento morrer agora
que os cinquenta anos
travam meus pés
numa armadilha
e a poesia continua a ser
minha ocupação
não posso dar um passo
à frente nem atrás
preciso tentar a morte
com determinação
atento à voz do Cosmo
aos gritos de Minerva
morrer no mais refletido
onde chego a ser dois
enxertado em livros
léxicos tipografias
hastes subterrâneas
sem nada levar da arte
além da minha loucura




poema: ney ferraz paiva
imagem: graciela itubirde

segunda-feira, 23 de abril de 2012

ERA UMA VEZ FERNANDO DINIZ



quis ser vilão de história em quadrinhos
anjo de rua com plumagem de pássaros
 isso de qualquer forma acabou sendo
paisagens estriadas desertos bifurcados
face selvagem martelada no painel caos
de longeva infância & breve vida adulta
tipo exato de louco que se quis moldar
pedra borboleta margarida estrela
razão limbo incerto da alvorada



Fernando diniz



Ney Ferraz Paiva