o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 17 de março de 2011


palavra é crueldade


ó vida triste vida
se eu casasse com a filha
da minha lavadeira
dava na mesma



ney ferraz paiva, do livro não era suicídio sobre a relva

quinta-feira, 10 de março de 2011



LÁGRIMAS AMARGAS DE RAINER WERNER FASSBINDER



fazer alguma outra coisa próximo às estrelas
[mas eu não quero que vocês me amem]
fazer alguma outra coisa sob águas profundas
[mas eu não quero que vocês me lembrem]
fazer alguma outra coisa contra o sofrimento
[mas eu não quero que vocês me perdoem]
fazer alguma outra coisa entre o amanhecer & o fim
[mas eu não quero que vocês me tirem das profundezas do silêncio]

o amor        
mesmo o mais forte
é mais frio do que a morte
estou a ponto de vomitá-lo da minha boca


ney ferraz paiva, não era suicídio sobre a relva

quinta-feira, 3 de março de 2011



UMA ARTE

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! e nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.


Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


— Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.



Elizabeth Bishop, The complete poems 1927-1979.
New York, Farar, Straus and Giroux, 1991.
Tradução: Paulo Henriques Britto
Iamgem: sequência final de Betty Blue

terça-feira, 1 de março de 2011

tempo glauber




poderás dizer fechado como estás
nesta amêndoa
relógio veloz & sem rédeas
oceano de memória com umbrais de sepulcro
noturna estação vista pela última vez
com certeza você meu inimigo
um tipo de milagre tirado da rocha
[você preferia a palavra terra
acrescentava a ela outras metáforas tortuosas
sol vento trovão]
você dirá [não vamos mais perder esta pista]
respiração submersa
triste amálgama de linfa & sangue
sem vagas expressões de conforto
mais uma crise de sufocação
você dirá ainda assim
das entranhas de um animal abatido
a terra é a última cicatriz






ney ferraz paiva, não era suicídio sobre a relva
imagem: graciela iturbide

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011


HÁ UM FERNANDO PESSOA EM MIM QUE DEUS ME DISSE


tive sempre o mesmo pai a mesma mãe
eu que fui vário
nascemos como as pedras com todos os sexos
meu coração dá as ordens
cortejando mulheres
seres à deriva
indiagnosticáveis desejos
meu horóscopo é o mesmo de fernando pessoa
impostas certas cláusulas contratuais
o parentesco não me serve de nada
um a um eu os vi morrer todos eles
gagos de voz & de mãos
sem uma saída viva pra vida


ney ferraz paiva
imagem: fernando lemos

domingo, 20 de fevereiro de 2011





três anos de Paris
sitiado & sitiante
sob a força de um destino cego


um vago amor duas ou três paixões
nem deuses nem cantos
nem a beleza das mulheres


dispersar-se foi a forma que achou pra habitar a terra
ou ainda:certa zona louca de seu mundo interior
até o ponto extremo de não mais se distinguir nem se saber


mostrar a imagem nada além de imagens obter
cinquenta & um poemas – eis tudo
nem mito nem ciência nem razão
nenhum outro indício


houve ainda duas ou três cartas enviadas a Fernando
[trancara-se & sela-se pro amigo]
véu negro da palavra o silêncio
última intuição que talvez seja a verdadeira



ney ferraz paiva, do livro nave do nada
imagem: robert e shana parkeharrison

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011



m/m



vi teu novo livro
o velho rei ri uma outra vez
oracular & tipográfico
sol de mil línguas
sal do mar morto
palavras que se encaixam pra ser ouvidas longe
amalgamada infatigável enfurecida fonte
baforadas do velho credor
na rede em que lê-escreve ressoando
te roendo
bebe agora a primeira dose do dia -
à vossa saúde




ney ferraz paiva, do livro val-de-cães
imagem: marcia huber 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os homens submersos voltarão?


Não sou um autor defunto, sou um defunto autor. 
Machado de Assis


Não há reencarnações literárias. À parte leitura e obra, o escritor é amorfo à ressurreição. Depois de sua morte temos que seguir em frente. Quando Carlos Drummond morreu, restava-nos ninguém menos do que João Cabral de Melo Neto, ainda que no Olimpo não tivesse havido nenhuma sucessão ou transição. Drummond e Cabral faziam parte do mesmo mundo incomensurável de todos os mortais. Nem mesmo nessa hora a literatura distingue seus filhos diletos. Toda passagem da morte para a glória literária é incerta. Os serviços pós morte de um escritor enfrentam o grave problema da invisibilidade que aniquila qualquer indivíduo. Há de se fazer seminários, simpósios e debates em torno de sua obra. Trocas de pensamentos com o além costumam imprimir certo vigor ao desaparecido. Documentários também costumam ajudar bastante. Mas nada é tão definitivo como publicar as cartas do falecido (ai do escritor que não escreve cartas!). É dessa forma que ele pode estar de volta, rompendo o silêncio que o quis aniquilar.



A edição de fevereiro da revista “Bravo!” publica matéria que praticamente ocupa toda a seção destinada à livros. É que Drummond está de volta. Cartas trocadas entre ele e Cyro dos Anjos serão publicadas este ano. Mas desde já podemos pressentir os sinais e as reviravoltas de sua aparição? Drummond foi um poeta que escolheu viver na República de Platão. Ao longo de meio século de lida com a palavra jamais se lançou a nenhum infortúnio. Acomodado, calmo e pouco dado à fala, foi acusado inúmeras vezes de exercer acriticamente e sem transparência o ofício. Mário Faustino chegou a assinalar que se tratava de um poeta que não manifestava “grande interesse pelo progresso da Poesia”, e que atravessou de forma opaca momentos cruciais da vida sócio-cultural de seu tempo. Desprendido do limbo, dessa vez as confidências do itabirano conseguirão abalar a inércia atual dos arraiais literários?



Uma primeira coisa a considerar, em se tratando de uma prática pessoal, é se as cartas superam aspectos como contexto e particularidade – e talvez a forma de se chegar a uma resposta seja avaliar os motivos que levaram Drummond a não escrever suas posições estéticas direto nos jornais. Se tudo era operado a partir de uma análise crítica rigorosa e não apenas como comentário subjetivo, destinado à confidência e ao desabafo sentimental. Pelo que se lê na revista, os excertos das cartas, tratados como “opiniões fortes” no título da matéria, se voltam preferencialmente contra dois grupos: os regionalistas Nordestinos e os escritores de formação católica. Drummond parece movido por certo modo de ver e não de interpretar uma crise que de fato existisse. Segredar opiniões fortes, confidenciá-las a um interlocutor amigo, sem, contudo se rivalizar esteticamente, de forma nítida, com nenhum dos autores. É o que acontece aqui. Drummond tinha parceiros tanto num grupo quanto no outro. Um extenso e variado acervo fotográfico o coloca repetidas vezes ao lado de um José Lins do Rego ou de um Vinicius de Moraes. Ao fomentar melhores traços para o romance brasileiro a partir de o “Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos, sua aposta não escapa de parecer hoje uma piada sinistra. E assim como os nordestinos seguem assegurando seus nomes e obras no espaço literário, é o caso citar Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito, as vãs simetrias de humor e estilo do missivista impiedoso acabariam por confirmar, em 1976, mais do que afinidades e entusiasmos com a escrita de Adélia Prado, poeta católica a que recomendou e incensou ao galardão – antecedida por Cecília Meireles e Lúcio Cardoso.




Drummond deveria duvidar um pouco mais das circunstâncias e do seu vasto coração. Isso vale para os célebres e os iniciantes. Ternas hipérboles ligavam o poeta sobretudo aos conterrâneos mineiros. O que de forma alguma o torna inferior a seus pares. Há uma face nebulosa da cena intelectual brasileira em que o infinito abismo só pode ser evitado com fisiologismo e fácil elogio. Muitos enigmas ainda a se decifrar no vasto, mas nem tão variado, cânone da literatura dita nacional. Crescentes e sórdidos labirintos separam do grande público a reimpressão literal dos fatos. É dessa maneira que se constroem reputações, carreiras bem sucedidas e se recebe rentáveis prêmios. Há sempre uma carta, bilhete, ou mais atual: um torpedo, um e-mail que intermedeie patrocínios relâmpagos e estratosféricos valores que a burocracia dos editais não têm como atender. Passos secretos e semidivinos. Afinidades na forma e no tom. Assim declaram as odes e os espelhos. A idiossincrasia kafikiana dos gabinetes e o sobrenatural que vez por outra nos espreita.

Excertos das cartas de Carlos Drummond para Cyro dos Anjos:

“O arraial das letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia de Raquel, onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance de Zé Lins. (...) O livro de Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe sequer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria talvez em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião.”
(11 de outubro de 1953)

“Ainda não pedi notícias de seu romance, que me interessa muito. É da maior importância que você o conclua, contribuindo para que se retifique o conceito atual do romance entre nós. A mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e anti-crítica de aspectos de uma vida regional, como fazem os rapazes do norte (entre parênteses: como escrevem mal!), nem essa literatura ‘restaurada em Cristo’ com que nos aporrinham os pequeninos gênios marca Lúcio Cardoso.”
(04 de agosto de 1936)


Ney Ferraz Paiva, Salgueiro-PE, fevereiro 2011.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011


Um pedaço de poesia no bolso – e nos lábios



Em “Olhos de Barro”, José Geraldo Neres associa imediatamente o corpo à terra, como signos que contaminam o espaço. Pedaços que se juntam do mundo inteligível a outros – “esses que nos acenam da outra margem”, como diz Mia Couto na epígrafe de abertura –; uma vez que o livro logo se lança a variadas margens de enunciações, lugares e portos, e outros tantos anúncios de itinerários – música, sonho, noite, chuva, voz, espelho. Signos extraviados como o próprio livro se extravia a um encontro com o leitor, numa viagem entre parêntesis, sem acertos prévios. “Molhado caminho a costurar corpos”, a evocar as misturas que não podem esperar – uma à margem da outra, “ombro a ombro” expostas, abertas, a circular por uma tipografia de lugar nenhum onde só os “corpos se inclinam em resposta”, que pode ser mesmo a mais insignificante, corriqueira, modesta, (um aceno). Que mais se pode dizer? Se a poesia está nos lábios, também pode se enfiar no bolso, como um tipo especial de objeto de família. É por esse duplo movimento que José Geraldo Neres nos mostra a fotografia antiga (ainda que breve) de sua poesia. Sem arremedar ou traduzir paisagens. Antes, a esgarçar significativamente e de forma plural a vida. Lançado à terra, o corpo livra-se das barreiras do estereótipo. “As casas caem com o passar do tempo”. E a poesia (nomes, cheiros, sombras) põe o mundo num novo princípio, ainda que uma vez mais prevaleça caprichosamente as imagens fixas da fadiga. Sendo antiga, a poesia escapa da perspectiva do futuro, sem os danos colaterais das outras linguagens. E por isso mesmo ela é sempre o frescor irrefreável do novo, num momento: “corpos de terra, agora pó, parede, casa”.



os que acenam da outra margem II

Os pés crescem a brincar ladeira abaixo. Meu nome. Carrinho
de barro sem palavras. As marcas da chuva na terra sequer acompanham
nossas sombras. A rua deságua nas raízes das casas.

Espreitado por portas e janelas, o céu se arrepia. Molhado caminho
a costurar corpos. Ladeira abaixo, fome não existe. O tempo, língua de
outra língua, desenha outros carrinhos. Corpos se inclinam, verdes olhos
acenam em silêncio. A força do vento causa inveja aos anjos.


Ney Ferraz Paiva
Olhos de Barro, José Geraldo Neres, Editora Multifoco, Orpheu poesia, 2010
imagem: Sigmar Polke, primavera

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011


Luiza menina espantalho






Sartre conta que a morte do seu pai, devolveu sua mãe à prisão e deu-lhe liberdade, porque se tivesse sido de outra forma, confessa “não há bom pai, é a regra... houvesse vivido meu pai deitar-se-ia sobre mim durante muito tempo e esmagar-me-ia”.

Para Luzia, personagem do curta-metragem “Menina Espantalho”, do diretor Cássio Pereira dos Santos, de 2008, o pai é um peso a esmagar as tentativas da menina de ler o mundo através dos livros. Limitada ao universo feminino que o pai reconhece, com a anuência da mãe, Luiza se entrega às artimanhas da invencionice infantil. Já com uma leve pitada de malícia feminina ela convence o irmão – único a receber o benefício da educação formal, por ser menino – a ensiná-la a ler.

Tudo feito na calada da noite, sob a luz trêmula da lamparina; a menina é iniciada nos sussurros das sílabas-senhas do alfabeto. Como contraponto a tentativa da mãe em adestrar a pequena Luiza nos afazeres domésticos e pouco fetichizados, como é o caso do bordado para o qual a menina não denota nenhuma habilidade. Uma alegre visão é a mãozinha dela passeando nas cerdas do arroz novinho, recém-nascido com o seu verde tenro, que no vigor da cena lembra Manuel de Barros: “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:/Que o esplendor da manhã não se abre com faca”.

Todas as coisas atadas bem naquele ponto de junção em que a verdade dos fatos quer ser tão somente a verdade de um mundo que almeja explodir geografias, destinos, mapas – espécie de gramática expositiva do chão – descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas (Manuel de Barros). Incansavelmente a vida é lavrada em uma alegoria de que o tempo da leitura pode ser o mesmo da lavoura, uma trajetória que pode brotar em qualquer ponto entre preparar o solo e colher o alimento. Muito menos que isso compreendido, visto habitar a repetição e a intensidade de dias banais: a mãe e o seu silêncio – onde para a mulher falar é prata, calar é ouro; o pai e o semblante enraizado, endurecido – estudar é coisa para homem, embora ele mesmo não tenha podido fazê-lo.

Está tudo ali, sem ser uma definição, nem mesmo em partes menores, da vida e do mundo; sequer uma sublevação: nenhum ato é mais importante do que outro, mesmo no momento em que o pai é tomado de emoção com a leitura inesperada da carta do irmão feita por Luiza; não há ambivalências aí, há a simplicidade do ato, residindo aí toda beleza do filme: ele não quer recuperar uma cronologia histórica, nem desfraldar a bandeira iluminista. Fala apenas das coisas como elas são com a inflexão próxima de quando se lê um belo romance ou se descobre um bom poema – ou um filme singular.

Juliete Oliveira

Salgueiro-PE, janeiro 2011

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Orquestrar o Rio de Janeiro



O que significa uma equipe de reportagem desembarcar no Alemão junto com a polícia? Como se dá tal encontro ou incorporação? Com que fim? Este encadeamento de perguntas não comporta na verdade a complexidade que parece enfatizar. Ele escamoteia e embota ainda mais os fatos e o raciocínio. Em meio a tantos jargões (“demonstração de força”, “recuperar o controle”, “ocupar território”) e por causa de um deles, justamente o que mais escapa ao discurso militar, talvez seja preferível pensar que a Vila Cruzeiro tenha sido apenas o ensaio de um grande concerto que se daria horas depois. O lugar se tornou simbólico desde que um orquestrante foi morto ali durante uma incursão pessoal. Agora a maior apresentação de todos os tempos aconteceria no Alemão. Em mais uma sensacional cobertura da grande mídia a cidade toda veria e escutaria. Os moradores nervosos, aflitos. O suor escorrendo sem tempo para secar a testa. Nos cômodos sombrios, quantos esperariam, em silêncio? Logo iria começar. A operação, muito bem "orquestrada", estava sendo anunciada como a continuação final de “Tropa de Elite 2”. Dessa vez a sensação de justiça não poderia ser menor do que antes. Com a possibilidade dos criminosos serem aniquilados para sempre, todos deviam estar sentindo o mundo vibrar na mão. Apenas a orquestra não movia um só músculo. Tem de ser agora. Dias depois as chuvas ocupariam a cena. Até aqui ninguém podia dizer quando chegaria o temporal, mas ele viria, tão certo como os campos floridos da primavera, ele sempre vem. Enquanto isso, no Alemão, todos esquadrinhavam. Antes do entardecer a orquestra já deveria ter acabado sua apresentação. E a vida estaria desbloqueada. Na penumbra do quarto ou na densa dureza das ruas, todos eram obrigados a esperar. Impossível calcular o tempo entre um e outro relâmpago. Aquele primeiro ao menos esvoejaria imprecisa esperança. Quinze dias, um mês depois o outro. A chuva a se esticar sobre a terra. A terra movendo-se no ritmo da morte. Os comentaristas não estabeleceriam nenhuma conexão entre os fatos. Ainda que a cobertura da ocupação se estendesse pelos dias e em todas as direções. Coisas assim é bom que irrompam de repente, entrecortadas, adversas. “Fatos isolados”. É o que todo repórter e todo político relincha. Limitados pela zona de luz de tamanha sensatez. Uma ou outra vibração quase sempre repetida toma lugar da indignação. Que esta foi a última vez; que a partir de agora tudo vai melhorar; que estamos no caminho certo... O Estado democrático e suas legitimidades. Com ele uma coisa ruim até pode terminar, mas em seguida outra está começando, inevitável. Quem poderia saber das chuvas, enchentes e deslizamentos de verão? Todos pegos pela novidade e pelo ineditismo próprio das estações. Ninguém a se responsabilizar, pelo tanto que se revestem dos discursos morais – que cortariam a mão antes de pegar a propina não fosse essa uma prática “normal”. Como ainda o Rio de Janeiro pode ser afastado de tamanha pobreza? Com paredes “acústicas”? O Rio de Janeiro surpreendentemente tão empobrecido quanto o mais longínquo município do norte do Brasil. Em sua infraestrutura sim, mas também em seu espírito. Na dissimulação afetada dos dirigentes, que forjam uma cidade de exacerbada desigualdade como jamais foi – sem que esta seja mais uma interminável frase nostálgica, que tenta impor o prestígio de outros tempos. A frase suscita as diferenças sociais, os conflitos pessoais, os concentrados privilégios. E é esta cidade apequenada, desorquestrada do futuro, que se inclina ora para aplaudir ora para lamentar os repetidos consertos de dramáticas possibilidades.


Ney Ferraz Paiva, jan 2011
imagem: Andy Warhol 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Cortador de água


Cidade subaquática em Shicheng, na China


Foi num dia de verão, há alguns anos, numa cidadezinha do leste da França, talvez três anos, ou quatro, à tarde. Um empregado da companhia de fornecimento de água foi cortar a água em casa de pessoas que estavam um pouco à parte, um pouco diferentes dos outros, digamos, retardadas. Moravam numa estação fora de uso – o T.G.V.* passava pela região – que a comuna lhe propiciara. O homem fazia pequenos trabalhos para as pessoas do lugar. Provavelmente contavam com um auxílio da prefeitura. Tinham dois filhos, de quatro anos e de um ano e meio.

Defronte à casa deles, muito perto, passava aquela linha do T.G.V.* Eram pessoas que não tinham condições de pagar suas contas de gás, eletricidade e água. Viviam numa grande pobreza. E, um dia, chegou um homem para cortar a água na estação onde viviam. Viu a mulher, silenciosa. O marido não estava em casa. A mulher um pouco retardada com uma criança de quatro anos e um bebê de um ano e meio. O empregado era um homem aparentemente como qualquer homem. Esse homem, denominei-o o Cortado de água. Ele viu que era em pleno verão. Sabia que era um verão muito quente porque o vivia. Viu a criança de um ano e meio. Havia recebido ordem de cortar a água, foi o que fez. Respeitou seu emprego de tempo: cortou a água. Deixou a mulher sem água para dar banho nas crianças, para lhes dar de beber.

Na mesma noite, aquela mulher e seu marido pegaram as duas crianças e foram se deitar sobre os trilhos do T.G.V. que passava defronte à estação fora de uso. Morreram juntos. Cem metros a vencer. Deitar-se. Sossegar as crianças. Adormecê-las talvez com canções.

O trem parou, dizem.

Pronto, a história é essa.

O empregado falou. Disse que tinha ido cortar a água. Não disse que havia visto a criança, que a criança estava lá, com a mãe. Disse que ela não tinha se defendido, que não tinha lhe pedido para cortar a água. É só o que se sabe.

Tomo esse relato que acabo de fazer e de repente ouço minha voz – ela não fez nada, não se defendeu. É isso. Deve-se saber disso pelo empregado da companhia das águas. Ele não tinha razão alguma para não fazê-lo, visto que ela não lhe pediu que não o fizesse. Será isso que devemos apreender? É uma história de deixar louco.

Prossigo. Tento ver. Ela não disse ao empregado da companhia das águas que havia duas crianças a considerar, pois ele estava vendo as duas crianças, nem que o verão estava quente, pois ele estava nesse verão quente. Ela deixou que o Cortador de água se fosse. Ficou sozinha com os filhos por um momento, depois foi à cidade. Foi até um restaurante que conhecia. Nesse restaurante, não sabemos o que disse à proprietária. Não sei o que ela disse. Não sei o que a proprietária falou. O que se sabe é que ela não falou da morte. Talvez ela tenha contado a história, mas não disse que queria se matar, matar os dois filhos, o marido e ela mesma.

Como os jornalistas não sabiam o que ela dissera à proprietária do restaurante, deixaram de assinalar esse acontecimento. Entendo por “acontecimento” o instante em que essa mulher saiu da casa dela com os dois filhos, depois de ter se decido pela morte de toda a família, com um objetivo que ignoramos, de fazer alguma coisa ou dizer alguma coisa que ela tinha a fazer ou dizer antes de morrer.

Nesse ponto, restabeleço o silêncio da história, entre o momento do corte da água e o momento em que ela voltou do restaurante. Ou seja, restabeleço a literatura com seu silêncio profundo. É isso que me faz avançar, é isso que me faz penetrar na história; sem isso, fico do lado de fora. Ela teria podido esperar o marido e anunciar-lhe a notícia da morte que decidira. Mas não. Foi até à cidade, foi àquele restaurante.

Se essa mulher tivesse se explicado, a coisa não teria me interessado. Christine Villemin, que não é capaz de alinhar duas frases, me fascina, porque também tem o que essa mulher tem: a violência insondável. Existe um comportamento instintivo que podemos tentar explorar, que podemos restituir ao silêncio. Restituir ao silêncio um comportamento masculino é muito mais difícil, muito mais falso, porque os homens não são o silêncio. Em épocas passadas, em épocas distantes, há milênios, o silêncio são as mulheres. Portanto a literatura são as mulheres. Ou bem se fala delas na literatura ou elas próprias o fazem, mas são elas.

Portanto, essa mulher a respeito de quem se imaginava que não falaria, visto que jamais falava, deve ter falado. Não deve ter falado de sua decisão. Não. Deve ter dito alguma coisa em lugar disso, em lugar de sua decisão, e que, para ela, era seu equivalente e ficaria sendo seu equivalente para todas as pessoas que ficassem sabendo da história. Talvez fosse uma frase sobre o calor. Ela teria ficado sagrada.

É nesses momentos que a linguagem atinge sua máxima potência. Seja o que for que ela disse à proprietária do restaurante, suas palavras diziam tudo. Aquelas três palavras, as últimas que precederam o empreendimento da morte, eram o equivalente do silêncio daquelas pessoas durante sua vida. Essas palavras, ninguém as guardou.

Isso acontece todos os dias do mesmo jeito na vida, no momento de uma partida, de uma morte, de um suicídio que as pessoas não imaginam. As pessoas esquecem o que foi dito, o que precedeu e deveria tê-las alertado.

Os quatro foram se deitar sobre os trilhos do T.G.V. defronte da estação, cada um com um filho nos braços, e esperavam um trem. O Cortador de água não teve nenhum problema.

Acrescento à história do Cortador de água que aquela mulher – que diziam retardada –, seja como for, sabia alguma coisa de modo definitivo: é que ela nunca mais poderia, assim como nunca tinha podido, contar com quem quer que fosse para tirá-la da situação em que estava com a família. Que estava abandonada por todos, por toda a sociedade, e que só tinha uma coisa a fazer, morrer. Ela sabia disso. É um conhecimento terrível, muito sério, muito profundo, que ela tinha. Portanto, mesmo o retardamento dessa mulher, a partir desse suicídio, seria algo a considerar, caso se falasse dela alguma vez, coisa que jamais se fará.

Sem dúvida é aqui, pela última vez, que sua memória será evocada. Eu ia dizer o nome dela, mas não sei qual é.

O caso foi arquivado.

Fica na cabeça a sede fresca e viva de uma criança no verão quente demais a poucas horas da morte e o andar em círculos da jovem mãe retardada à espera da hora.

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* trem de grande velocidade

Marguerite Duras, A vida material, Tradução Heloísa Jahan, Editora Globo, 1989.