o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 29 de junho de 2011

ALTAZOR 




1.
Sou um homem inteiro
O homem ferido por todos
Por uma flecha perdida do caos
Humano terreno desmesurado
E sem receio desmesuradamente o declaro
Desmesurado porque não sou um burguês nem de raça debilitada
Sou talvez bárbaro
Desmesurado obsessivo
Bárbaro isento de rotinas e de caminhos determinados
Não aceito vossas cômodas cadeiras nomeadas
Sou o anjo selvagem que caiu uma manhã
Nas vossas plantações de preceitos
Poeta
Antipoeta
Culto
Anticulto
Animal metafísico carregado de angústias
Animal espontâneo justo sangrando com seus problemas
Solitário como um paradoxo
Fatal paradoxo
Flor de contradições dançando um fox-trot
Sobre o sepulcro de Deus
Sobre o bem e o mal
Sou um peito que grita e um cérebro que sangra
Sou um tremor de terra
Os sismógrafos assinalam minha passagem pelo mundo
Rangem as rodas da terra
Vou às cavaleiras de minha morte
Vou colado à minha morte como um pássaro ao céu
Como uma flecha na árvore que cresce
Como o nome na carta que envio
Vou colado à minha morte
Vou pela vida colado à minha morte
Apoiado no bastão de meu esqueleto
Matai a terrível dúvida
E a espantosa lucidez
Homem de olhos abertos na noite
Até ao fim dos séculos
Enigma-asco dos contagiosos instintos
Como os sinos da exaltação
Passarinheiro de luzes mortas que passam com pés de espectro
Com os pés indulgentes do arroio
Que as nuvens arrastam e mudam de rumo

Na roleta do céu joga-se nosso destino
Ali onde morrem as horas
O grave cortejo das horas que massacram o mundo
Joga-se nossa alma
E a sorte que voa todas as manhãs
Sobre as nuvens com os olhos cheios de lágrimas
Abre a ferida das últimas crenças sangrando
Quando a espingarda desgostosa do humano refúgio
Desaloja os pássaros do céu
Contempla-te ali fraterno animal sem nome
Junto ao bebedouro de teus próprios limites
Sob a benigna aurora
Que fustiga o tecido das marés
Olha ao longe a fileira de homens
Saindo da fábrica com os mesmos anseios
Mordidos pela mesma eternidade
Pelo mesmo furacão de vagabundos fascínios
Cada um traz sua informe palavra
E os pés atados à sua própria estrela
As máquinas avançam na noite do diamante fatal
Avança o deserto com suas ondas sem vida
Passam as montanhas passam os camelos
Além passa a fileira de homens entre fogos-fátuos
A caminho da pálpebra tumular

2.
O sol nasce em meu olho direito e põe-se em meu olho esquerdo
Na minha infância uma infância ardente como um álcool
Sentava-me nos caminhos da noite
A escutar a eloquência das estrelas
E a oratória da árvore
Agora a indiferença neva na tarde da minha alma
Abram-se em espigas as estrelas
Quebre-se a lua em mil espelhos
Torne a árvore ao ninho de sua amêndoa
Apenas quero saber porquê
Porquê
Porquê
Sou protesto e rasgo o infinito com minhas garras
E grito e gemo com miseráveis gritos oceânicos
O eco de minha voz faz ressoar o caos

Sou desmesurado cósmico
As pedras as plantas as montanhas
Saúdam-me as abelhas os ratos
Os leões e as águias
Os astros os crepúsculos as auroras
Os rios e as florestas perguntam-me
Então como tem passado?
E enquanto os astros e as ondas tiverem algo para dizer
Será pela minha boca que falarão aos homens
Trazei-me uma hora para desfrutar a vida
Trazei-me um amor pescado pela orelha
E deixai-o aqui a morrer perante meus olhos
Que eu role pelo mundo a toda a brida
Que eu corra pelo universo a toda a estrela
Que me afunde ou me levante
Lançado sem piedade entre planetas e catástrofes
Senhor Deus se tu existes é a mim que o deves

3.
Há palavras que têm sombra de árvore
Outras que têm fluido de astros
Há vocábulos que têm fogo de raios
E que incendeiam o espaço onde caem
Outras que se descarregam como vagões sobre a alma
Altazor desconfia das palavras
Desconfia da cerimoniosa astúcia
E da poesia
Armadilhas
                   Armadilhas de luz e luxuosas cascatas
Armadilhas de pérola e de lâmpada aquática
Caminha como cegos com seus olhos de pedra
Pressentindo o abismo em cada passo

4.
Basta senhora harpa das belas imagens
Dos furtivos como iluminados
Outra coisa outra coisa buscamos
Sabemos pousar um beijo como um olhar
Plantar olhares com árvores
Engaiolar árvores como pássaros
Rasgar pássaros como heliotrópios
Tocar um heliotrópio como uma música
Esvaziar uma música como um saco
Degolar um saco como um pinguim
Cultivar pinguins como vinhedos
Ordenhar um vinhedo como uma vaca
Desarvorar vacas como veleiros
Pentear um veleiro como um cometa
Desembarcar cometas como turistas
Enfeitiçar turistas como serpentes
Colher serpentes como amêndoas
Descascar uma amêndoa como um atleta
Abater atletas como ciprestes
Acender ciprestes como faróis
Aninhar faróis como cotovias
Exalar cotovias como suspiros
Bordar suspiros como sedas
Derramar sedas como rios
Tremular um rio como uma bandeira
Depenar uma bandeira como um galo
Apagar um galo como um incêndio
Vagar em incêndios como em oceanos
Ceifar oceanos como searas
Repicar searas como sinos
Esquartejar sinos como cordeiros
Desenhar cordeiros como sorrisos
Engarrafar sorrisos como licores
Engastar licores como jóias
Eletrizar jóias como crepúsculos
Tripular crepúsculos como navios
Descalçar um navio como um rei
Pendurar reis como auroras
Crucificar auroras como profetas

5.
Noite de antiquíssimos terrores noturnos
Aonde a nevada gruta nutrida de milagres?
Aonde a delirante miragem
Dos olhos de arco-íris e da nebulosa?
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se o mar
A respiração detém-se e a suspensa turbação
Intumesce as têmporas e nas veias se derrama
Abre os olhos maiores que o espaço que neles cabe
E um grito cicatriza no mórbido vazio
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se um rebanho perdido na montanha
A pastora com sua capa de vento à ilharga da noite
Conta as pegadas de Deus no espaço
E canta-se a si mesma
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se um desfile de timbales de gelo
Que brilham sob os raios da tempestade
E passam em silêncio à deriva
Solene cortejo de timbales
Com acesos archotes dentro do corpo
Abre-se o sepulcro e ao fundo vêem-se o outono e o inverno
Um céu de ametista desce vagarosamente
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se uma enorme ferida
Que se dilata nas profundezas da terra
Com um rumor de verão e primaveras
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se uma floresta de fadas que se fecundam
Cada árvore termina num pássaro extasiado
E tudo se detém dentro da fechada elipse de seus cantos
Por esses lados deve encontrar-se o ninho das lágrimas
Que rolam pelo céu e atravessam o zodíaco
De signo em signo
Abre-se o sepulcro e ao fundo vê-se a efervescente nebulosa que se apaga e se acende
Um aerólito passa vertiginosamente
Dançam lanternas no vasto cadafalso
Onde as sangrentas cabeças dos astros
Deixam uma auréola que eternamente cresce
Abre-se o sepulcro e sai um soluço de plantas
Há mastros destroçados e redemoinhos de naufrágios
Tangem os sinos de todas as estrelas
Ruge o furacão perseguido através do infinito
Sobre os rios derramados
Abre-se o sepulcro e salta um ramo de flores carregadas de cilícios
Cresce a impenetrável fogueira e um odor de paixão invade o orbe
O sol procura o último recanto onde ocultar-se
E nasce a mágica floresta
Abre-se o sepulcro e no fundo vê-se o mar
Sobe um canto de milhares de barcos que partem
Enquanto um cardume de peixes
Se petrifica lentamente


Vicente Huidobro
Tradução de Luís Pignateli
Imagem: Rafael Pérez Barradas

quarta-feira, 22 de junho de 2011

SEM MÉDIA SEM MÍDIA SEM MEDO


Todos os homens deveriam ser objetadores de consciência.Murilo Mendes



Escrevo em torno do que me fascina, e isto não é o mesmo que dizer que apascento cordeiros e que reservo a eles meus elogios. O que sei é que a crítica deve constituir-se sempre em um evento repentino e decisivo. Sacrifica os cordeiros ainda no estágio vago e inicial da descoberta e da primeira leitura. Se forem encorpados artificialmente a ponto de não se ter um desenvolvimento preciso de pensamento e escrita. Ou seja: se o livro entra em colapso sob seu próprio peso. E o que dizer dos livros de ensaios, que são por si sós algum exercício de crítica ou de teoria, e frequentemente volumosos? Parte considerável deles pertence a rebanhos agonizantes. Em algum momento desaparecem sem deixar rastros. Bons livros de ensaios são acontecimentos raros. Escritos com sangue, fúria e sem mansidão, geralmente escapam à observação dos fatos relativamente próximos (mas não aos afetos). “Meus olhos têm telescópios espiando a rua”, nos diz João Cabral de Melo Neto, um misto de ensaísta e poeta que, ao proceder como astrônomo ou astronauta, pões em movimento uma obra em permanente expansão. André Queiroz segue, neste livro, uma dicção consistente de pensamento e inventividade, não só de recheada semântica: desde “Tela atravessada – ensaios sobre cinema e filosofia” (2001) continuamente estabelece conexões entre palavra e imagem, agora mais variadas, expandidas, de elementos combinados que não se neutralizam, e sim desencadeiam outras reações de fusão, linguagens, ciclos e dobras. Ao mesmo tempo em que o livro libera, absorve energia. Ou se pode dizer: transmuta-se entre os muito cultos/muito astutos ensaios de estrutura semelhante à de narrativas. Deles o leitor poderá extrair enredos (cinematográficos e/ou literários) extremamente fragmentados, cortantes, espiralados, de um núcleo de escrita mesclado à filosofia (pelo que observa-investiga-indaga-conceitua os gêneros relacionados), cercado por esferas de singularidade e multiplicidade, e cujo invólucro externo das formas de expressão se compõe principalmente pela força dos contrastes - ritmos de perplexidade - sentidos de estupor. Com efeito, o livro não faz lembrar um estojo de enfermagem a serviço do desastre das ações humanas – senão um equipamento de combate, de incursões ofensivas e deflagrações, de uma escrita em plena linha de conflito. É assim mesmo, André Queiroz tende a individualizar-se até o caminho fatal do que não seja apenas o discurso que restitui nitidamente a cena do seu fracasso. Prossegue por onde ainda os ecos de uma visada desmedida, estonteante, febril. De um Beckett e um Foucault a um Raduan Nassar e a um Bergman... até um José Lins do Rego. O procedimento de montagem escapa às coletâneas didáticas, à figuração do jornalismo de assuntos culturais em que repercutem palavras que afagam ouvidos e beijam bocas; antes, aqui, o corpo se arrasta inteiro e mais o que a ele se enxerta e amplia das entranhas frementes das coisas, suas cavidades e rupturas, aos apelos da dúvida de quem não enceta uma comunicação trocada para determinar o que se deve “saber” e aí ocupar espaços e permanecer de uma vez. “Sabe-se o mínimo. Não não se sabe nada”. Beckett logo a dizer em seus letreiros. Pensar não para fazer cartografias morais nem culturais; pacificar o corpo e o espírito dos incautos. Talvez um tanto do que se possa da fantasia de esgarçar as moléstias a que não se quer mais tocar ou que quase todos consideram saradas e bloqueadas. Enfermidades e dores – nada a ver com mapas, posses, territórios. Um lugar nenhum: O obscuro vazio. E quem sabe daí resulte não um tratado patológico, mas algum esboço de ideia desmunido das receitas de arte, texto e imagem codificadas como técnica e renegociadas como entretenimento e ornamentação no macro-sistema comunicativo. Esboço-vômito, esboço-sangue, esboço-pus. Muito mais do que ensaios, uma série de narrativas mal contadas da contemporaneidade; enviesadas, descentradas das regras, fatos e normas de poder: abertas e laceradas como pensamento que arfa incansavelmente, entregue à ficção de sua própria voz.


Ney Ferraz Paiva
Recife, dezembro 2010

segunda-feira, 20 de junho de 2011


A FERA

Das cavernas do sono das palavras, dentre
os lábios confortáveis de um poema lido
e já sabido
voltas
para ela - para a terra
maleável e amante. Dela
de novo te aproximas
e de novo a enlaças firme sobre o lago
do diálogo, moldas
novo destino
Firme penetra e cresce a aproximação conjunta
E ocupa um centro: A morte, a fera
da vida
te lambendo



Max Martins
imagem: ney ferraz paiva





DEPOIS DA DOR

Quando todo corpo dói
a alma regenera sua calma.
Pacifico meio que por engano e te encontro
nos escombros do sofrimento
Novamente as nuvens passam a ser anjos,
semoventes
adormeço
contigo em sonhos.


Nazaré Martins

imagens: interferência de Ney Ferraz Paiva sob fotos de Octávio Cardoso

quinta-feira, 16 de junho de 2011




Se Benjamin ensinasse em São Paulo...
por Emir Sader



Em setembro de 1935, Erich Auerbach escreveu a Walter Benjamin dizendo saber que a Universidade de São Paulo ''estava procurando um professor para ensinar literatura alemã em São Paulo; logo pensei no senhor...''. Auerbach mandou o endereço ''para as instâncias competentes'', mas relata que ''a coisa não deu em nada...''. Por culpa de ''alguma instância incompetente'' - comenta Michael Löwy - a USP perdeu a oportunidade de incluir Benjamin no seu corpo docente. Perdeu-se talvez a oportunidade de ter salvado a vida de Benjamin. 

A observação faz parte da apresentação à edição brasileira feita por Löwy, que sugere que algum escritor brasileiro poderia criar um conto com história imaginária de Benjamin no Brasil: ''sua chegada a Santos, em 1934, onde teria sido recebido por alguns colegas da USP de sensibilidade progressista; suas primeiras impressões sobre o país e sobre São Paulo; seu difícil aprendizado da língua portuguesa; sua tentativa de ler Machado de Assis na língua original, com o intuito de uma interpretação materialista; sua prisão pelo DOPS em 1935, denunciado como agente do comunismo internacional; seu interrogatório policial, na presença de um representante da Embaixada Alemã; seu encarceramento em um navio-prisão, onde encontra e se torna amigo de Graciliano Ramos; as notas que toma num caderno, tendo em vista um ensaio comparando Graciliano com Brecht; e sua angústia, enquanto espera que o liberem ou que o deportem para a Alemanha...'' 

Nada melhor para inaugurar a coleção Marxismo e Literatura, coordenada por Leandro Konder. Nele, Löwy retoma uma de suas temáticas preferidas - romantismo, messianismo e marxismo -, a propósito de um dos textos mais densos, enigmáticos e citados - ''Sobre o conceito de história'', de Walter Benjamin. Em sua leitura, Löwy o caracteriza como ''um crítico revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do 'progressismo', um nostálgico do passado que sonha com o futuro, um romântico partidário do materialismo''. As teses de Benjamin se apóiam em três fontes distintas: o romantismo alemão, o messianismo judaico e o marxismo. Fundado nesse arsenal, ele ataca, simultaneamente, o stalinismo e a social-democracia, por seus aspectos comuns de determinismo, de economicismo, de crença no 'progresso' comandando a história. 

Löwy analisa as 18 teses de Benjamin que, segundo ele, não se constituem em um desvio mas, ao contrário, em crítica das grandes vias predeterminadas, que nos reapresenta a história como um ''destino desconhecido''. Este ''manifesto filosófico'' convoca para a abertura da história, considerando as condições objetivas como ''condições de possibilidade'' e não como destino implacável. 

Benjamin busca libertar o marxismo do conformismo burocrático que o ameaça, mediante uma relação seletiva com esse pensamento, que rejeita as leituras positivas/evolucionistas. Sua obra se insere no que Löwy chama de ''tensões irresolutas entre um certo fascínio pelo modelo científico-natural e uma conduta dialética-crítica'' que afeta o marxismo. Uma leitura seletiva, mas que reivindica o que considera essencial no pensamento de Marx: o Estado como dominação de classe, a revolução social, a utopia de uma sociedade sem classes. Seu trabalho teórico se constitui em uma reelaboração crítica do marxismo, com fragmentos messiânicos, românticos, blanquistas, libertários e fourieristas, que só poderia suscitar perplexidade. 

A tal ponto, que o presente e o futuro permanecem abertos na visão de Benjamin, assim como o passado, no sentido de que a variante histórica que triunfou não era a única. É uma abertura da história inseparável de uma opção ética, social e política pelas vítimas da opressão e pelos que a combatem - conclui Löwy. 




Emir Sader (publicado originariamente Jornal do Brasil 03-12-2005)
imagem: Willian Kentridge


segunda-feira, 13 de junho de 2011


O “TEATRO ÍNTIMO DO EU” POR FERNANDO PESSOA



É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.


Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no passado da família. Já em Janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar “heterônimos” – “personas” imaginárias para povoar um “teatro íntimo do eu”. O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de \calyle, Tennyson e Browning.


Em 1905, o jovem empresário de “eus” retornou a Lisboa. Logo abandonou a universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez em quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Italo Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka.


Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, á exceção de seis sonetos portugueses. O anos de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras e de cunho lítero-estético-político-moral que cresceram da crescente crise social portuguesa (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa – a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical – encontrou expressão num secreto “Livro do Desassossego” e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadripartida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935) Pessoa fala de um “êxtase cuja a natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu mestre”.


Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram , “imediatamente e totalmente”, seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: “De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então uma ‘coterie’ inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa”.


Pseudônimos, “noms de plume”, anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quantos a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O “companheiro secreto” (íntimo de Conrad), o “duplo” prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente – veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema – antigo como a rapsódia homérica – da poesia “tomada sob ditado”, sob assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.


Nesse sentido de “inspiração”, de “ser escrito em vez de escrever”, as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra a sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitman, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard.


Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos e os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, “Eu é um outro”.



George Steiner

     
O Livro do Desassossego por Bernardo Soares, (semi-)heterônimo de Fernando Pessoa, pode ser descarregado clicando no seguinte endereço: 



O narrador principal (mas não exclusivo) das centenas de fragmentos que compõem este livro é o "semi-heterônimo" Bernardo Soares. Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, ele escreve sem encadeamento narrativo claro, sem fatos propriamente ditos e sem uma noção de tempo definida. Ainda assim, foi nesta obra que Fernando Pessoa mais se aproximou do gênero romance. Os temas não deixam de ser adequados a um diário íntimo: a elucidação de estados psíquicos, a descrição das coisas, através dos efeitos que elas exercem sobre a mente, reflexões e devaneios sobre a paixão, a moral, o conhecimento. "Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo", escreve o narrador. Seu tom é sempre o de uma intimidade que não encontrará nunca o ponto de repouso.

 «Assim como lavamos o corpo devemos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa – não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.»

sexta-feira, 10 de junho de 2011



MORTE NO EXÍLIO – A FUGA MALOGRADA DE WALTER BENJAMIN PARA A ESPANHA: "Vou fugir amanhã através dos Pirineus"

por Ingrid Scheurmann


Port-Bou, a pequena e idílica cidade portuária no sopé dos Pirineus, tem algo de transitório que é de todo impercebível, mas que o observador atento pode deduzir. Situada na divisa entre a Espanha e a França, a cidade foi marcada em toda a sua existência pela travessia da fronteira, seja por parte de contrabandistas, seja por parte de fugitivos, e é dominada pela estrada de ferro, que se entalha com vigor no vale estreito, mostrando do que vivem e como às vezes as pessoas aqui. Isto é, do comércio com a fronteira, com aqueles que queriam atravessar o lugar depressa, sem grande estardalhaço, pagando para tanto o preço exigido.
Só neste século a fronteira da Espanha foi atravessada ilegalmente com freqüência, tanto numa como na outra direção, por pessoas cuja existência se encontrava ameaçada: na época da guerra civil, pelos republicanos espanhóis numa direção; pelos intelectuais antagonistas do nazismo, em sentido contrário. Um tanto fechado e pouco tocado pelo torvelinho dos balneários próximos, o lugarejo exala o espírito do século XX e de suas catástrofes, porém revela pouco daquilo que sabe. Não há em parte alguma um memorial público, nenhuma apresentação do passado em museus, nenhum guia turístico obsequioso, praticamente ninguém que ainda se lembre bem da época da II Guerra Mundial, ou que esteja disposto a admiti-lo em público. Esta cidade carrega sua história sem revelá-la, e vive com a impressão dominante de que tudo passa, nada fica. Os ruídos contínuos inconfundíveis da estrada de ferro marcam o compasso.
É justamente neste lugar que a lembrança, em forma de um memorial em homenagem ao filósofo e crítico judeu Walter Benjamin, deve agora deter o tempo. Deve ser erigido um marco de pedra para um homem que, como todos os outros, também queria simplesmente passar; para quem Port-Bou era um nome ligado à salvação depois da fronteira, uma meta a ser atingida, uma estação na fuga para a América, imprescindível para continuar vivendo – nada mais que isso e, ao mesmo tempo, tudo isso.
Benjamin está ligado a Port-Bou somente através de sua morte. Com ela, por assim dizer, deteve o ritmo da cidade, exigiu mais atenção do que usualmente cabe ao passante e gravou seu nome na memória da comunidade mais longamente do que de costume acontece. E com isso a cidade integrou em sua própria história a história do filósofo alemão, cujos pensamentos compreensivelmente são mal conhecidos aqui. A respeito da fuga de Benjamin e de sua morte em Port-Bou, existem alguns relatos autênticos, inúmeras lendas e suposições. Muitos mistérios continuam existindo até hoje e opõem-se à avaliação e à ocupação científica. Um dos maiores pensadores e críticos do século XX está envolvido, em sua morte, com o lugarejo de trânsito e esconde-se de olhares curiosos demais, permitindo tão somente aproximações.
Sabendo-se que em 1940 Benjamin viveu pelo menos vinte horas em Port-Bou, que ele se encontra sepultado ali há cinquenta anos, mesmo assim a gente se sente decididamente desamparada na procura de provas autênticas. Sua sepultura não é mais identificável. O nicho nº 563, no qual esteve enterrado durante cinco anos, já pertence a uma outra família, não sendo mais o lugar apropriado para se recordar do alemão morto. O hotel, chamado Fonda Francia em 1940, também não fornece nada de palpável ao pesquisador. Rebatizado com o nome de Hotel Internacional, depois da mudança de proprietário, já faz tempo que não é mais hotel, havendo somente um pequeno restaurante de média categoria. E o proprietário atual não vê mais com bons olhos que se vá aos andares superiores para visitar o lugar onde Benjamin se suicidou – o que é compreensível. Pessoas que poderiam contar alguma coisa a respeito do filósofo, como o antigo proprietário do hotel, senhor Suñer, ou o médico que o examinou, doutor Vila, estão mortos há muito; outras, não se recordam. Restaram as lendas e os fãs de Benjamin, que de vez em quando passam por lá para conhecer o lugar e procurar sinais esclarecedores.
Durante muito tempo, o lugar não quis revelar o ponto obscuro que envolve sua história. Hoje, somente alguns poucos ainda se lembram dos acontecimentos das décadas de trinta e quarenta, mas a disposição para um trabalho de recordação aumentou. O memorial de Walter Benjamin, que a República Federal da Alemanha só passou a considerar nos anos oitenta, é visto agora também pela comunidade espanhola como sendo possível e desejável.
Diante da fascinação pela obra literária de Benjamin e pela independência de seu pensamento entre os extremos de rejeição que lhe eram possíveis, com o sionismo de um lado e o marxismo de outro, diante da fascinação também pelo vigor e pela legitimidade de seus pensamentos numa época que já se distanciou cinquenta anos de sua época, a questão relativa à sua fuga e à situação desesperadora no fim de sua vida surge exatamente neste lugar como uma constelação única, imprevisível, que lhe roubou toda e qualquer perspectiva. A tragédia de Benjamin: “Um dia antes, ele teria passado livremente, um dia mais tarde, teria sabido em Marselha que na ocasião não era possível passar a Espanha. A catástrofe só podia acontecer naquele dia.” (Hannah Arendt, Benjamin, Brecht, 1971)
Por mais correta que seja a conclusão de Hannah Arendt, ainda continua sem resposta a pergunta: quando foi exatamente esse dia? O livro espanhol de óbitos anota como data de morte de Benjamin 26 de setembro de 1940, às 22 horas, e as referências em inúmeras biografias baseiam-se nessas indicações. Esta interpretação, no entanto, não é de maneira alguma a única; frequentemente são apresentadas datas entre 25 e 27 de setembro como indicações supostamente seguras.
De onde vem essa falta de clareza? Pura e simplesmente falta de informação – na pior das hipóteses polêmica acadêmica ou o resultado de disparates – eis o que continua se ligando ao último dia de vida de Benjamin. Nem mesmo um livro de óbitos anotado cuidadosamente esclarece definitivamente a questão e, de mais a mais, ele precisa tolerar um ceticismo profundo, visto que o suicídio do filósofo foi anunciado como hemorragia cerebral e, assim, falsificado, sejam quais forem as ponderações que levaram a isso. Será que outras indicações também não são falsificações, feitas com motivos semelhantes?
Não coincide com a ata oficial, entre outras, a recordação de Lisa Fittko, a guia de Benjamin na travessia dos Pirineus, que na verdade não pode relatar nada a respeito de sua morte, mas que em compensação consegue se lembrar com grande precisão do transcurso e data da fuga. Segundo ela, Benjamin começou a fuga no dia 25 de setembro e chegou a Port-Bou no dia 26. (Lisa Fittko, Meu caminho através dos Pirineus, Memórias de 1940 e 1941, 1980) É bem provável que Benjamin tenha posto termo á sua vida na mesma noite. Mas como se explicam então as informações de sua companheira de viagem Henny Gurland, que ainda o encontrou vivo na manhã após a chegada à Espanha e a quem ele contou da overdose de morfina que tinha tomado? Ou a carta de Grete Freund, que estava hospedada no Hotel Internacional na mesma época e contou que ele morreu mais ou menos 24 horas depois de chegar lá? Ou as insinuações na literatura secundária, que às vezes fazem alusões vagas à data da morte – como que para negar uma última segurança? A fixação definidora da data de morte em 26 de setembro, que se tornou regra, com efeito compensa apenas aparentemente a falta de conhecimentos definitivos a respeito das circunstâncias exatas.
A morte de Benjamin na Espanha foi antecedida de uma fuga dramática, foi antecedida de anos de exílio na França. Ele emigrou já em 1933 da Alemanha nazista para Paris, que era para ele a capital recôndita da Europa, refúgio para gerações de emigrantes vindos de todos os países. Foi em Paris que ele passou pelo rigor do exílio, interrompido apenas por curtas temporadas em San Remo, visitando Dora, sua ex-mulher, ou na Dinamarca, visitando o literato Bertold Brecht, de quem era amigo. Permanentemente ameaçado e afetado em sua força criadora por uma miséria financeira latente, separado das editoras alemães que lhe eram benévolas e incapaz de se estabelecer em sua profissão em Paris, ele dependia por completo da ajuda e do subsídio financeiro do Instituto de Pesquisa Social, então estabelecido em Nova York – uma dependência que se mostrou martirizante para o espírito independente.
Já em fins de 1939, em consequência do pacto entre Hitler e Stalin, a guerra passou a definir também os intelectuais alemães fugidos do nazismo como inimigos do país em que tinham buscado abrigo. Para Benjamin, assim como para muitos outros alemães, isso significou internamento, campo de concentração.
Após viver amontoado com milhares de homens em condições sub-humanas no estádio de Colombes, num subúrbio de Paris, ele passou por uma segunda fase de internamento no campo de concentração Vernuche, perto de Nevers, às marges do Loire. Graças à ajuda de amigos franceses, conseguiu voltar para Paris logo depois de alguns meses. Lá lhe restou, contudo, pouco tempo para seus estudos na Biblioteca Nacional.
Depois da ocupação de paris pelas forças armadas alemãs e depois do armistício com o novo governo de Pétain (14 a 22 de junho de 1940), todos os fugitivos ficaram ameaçados de ser entregues á Gestapo. Permanecer na Europa significava para a maioria deles perigo de vida. Começou então uma indescritível fuga em massa de Paris. Mesmo para Benjamin, que se sentia intimamente ligado à cultura européia e que nunca tinha pensado seriamente em emigrar para os Estados Unidos, a transferência para a América passou a representar a única esperança.
Fugindo em direção ao sul, ele parou primeiramente durante quase dois meses em Londres, um dos principais pontos de passagem dos inúmeros fugitivos. Em agosto, após receber o ansiado visto americano, dirigiu-se para Marselha, para deixar a França partindo de lá. Depois que uma primeira tentativa de fuga malogrou – o disfarce de marinheiro não protegeu grandemente o intelectual –, em meados de setembro começou a última etapa de sua fuga.
“Vou fugir amanhã através dos Pirineus”, foi a última coisa que comunicou em Marselha ao escritor Hans Sahl, que estivera internado com ele em Nevers. Depois disso, começou a viagem em direção da fronteira espanhola, juntamente com Henny Gurland e Joseph, o filho desta com de dezesseis anos, a quem tinha conhecido casualmente. Seu objetivo lá era encontrar-se com Lisa Fittko, emigrante de Berlim como ele próprio e casada com o combatente da resistência Hans Fittko, que Benjamin tinha conhecido em Nevers. Hans havia prometido que sua mulher, que era prática e experiente, ajudaria Benjamin, intelectual pouco ativo. Relações travadas por um curto espaço de tempo no exílio intervinham profundamente nas vidas respectivas, quando a ameaça era comparável e a solidariedade proporcionalmente grande.
“Minha senhora... desculpe o incômodo. Espero não estar importunando... seu esposo... me explicou como encontrá-la. Ele disse que a senhora me levaria para a Espanha, atravessando a fronteira.”
Cortês e distinto, cuidadosamente atento para manter a forma correta mesmo nessa situação de perigo de vida, é assim que Lisa Fittko quarenta anos mais tarde se lembra de como Walter Benjamin chegou de surpresa à porta de sua casa em Port-Vendres, na manhã de 25 de setembro de 1940, pedindo-lhe ajuda na travessia da serra que o separava da liberdade.


imagem: Gleen Ligon
(continua num próximo post)

quarta-feira, 8 de junho de 2011


À GUISA DE RETIRO


En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
[...]
En la noche dichosa
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz y guía,
sino la que en el corazón ardía.

São João de la Cruz
Canciones del alma


Retirei-me por um dia da vida. Passei-o na cama com histórias policiais. Pode parecer brinquedo tal retiro. Mas na verdade é lindo e transparente. Retiro-me do mundo, não mostrando a ninguém minhas feridas. Não mostro as minhas nem a Deus. Respondo aos ataques do mundo fazendo corpo mole. É num desses de corpo mole que morrerei sozinha como um homem nu.


Mas um dia mostrarei a Deus a minha face. E esta será tão terrível que Ele se assustará. Minha face lhe dirá: olhe, olhe o que você fez de mim ao me fazer humana. Más será a cara de um cadáver sem susto, já sem perigo de morrer, nada mais tendo a temer. Quando eu perder meu corpo triste ficarei de espírito livre e solto nos ventos das montanhas. Sem nada o que fazer por toda a eternidade. Pousando numa árvore de tronco escuro, ora pousando numa das rochas da terra. As grandes perguntas me aterrorizam. Não ouso fazê-las. Mas eu vou ser alguma coisa depois de morta? E pra quê?


Estou escrevendo na cama, deixei de lado por um instante o livro que lia. Sinto-me sozinha em pleno centro civilizado do mundo. Em baixo do meu edifício estão britando a rua num ruído incessante e infernal. E no meio disso estou eu em silêncio, repousando do último ataque que a vida me deu e que foi quase fatal. Só de quem se ama tanto é que pode partir a grande flechada que nos atinge em pleno rosto espantado. Não me queixo: só que me retiro de cena e faço corpo mole. Mexi-me demais no mundo das paixões e agora recolho-me para lamber minhas feridas ainda quentes de sangue. Não, não estou fazendo confidências. nunca a úmida confidência. E sim o seco depoimento de uma mulher sem ilusões. Pouco me resta, pouco tenho a perder. Estou livre. É uma liberdade grave e muda. Também com certa tristeza que existe na liberdade. Mas sinto que coisas me prendem ao mundo e espero morrer sem que essas coisas me sejam tiradas. Não quero viver muito por medo de dar tempo de me cortarem em pedaços.


Com estilo sem estilo dos bons contistas de história policial, aprendo a relatar, aprendo a denunciar. Eu denuncio a pureza do mundo. Denuncio as trevas em que vivemos, trevas de ambições e desejos que se reviram como cobras empilhadas. Desço fundo no meu retiro espiritual. E por estranho que pareça será do fundo de meu abismo que renascerei com um rosto calmo, quem sabe se até mesmo com a leve força de um sorriso.


Minha cama é dura , as histórias são duras, minha luta é dura, as histórias que vivi são duras. Aceito o desafio. Mas estou no momento sem muita força. Eu quereria poder escrever sobre pedras e não sobre homens. Quero a seca engenharia dos guindastes. Quero este ruído dos britadores que riem alto na luta.


Li hoje histórias de homens que não podem mais resistir – e eu hei de resistir? A tentação do pior é grande e, para não sucumbir a ela, apago-me, apago a chama de minha vida pequena. Reduzo-me a quase zero. Só me resta o ritmo respiratório leve.


E é este ritmo respiratório, que, bem sei, me levará a me levantar desta cama e de novo desejar. Desejar o quê?


Desejar apenas que esse ritmo respiratório tão leve perdure um pouco mais. Para eu poder beijar uma criança. Tudo tem que ser bem de leve para eu não me assustar e não assustar os que amo. Pedem-me pouco, pedem-me quase nada. O terrível é que eu tenho muito para dar e tenho que engolir esse muito e ainda por cima dizer como delicadeza: obrigada por receberem de mim um pouquinho de mim.


Acho que tenho dito. Resta-me me levantar dessa falsa cama de enfermo e começar ainda desajeitadamente a lutar. Tudo isso que eu escrevi, agora, é pra mim mesmo, não é para ninguém mais. Sou dura na queda. Adeus.



Clarice Lispector, texto não datado. Fonte: Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa. Publicado como pós escrito no livro de ensaio “Línguas de Fogo”, Claire Varin, São Paulo: Limiar, 2002.

sexta-feira, 3 de junho de 2011




 
"Está acabado"
Samuel Beckett, Fim de partida
Imagem: Louise Bourgeois, Célula (Arco da Histeria)


As tecedoras


Eu as conheço, as horríveis, as tecedoras envoltas em penugem
em cores que crescem das mãos, do fio
até o coágulo trêmulo movendo-se na rede de dedos ávidos.
Filhas da sesta, lesmas pálidas escondidas do sol,
nas bacias deixadas nos pátios crescem seu veneno e sua paciência,
nas varandas ao anoitecer, nas calçadas dos bairros,
nos espaço sujo de buzinas e lamentos do rádio,
em cada vazio onde o tempo for um pulôver.
Tecem estupidez, lágrimas e desmemória,
tecem, dia e noite tecem a roupa de baixo,
tecem a bolsa onde se afoga o coração,
tecem sinos encarnados e luvas roxas para nossos joelhos.
Tece, mulher verde, mulher úmida, tece, tece,
Amontoa em tua saia matérias putrescíveis
de onde brotaram teus filhos,
Essa lenta maneira de vida, esse óleo de escritórios e universidades,
Essa paixão de domingo à tarde na arquibancada.
Sei que tecem de noite, em horas secretas, levantam-se do sonho
e tecem em silêncio, nas trevas; já fiquei em hotéis
em que cada quarto às escuras era uma tecedora, manga de camisa
cinza ou branca saindo de baixo da porta; e tecem nos bancos,
atrás dos vidros embaçados, tecem nas latrinas e
nos frios leitos matrimoniais tecem de costas para os roncos,
e nossa voz é o novelo para teu tecer, aranha amor, e esse cansaço
nos cobre, agasalha a alma com ponto de cruz
ponto de cadeia Santa Clara,
a morte é um tecido sem cor e os estás tecendo para nós.
Lá vêm, lá vêm! Monstros de nome flácido, tecedoras,
Dedicadas donas de casas nacionais, escriturárias, louras
manteúdas, pálidas noviças. Os marinheiros tecem,
os doentes cercados de biombos tecem para a insônia,
do arranha-céu descem enormes franjas de tecido, a cidade
está embrulhada em lãs que parecem vômitos verdes e roxos.
Já estão aqui, já se levantam sem falar,
somente as mãos onde agulhas brilhantes vão e vêm,
e têm mãos na cara, em cada seio têm mãos, são
centopéias são centomãos tecendo num silêncio insuportável
de tangos e discursos.



JULIO CORTÁZAR. Último round. Tomo I. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.206-9.
imagem: Louise Bourgeois, “Spider Home”, 2002.