o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 31 de julho de 2009


Monocórdio
Agora é sempre agosto, o mes
mo odor, o mes
mo sabor, o mês
aziago

Entra mês sai mês sempre o mes
mo agosto – a boca, amarga,
soletrando o calendário

Antônio Moura, Dez, Belém, 1996

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O império da imaginação e da fantasia
por Continente Online


O poeta Sebastião Uchoa Leite nasceu em Timbaúba (PE), em 1935, mas antes de completar os trinta dias de vida já se mudava para o Recife. Bacharel em Direito e Filosofia, participou ativamente da vida intelectual da cidade, conforme se verá no corpo da entrevista, até 1965, quando, aos 29 anos, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde publicou a quase totalidade dos seus livros (a exceção é Dez Sonetos sem Matéria, pelo Gráfico Amador, em 1960). Entre 1966 e 1995, publicou os livros de ensaios Participação da Palavra Poética, Crítica Clandestina e Jogos e Enganos. Nesse período, traduziu mais de vinte livros. Entre os mais importantes se incluem Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, de Lewis Carroll, Crônicas Italianas, de Stendhal, Canções da Forca, de Christian Morgenstern (tradução parcial), Poésie, de François Villon, entre outros. Em 1970, trabalhou na Enciclopédia Mirador Internacional (da Enciclopaedia Britannica), sob a coordenação de Antonio Houaiss. De 1976 a 1990, trabalhou no Departamento de Edições do Serviço Nacional de Teatro, no Rio de Janeiro; em 1986, tornou-se responsável pelo setor de edições da antiga Fundacen (Fundação de Artes Cênicas). Na década de 1990, foi funcionário do Arquivo Nacional e do Ibac (Instituto Brasileiro de Arte e Cultura) e coordenador de Editoração do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Sua obra poética inclui os livros Antilogia (1979), Isso Não É Aquilo (1982), Obra em Dobras, 1960/1988 (1988), A Uma Incógnita (1991), A Ficção Vida (1993) e A Espreita (2000). Sobre A Espreita, afirma o crítico João Alexandre Barbosa: “Uma poética rara mais do que de raridades que, desde a desmaterialização dos sonetos dos anos 60, foi aprendendo as lições que separam os poetas raros dos ralos até ser capaz, como neste livro, de deixar passar as sombras por caminhos feitos de pedras. Um raro entre os raros.” A entrevista foi realizada na residência do poeta, no bairro do Flamengo, em julho de 2002.– Em 1980, há vinte e dois anos, você recebeu o Prêmio Jabuti, com o livro Antilogia. Em 2001, o Prêmio Murilo Mendes, com o livro A Espreita. Foi também premiado pela tradução de Poésie, de François Villon. E publicou, na Espanha, uma pequena antologia “antilírica”, com o título de Contratextos, tradução de Adolfo Montejo Navas, pela Editora DVD, de Barcelona, que obteve uma boa crítica de El País, em Madri. Nesses vinte anos, a crítica, assim como os seus pares, tem afirmado a importância da sua obra no panorama da poesia contemporânea. Seu nome figura em cinco antologias na Europa (duas na Espanha, uma na Alemanha e outra em Portugal) e em uma nos Estados Unidos. Há, na Inglaterra, um livro em que você foi incluído. O mesmo aconteceu na Espanha e na Áustria. Prepara-se ainda uma antologia na Argentina onde figura o seu nome. Que balanço faz dessa trajetória? Contrariando seu próprio verso, no poema “Migração” (A Ficção Vida, 1993), você não seria uma ave migratória que chegou a falcão?

– Esse poema a que você se refere, em que falo de aves migratórias, não é necessariamente um poema biográfico. Não estou me referindo a mim mesmo como ave migratória (embora o falcão me pareça ave muito feroz para mim). Mas, enfim, já que você colocou a questão, quero dizer que não me considero totalmente migratório porque eu vim, é certo, do Recife para o Rio de Janeiro, mas não abandonei tudo por causa do Sul. De certa forma, mantenho minhas raízes, tenho parte da minha família no Recife (duas irmãs, Maria Antonieta e Selma; Célia Maria veio para o Rio) e continuo ligado lá. Não vou com freqüência porque é muito caro e não tenho condições de gastar tanto. Não acho que fiz esse sucesso todo, foram só algumas pessoas que se interessaram pela minha obra, ou coisa que o valha. Pessoas de qualidade, acho, modestamente, críticos conhecidos. Foram, sobretudo, críticos conhecidos ou amigos. Não posso dizer que sou um êxito de público geral porque não houve isso. Houve, sim, algo como um reconhecimento, sobretudo em São Paulo e em Minas, muito pouco no Rio e quase nada no Recife, infelizmente, embora quanto a esta última, não só jamais a abandonei como a lembrei em vários textos. Não só o Recife, mas outros lugares, como, por exemplo, São José da Coroa Grande e suas praias maravilhosas. Não “cantei” coisa alguma, porque não sou cigarra e nem as amo poeticamente, me desculpem. Houve, pois, um reconhecimento que considero relativo, embora algumas vezes significativo. Algumas críticas por A Espreita me deixaram muito satisfeito, sobretudo os maravilhosos textos de João Alexandre Barbosa (incluídos depois pelo editor por terem aparecido antes do livro A Espreita, quando o crítico João Alexandre analisou os originais do referido livro na revista Cult), Luiz Costa Lima e Davi Arrigucci Júnior. Essas críticas, para mim, superaram em muito a questão dos prêmios, que não significaram tanto quanto elas. Também me deixaram mais reconhecido. E bem mais conhecido também, sobretudo no sul do país, particularmente em São Paulo e Minas, como já foi dito.Pra começo de conversa, reconheço realmente a influência de João Cabral sobre mim, mas essa influência é muito relativa, e não sou sequer de longe igual a João Cabral, quanto mais discípulo dele. É só ler os meus livros, ora essa, porque sou muito mais coloquial do que ele, por exemplo. Acho que segui mais uma pequena vértebra do que as características gerais da poesia dele propriamente. Agora, quanto às outras observações, quanto a Haroldo, acho que foi um gesto de amizade que ele teve comigo, de me fazer aquela orelha tão simpática de A Espreita. Mas a questão da pedra matricial, acho bastante exagerada, com todo o respeito que tenho por ele. Acho que pode até existir isso, mas essa pedra não está só em João Cabral, está em Drummond também. Se você observar bem, nos poemas em que falo de Pernambuco não apelo tanto para a paisagem, embora tenha acontecido o fato de que sou muito ligado ao mar do Recife e a águas de Pernambuco em geral, e há muitas referências a praias pernambucanas, sobretudo a São José da Coroa Grande. A questão da pedra matricial, a que Haroldo se refere, eu não consigo mesmo reconhecer em minha poesia, mas acho que há nela realmente a secura que é própria até da natureza das pessoas de outros estados não sulistas, sobretudo Pernambuco, mas isso não é uma questão de descendência desse fio matricial da pedra. Isso não é a minha poesia, e não vejo importância alguma dessa pedra matricial quanto a ela. Quer dizer, quanto à minha poesia (desculpem-me a ênfase nesse ponto pela insistência com que falam disso), e não quanto à de João Cabral.


– E a vida no Recife? Você viveu a infância e a juventude na cidade, época das primeiras definições. A de ser poeta, por exemplo. Houve oscilações entre essa vocação e outras? Foi no Recife mesmo que essa decisão se cristalizou? E a sua formação, seus primeiros contatos e relações? Que autores/poetas você lia?

– Sim, vivi a infância e a juventude, mas não houve decisão alguma de eu ser “poeta”. Não é nada tão importante ou tão decisivo assim. Minha vida foi um pouco a esmo, ou à deriva, e jamais houve quaisquer oscilações, desculpem as contradições. Jamais tive vocação para coisa alguma na vida, só para a aspiração de uma vagabundagem infinita. Ao contrário de João Cabral, que preferia “o inútil do fazer ao inútil do não fazer”, coisa de calvinistas, acho, embora ele não fosse crente, nem eu, muito menos. Essa história de poesia comigo é “preguicite” mesmo, e só. Não tenho ideais nem coisa alguma que me salvem de ser um mero pilantra, e muito menos uma fé qualquer. Sou um descrente total dessas lorotas todas y compris a religião, essa maluquice global, a que tenho horror profundo. Houve um tempo em que adorava ler gibis e mais nada. Quanto a mim, houve o império da imaginação e da fantasia, na infância e na juventude, e continuo fiel a isso tudo, embora, paradoxalmente, ame a verdade e a realidade e tenha gravado muitos documentários, sobretudo históricos. Minha biografia de infância e adolescência, por isso tudo, é zero. Minhas leituras e contatos foram coisas demais para se falar aqui. Nem tenho essa memória toda, desculpe.


–Quando foi publicada sua poesia pela primeira vez?


– Foi no Recife, no suplemento do Diário de Pernambuco, por interferência de Mauro Mota, poeta, estudioso da região nordestina e editor de jornal. Era um homem muito importante... Levei uns poemas e uma apresentação de José Laurênio de Melo. Ele publicou cinco poemas numa página inteira. Foi uma surpresa e uma glória para um rapaz de 22 ou 23 anos, no máximo. E fiquei, de repente, conhecido. Mas nenhum dos poemas jamais foi publicado em livro. Eu era muito exigente.


– Você chegou a travar conhecimento com Carlos Pena Filho? Você frequentou a boemia do Recife? Que memória tem do período?

– Claro que conheci Carlos Pena e gostava muito dele. Eu o achava superengraçado. Nossas idéias eram um pouco diferentes, mas, no fundo, éramos até parecidos, pois ele tinha um senso de humor fundamental para certa compreensão da poesia, que é a mesma que tenho: mais ou menos irônica em relação às sentimentalices comuns e convencionalismos em geral. Nesse sentido, acredito que ele morreu cedo demais e, por isso, não houve tempo para amadurecer mais. Sinto-me, diante da ênfase brasileira e, especialmente, pernambucana, alguém muito do contra, mas, embora paradoxalmente, pernambucaníssimo, muito mais por dentro do que por fora. Carlos era assim também, acho.


– E o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, onde o Hermilo Borba Filho teve um papel fundamental? Houve contatos seus também com o MCP, o Movimento de Cultura Popular?

– Não conheci o TPN profundamente, só alguns espetáculos, sobretudo as peças de Ariano. Surpreendi-me uma vez de ele me citar o nome num desses espetáculos. Fiquei todo envaidecido. Conheci Hermilo um pouco. Era um tipo bem engraçado. Houve um momento em que ele se mostrou muito conservador (devo explicitar, entretanto, que Hermilo jamais aderiu a qualquer credo político, sobretudo de direita, aos quais, evidentemente, ele se opunha), e também Ariano. E discordei com veemência, nos tempos, infelizmente, do triste golpe reacionário militar-civil de 1964. Depois, creio que as coisas mudaram muito. O tempo passou quase 40 anos e Ariano passou a apoiar Arraes e até colaborou numa das campanhas de Lula para a presidência. Hoje, continuo a apoiar Lula e detesto toda a corriola do PSDB, PFL, PPB, PMDB, enfim, a corja neocapitalista toda. Hermilo já morreu, e não sei que mudanças houve mais recentes quanto a Ariano. Continuará na linha da esquerda anticapitalista? Espero que sim. Ele disse uma vez que o capitalismo era a vergonha da humanidade. Concordo. Tenho horror a FHCs, Malans e tutti quanti. Horror político, pois essas pessoas me são indiferentes ou desprezíveis. Odeio também qualquer tipo de racismo.


– Ainda no Recife, em 1960, você publicou o seu primeiro livro de poesia, Dez Sonetos sem Matéria, pelo Gráfico Amador. Da experiência do Gráfico participaram muitos daqueles que se tornariam amigos seus de toda a vida, como Jorge Wanderley, Orlando da Costa Ferreira, João Alexandre Barbosa, José Laurênio de Melo, Aloisio Magalhães, Gastão de Holanda, entre outros. Qual o elemento galvanizador da experiência do Gráfico? Como avalia o clima intelectual no Recife da época?

– A presença do Gráfico na minha vida foi muito boa, porque se desenvolveram em mim várias experiências. Coisas que eu não tinha ainda conseguido compreender, como, por exemplo, o gosto dos livros do ponto de vista da qualidade material, lição inesquecível dos gráficos. E tive a influência, sim, de várias pessoas que me cercavam. As duas influências mais agudas do Gráfico Amador foram, sobretudo, a de Orlando da Costa Ferreira, que foi, digamos assim, quem gerou em mim toda essas coisas, como, por exemplo, o gosto pela qualidade e modernidade em tudo (até então, eu era meio indiscriminado quanto ao lado material dos livros e objetos em geral. Orlando era um espírito empreendedor, era ele quem mais estudava as artes gráficas, e tudo girava em torno dele), e, segundo, a de Laurênio, como também a de Gastão, que entrou com outros amigos na jogada. A experiência que eu tive foi muito boa não só no sentido intelectual, mas também no sentido do enriquecimento humano, porque eu tive o conhecimento de pessoas notáveis que viveram perto de mim e que me deram lições notáveis de vida. Entre elas, Laurênio, acima de tudo, que continua muito próximo a mim aqui, no Rio, e a quem julguei um mestre crítico em tudo e ainda como um poeta superior, que ele é ou foi, pois, estranhamente, desistiu de tudo. E também fiquei muito próximo de Orlando, não só um mestre nas artes, mas um mestre intelectual em geral. Ele era uma pessoa notável, que morreu cedo. E Gastão, que era uma personalidade muito esfuziante, pessoa de muita alegria, muito inventivo em tudo. À parte isso, tem outras pessoas que me levaram para lá. Jorge Wanderley foi um desses que me levaram para lá. E eu, depois, levei João Alexandre Barbosa. A participação de Luiz Costa Lima foi muito lateral, no Gráfico. Fiquei muito amigo dele também. Foi um grupo de amigos dessa ocasião que me influenciou muito, um grupo que era constituído por Jorge, João Alexandre, Luiz Costa Lima e Gadiel Perruci, além dos jovenzíssimos, na época, Adão Pinheiro e Marcius Cortez. E várias outras pessoas que se aproximaram também. No Gráfico, no chamado Atelier 415, da rua Amélia, havia outras presenças, sobretudo as de Aloisio Magalhães, que era só pintor na época e depois se fez muito importante, como designer, com grande atuação cultural, em geral, e dos arquitetos Glauco Campello, que chegou a ser presidente do IPHAN. Também Jorge Martins Filho, entre outros. O clima do Recife na época, em 1963, era de grande ebulição cultural, e eu atuava em várias áreas. No Jornal do Commercio, fiz o suplemento literário com João Alexandre (deixamos porque ficamos sob censura, em 1964, durante o golpe militar) e também participei como professor do Curso de Biblioteconomia (onde ensinaram também João Alexandre Barbosa, Gastão de Holanda, Gadiel Perruci, Orlando da Costa Ferreira e Adão Pinheiro). Fiz parte da revista Estudos Universitários, que foi fundada por Luiz Costa Lima e que foi fechada por Gilberto Freire (Nota: Uchoa Leite escreve de propósito com i, em vez de y. Pede respeitarem isso). Não foi fechada propriamente por ele, mas acho que obedeceram a um pedido dele, na reitoria, quando fecharam. E depois chutaram Luiz e mudaram a direção. José Laurênio, que acho um grande homem, também foi chutado da Rádio Universitária e trocado por um mediocrão intervencionista a mando dos milicos. Algumas pessoas não gostavam de Gilberto, como era o meu caso, que era um caso pessoal. Não gostava dele como pessoa, pois, intelectualmente, o conheci muito pouco. O grupo não era contra ele. Quem me levou à casa dele para conhecê-lo foi Orlando da Costa Ferreira, mas o grupo nem se contrapunha nem muito menos estava a favor dele. Eu o vi apenas uma vez e não gostei. Luiz Costa Lima publicou uma crítica a Gilberto, e eu então disse: “Cuidado, que a revista pode ser fechada”. E foi. É o que eu gostaria de falar. E, finalmente, que Paulo Freire, o educador, foi preso e depois exilado.


– Ariano Suassuna também frequentava o Gráfico? Ariano é um autor do agrado do grande público e de nordestinos como você. Como vê esse fenômeno?

– Vejo, naturalmente, como algo positivo. Sempre ri muito com as comédias dele. Gosto demais da pessoa dele, corretíssimo como sempre foi, íntegro. Do ponto de vista artístico, temos muitas diferenças, pois ele crê em muitas coisas que não aceito, como, p. ex., o nacionalismo estético, que não consigo sequer entender. Desconfio que, na prática, Ariano professa algumas coisas sem ter esse rigor todo, pois tem consciência artística bastante para discernir o que é bom em geral, e não apenas convicções teóricas. Tem um gosto mais amplo do que se pensa, acho. Ele frequentou muito o Gráfico, e era amigo de vários, particularmente de Laurênio e de Aloísio, e teve um livro editado por lá, chamado Ode. – Em artigo para o Caderno Mais, da Folha de S. Paulo, como parte das comemorações dos 40 anos do Concretismo, Luiz Costa Lima o incluiu entre aqueles poetas “que portam a sua (do Concretismo) marca”. Poderia traçar uma breve história da sua participação (ou não) no movimento?


– Acontece que o Concretismo na minha vida foi um fenômeno que não foi só intelectual: foi um fenômeno pessoal também. Eu conheci pela primeira vez Haroldo de Campos e Décio Pignatari em 1962, por ocasião de um congresso de crítica que se fez em João Pessoa, e fiquei com grande admiração por eles. Já havia tido informação sobre eles através de João Alexandre, que tinha visto uma interferência deles num congresso no sul do país e ficou admirado com a cultura deles, com a precisão com que falaram. Tudo isso nos levou a um novo julgamento do grupo, pois o nosso julgamento era, até então, muito superficial. Não tínhamos uma ideia no Recife do que eram, tínhamos uma ideia precária. Então, conheci os dois e fiquei amigo, sobretudo, de Haroldo de Campos, e trocamos correspondência. Conheci depois Augusto, em São Paulo, e ele também foi uma pessoa que teve muita importância intelectual para mim. O ponto que gostaria de afirmar é o seguinte: eles não me influenciaram no sentido comum do termo, o literário, mas exerceram uma influência intelectual geral sobre mim. Eu revi muitas coisas a partir deles. A minha colaboração com isso se limitou parcamente a um poema publicado em 64, na revista Invenção. Depois disso, tentei alguns poemas experimentais, que publiquei muito tempo depois, sob o título (um pequeno não-livro, nove poemas apenas) de Signos/Gnosis. Eu desisti desse veio porque, depois de pensar muito, cheguei a uma via própria, ou achei que tinha chegado a uma via própria através de poemas que eram, de certa forma, experimentais. Mas não naquele sentido formal estrito dos concretos. Eram experimentais no sentido de linguagem coloquial e de outros tipos de influência, como, por exemplo, poesia mais intertextual. Isso houve em minha vida, mas não acho que foi influência das vanguardas, eu não sei dizer se fui vanguardista ou não. Conscientemente, eu nunca fui vanguardista. Aliás, disse isso várias vezes em público. Jamais aderi a corrente alguma, e não digo isso com orgulho, não, digo isso talvez até por deficiência. Não consigo ser uma pessoa grupal. Aliás, jamais senti a tal “angústia da influência”, de Harold Bloom. Ignoro isso.


– Você poderia detalhar um pouco mais para os leitores em que consistiu de fato essa busca a que se refere, essa pesquisa de uma nova via?

– O que aconteceu entre Dez Sonetos e A Espreita está explicado de sobra no notável texto crítico de João Alexandre que precede a edição desse último. De um modo muito geral, ele diz, admiravelmente, que houve uma transformação lenta, aliás, lentíssima, pelo fato de eu praticamente “ruminar” as coisas. Então, me parece que não houve uma “guinada” tão radical assim. Houve mais um reajuste de linguagem. 


– Negatividade, ironia/auto-ironia, amargura. Esse trinômio, tendendo para o esvaziamento progressivo do Eu-lírico, tem muitas vezes caracterizado o seu percurso. Você concorda com essa leitura?

– Não concordo de modo algum com esse “esvaziamento”, pois discordo do “ataque à tradição” de que alguns falam. Isso seria até uma contradictio in terminis, como diziam os escolásticos. Vamos voltar aos hieróglifos? Aliás, o que é o “eu-lírico”? Alguma sentimentalice? Se for, então sou contra mesmo. Não concordo com a linguagem complacente com lugares-comuns e pieguices em geral.


– A literatura em geral, a ficção, e não só a poesia, tem sido, desde o século 19, (lembremos apenas Moby Dick como exemplo) obsessivamente auto-reflexiva, encenando o esforço do ver-se a si mesmo, marcado pela negatividade. Ou seja, o animal humano tentando morder uma cauda que não tem. Com que marca especial sua poesia se inscreve nesse processo?

– Acho que foi sobretudo a partir de Antilogia, de 1979, marcadamente intertextual. Mas fui, aos poucos, tentando me aproximar da realidade, concretizá-la. Consegui isso em parte, apenas, por causa dessa tendência a abstratizar demais. Consegui fazê-lo tentando me aproximar da realidade e de seus horrores. Não sei se imprimi uma “marca especial” nesse processo, nem me sinto tão negativo assim. É verdade que não tenho fé, nem esperança ou caridade. Não me sinto muito cristão. Quem pode ter fé, vendo obsessivamente as notícias dos telejornais, como eu faço? É difícil, não?


– A sua poesia é considerada de identificação difícil para o leitor, parece dirigir-se aos “raros apenas”. Algum dilema com respeito ao fato de não atingir um público maior? Isso chega a ser frustrante?


– Nenhum dilema, nem sinto qualquer frustração em não ser “popular”. Eu, hein? Quem quer ser popular vai ser ou jogador de futebol ou cantor. Jamais o conseguiria, mas tenho a maior admiração por muitos, como João Gilberto ou Caetano, ou Rivaldo e Ronaldinho. Tenho grande admiração. O outro caminho é vender poesia, que tal? Há quem consiga, como não? Bom proveito! Você lê poetas pernambucanos contemporâneos? Quem são os de sua predileção?


– Não, porque recebo de toda parte do país, menos do Recife. A exceção é Eduardo Diógenes, meu amigo. Acho que no Recife não sou muito conhecido, sei lá por quê. Mas não prometo responder a ninguém se mandarem coisas de repente. Estou muito doente, essa é que é a verdade. Infelizmente. Diógenes me escreveu uma vez e respondi, mas não tenho lá grandes forças hoje.No passado, amei Bandeira, Joaquim Cardoso (com s, por favor), João Cabral, é claro, Carlos Pena Filho e, mais recentemente, o pranteado Jorge Wanderley, de muitas memórias pessoais.Posso ter esquecido alguém. Perdoem-me por tudo, por favor.


– Os seus ensaios críticos (Crítica Clandestina, Livraria Taurus, e Jogos e Enganos, Ed. UFRJ/Editora 34) revelam um Sebastião Uchoa Leite bastante heterodoxo, com interesses os mais variados. Que lugar ocupam esses ensaios na sua estética?

– Sempre fui muito heterodoxo em tudo. Só se engana quem nunca me leu os ensaios nem a poesia. Ou não me conhece pessoalmente. Que outro Sebastião existe? Ou conhece? Jamais amei qualquer ortodoxia, juro. Sempre tive horror a elas. Não tenho qualquer “estética” ou coisa parecida. Oswald de Andrade chamava A Estética da Vida, de Graça Aranha (um acadêmico idiota), de “A Bestética da Vida”. Que maravilha! O lugar que os meus ensaios ocupam são os mesmos que os da poesia e da música, o do prazer. Aliás, os títulos dos livros já não dão aos leitores a ideia de heterodoxia? Acho que sim.


– Você tem um livro no prelo. Poderia antecipar para Continente que novas direções ele persegue?

– O livro novo, que sairá pela editora Cosac & Naify, tem o título de Crítica de Ouvido. São ensaios sobre generalidades diversas, sobretudo sobre poesia brasileira, mas sobre outras coisas também, inclusive cinema. O editor pensou em meu grandioso nome e em me prestar homenagem editando esses trastes, pois, comercialmente, nada valem. Não se perseguem quaisquer novas direções, são as mesmas manias de sempre. Mas o texto mais extenso é sobre “poesia e cidade”, começando com Baudelaire e terminando com os poetas brasileiros, y compris Haroldo & Augusto. O penúltimo é sobre o universo visual de Lewis Carroll e traz fotos das menininhas que ele tirou, com aquela “inocência” toda das espertas meninas inglesas da era vitoriana. Há também, esperando na minha vultosa obra completa, um livro novo de poemas, o qual ainda não tem editor. Tomara que se editem os dois. O de poesia terá o título de A Regra Secreta – em tempo, e parece que assim será. Senão, quem se ligaria nisso?

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MIGRAÇÃO
Aves migratórias
Nunca chegam a falcões
Cumpro o ciclo Kármico
Um monstro sopra das ventosas
O meu Thermidor
Perseguidores corcundas
Vêm do Mar Negro
Adeus canal e luminárias
Esse mar sem metáforas
Minha origem
É minha linguagem
Desta concha-fundo de blocos
Só vejo a piscina
Minha vertigem é o vazio
Meu rigor o salto

Sebastião Uchoa Leite, editora 34, 1993.


domingo, 26 de julho de 2009

Making of da vida inteira

Elizabeth Bishop
Enviou a Manuel Bandeira
Um pote de geléia

Avesso do avesso
Pouco a pouco se curou
Da tuberculose

Metade homem
Metade espelho

Onde está agora
Dentro ou fora
Em que endereço?

Condenado a não
Ultrapassar os limites
Do próprio quarto

Aprendeu a ser conciso
Num mundo condensado

Sem ter onde ir
Atravessa
(sem pressa)
A cidade

A vida inteira
(a morte exata)
Na velha mala

Metade homem
Metade espelho

Nem dentro
Nem fora
Manuel estava
Só de passagem


ney ferraz paiva


quarta-feira, 15 de julho de 2009






A MOSNTRO-GRAFIA DA BARRAGEM

Vencido, o rio se abranda em barros e silêncios. Grávido, cálido, fermentado. Engendrando o desconhecido belo ou monstruoso que saltará sobre nós. [Pedro Tierra, O Porto Submerso]

Uma barragem, tantas desterritorializações. Pedro, 6 alqueires, mora há oito anos no assentamento Novo Mundo, Miracema. Pasto para cinco ou seis cabeças de gado, planta arroz e feijão. Não pesca mais. José, faz farinha, planta milho, abacaxi e a incontornável mandioca. Mora há oito anos no assentamento Canto da Serra, Lajeado. Não sabe ler nem escrever. O que aproxima a realidade de pobreza dos reassentamentos criados a partir da construção da UHE-Lajeado é o fracasso da experiência coletiva aliado ao abandono do poder público. Com a política energética do estado voltada para as grandes barragens vieram os impactos que afetaram a vida do rio Tocantins, seus fluxos e seus ciclos, a navegação que praticamente se esgotou e que se praticava há cerca de quatrocentos anos. Com o aparecimento do reservatório da UHE-Lajeado, deram-se também os impactos nas margens do grande rio, o 20° maior do mundo. Em Palmas, a região das ARNOS tornou-se o núcleo baldio da cidade. Nos demais municípios do entorno, não é difícil identificar os problemas que marcam a vida das famílias reassentadas, definindo suas vidas, e mais além, a história de suas vidas em antes e depois da barragem. Impedidos de ser o que poderiam ser, tolidos de informação e assistência técnica na busca de sustentabilidade, se deixam ficar em suspenso, afastados do lugar cultural do nascimento e da mítica casa em que tudo se deu desde seus pais. Manoel morou 35 anos às margens do rio Tocantins, está há oito no Novo Mundo. Um tanto de todo esse mal vem indiciar o prenúncio e o presságio de algum mal maior. Daí se poder falar numa monstro-grafia da barragem. Pelo que se desviou de vida e se deformou de caminhos. Pelas aberrações que se pode cometer e financiar contra o homem e a natureza. Homens amontoados, rio subjugado.

Ney Ferraz Paiva

Imagem: Louise Bourgeois

sábado, 11 de julho de 2009


Tocantins: rio morto pela metade

Pedro Tierra é poeta da natureza, primitivo no seu sentido radical: fala das coisas essenciais que nos mantém vivos. Um rio é essencial para a vida? Não se precisaria fazer esta pergunta, mas o poeta faz, porque a resposta em algum momento se tornou perversa. Essencial, por certo, mas pela energia elétrica que se pode tirar do rio. Pela barragem que se pode construir nele. Mas e se falássemos assim do nosso próprio corpo? Quantas veias se poderia obstruir, sem que nada saísse de errado? Quantos coágulos se poderia tolerar, sem que o coração parasse? É disso que Pedro Tierra se põe a falar. De uma vida que precisa ser preservada ante todas as ameaças.

Um rio quando barragem
tem a espinha quebrada
vira um rio paralítico
feito um animal vivo
que morreu só a metade:
a outra metade viva pulsando
solta, como veia aberta a foice...
Um rio quando barragem anoitece
as manhãs que cultivava...



Não há em nenhum lugar do mundo uma barragem que tenha resultado em melhores condições de vida, sobretudo para as populações locais, sempre passivas e detentoras dos passivos sociais e ambientais da obra. Ganham os governos, os empreendedores com essas ilhas da fantasia cercadas por lagos de artificialidades brutais. Que aceleram o ritmo de devastação e de poluição. Inclusive os processos de negociação (licenciamentos, consultas, indenizações) não passam de ardis, enganação, componentes com os quais se vai tecendo a rede de poderes perversos em que as populações serão envolvidas e arrancadas de suas casas e de suas vidas. Desterrados, sem que isso seja ainda o pior.



O rio teima em manter-se rio, corrente:
uma veia de esmeralda líquida e retesa
varando o ventre do lago,
feito alma submersa
e luminosa a lhe dar sentido.

Vencido, o rio se abranda em barros e silêncios.
Grávido, cálido, fermentado.
Engendrando o desconhecido
Belo ou monstruoso que saltará sobre nós.



Precisamos considerar se de fato uma Consulta Pública (sempre esvaziadas de "público") sobre os Recursos Hídricos (notem, a palavra usada é recurso e não bem - o bem público diz respeito a todos, já o recurso...) poderá nos liberar das imposições, pressões, aliciamentos que se dão por trás dos tapumes dos canteiros de obras. Que tudo não seja apenas uma superficial substituição de palavras. E por isso que deve ser evocado aqui Pierre Bourdieu, nas suas “Razões Práticas”, quando trata dos atos desinteressados. Diz-nos Bourdieu: “os agentes sociais não agem de maneira disparatada, que eles não são loucos, que eles não fazem coisas sem sentido. O que não significa supor que eles sejam racionais, que têm razão em agir como agem ou mesmo, de maneira mais simples, que eles tenham razão em agir, que suas ações sejam dirigidas, guiadas ou orientadas por essas razões. Eles podem ter condutas razoáveis sem serem racionais; podem ter condutas às quais podemos dar razão, como dizem os clássicos, a partir da hipótese de racionalidade, sem que essas condutas tenham tido a razão como princípio. Eles podem se conduzir de tal maneira que, em uma avaliação racional das possibilidades de sucesso, pareça que eles tinham razão em fazer o que fizeram, sem que tenhamos razão em dizer que o cálculo racional das probabilidades tenha sido o princípio das escolhas que fizeram.”


Ney Ferraz Paiva
Imagem: Márcio Di Pietro

quinta-feira, 2 de julho de 2009



Das medidas e desmedidas contra a Amazônia

Que tempos são esses, em que
Falar de árvore é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Bertold Brecht


O Senado mais uma vez atuou nas sombras contra os povos da Amazônia. Na madrugada do dia 03 de junho, na semana em que se comemorava o Dia Internacional do Meio Ambiente, o indormido plenário aprovou a Medida Provisória 458, que “regulariza” a ocupação (leia-se grilagem) de terras públicas da Amazônia Legal. Como sombras chinesas, o Senado gosta de fazer teatro para o público que melhor paga. Pouco importa o que estiver à venda: eles vendem, vendendo-se. É mais do que uma vergonha, é um procedimento vil que ultrapassa em muito os limites de Brasília, da vida anababesca que se dá aos políticos para que eles defendam os interesses dos seus Poderosos Patrões. Isso transparece neste teatro silencioso sempre em cartaz pelos palcos de Brasília. Tanto o Senado quanto a Câmara estão presos aos fios das negociatas e da corrupção, como títeres deste bailado escabroso. Os povos da Amazônia e todo povo brasileiro saem perdendo. Não vi, nem li absolutamente nada em tom de protesto ou de reprovação do governo do Tocantins sobre o fato, mas também, como poderia afastar-se agora de sua indiferença, de seu “apolitismo” de opinião? Sabe-se: para certos temas o silêncio é regra. Ou será que o Estado já foi retirado da Amazônia Legal como queria fazer aqui certa “trupe” política? A relatora da Medida 458 é senadora pelo Tocantins. Mas o povo do Tocantins não defende que se negocie o que é seu com grileiros. Os pequenos produtores do Bico do Papagaio e do sudeste do Estado (já que a região central está tomada pelo agronegócio) não foram chamados para entrar nesse “esquema”, já que tão vantajoso. Eles como nós não perderam o senso da realidade e da percepção coletiva. Não estamos à venda, seja no mercado legal ou ilegal. Acreditamos na Amazônia e nas novas relações com o trabalho a partir da preservação da Floresta. Entendemos que este é o caminho para os novos agenciamentos econômicos, sociais e políticos na Amazônia Legal e em todo Norte do país. Junte-se tudo: a calamidade pública em que se transformou a vida dos Povos da Amazônia com as recentes chuvas, grilagem de terra, exploração ilegal de madeira, conivência do judiciário e dos políticos com esses delitos. E mais esta escabrosa lei aprovada quase na íntegra pelo Presidente Lula há uma semana – um ultraje à memória de Gabriel Pimenta, irmãos Canuto, Paulo Fonteles, Chico Mendes, Pe Josimo, Irmã Dorothy e tantos outros que tombaram lutando por um país justo, por oportunidades iguais para todos no campo e na cidade.


Ney Ferraz Paiva
Imagem: Miguel Chikaoka


sábado, 20 de junho de 2009










Pensamento e Intensidade na Poesia de Paulo Plínio Abreu
Por Nilson Oliveira

Sim! O antigo permanece! Prospera, amadurece.[i]
Hölderlin

I. O retorno à cena

Três décadas após a primeira edição de POESIAS, o poeta volta à cena. Sem dúvida, um acontecimento expressivo nas dobras do espaço literário. A poesia de Paulo Plínio é de um vigor - tal como todo grande projeto de escritura - que confronta o tempo, rivalizando ombro a ombro com o presente, lançando questões [imagens inusitadas] que, pela potência intempestiva, remetem o pensamento literário para as bandas do por vir. Seus poemas nos trazem uma experiência de desterritorialização, ou seja, de um deslocamento do estabelecido, do que está amarrado a uma cultura do mesmo, pois há na escrita de Paulo Plínio Abreu um sinuoso jogo movediço, no qual as imagens deslizam pela superfície do não-familiar. É sempre uma cena de estranhamento ou de novas imagens. Com Ele não há planos fixos, mas Voos, ventos, ondas: “O vento vem do mar e dos navios que passam / carregados de vento e sal para as Antilhas” [Ode na praia do leme]. A poesia de Paulo Plínio é sempre um êxodo, um fluxo, operando por “linhas de fuga”, o que consiste em pensar de outra maneira, erigindo uma outra paisagem para a cena literária, pensando o não pensado do pensamento. Corte finíssimo, abertura, passagem de ar, pensamento que é pura duração: “Nele a cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto é a sombra de seu produto. O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é o que não é e o movimento é o que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados” [ii]. Essa é a cadência da Poesia de Paulo Plínio: matéria e acontecimento, feixe aberto no horizonte, já não há presente ou passado, apenas duração. Nela o poeta descortina o seu próprio conceito de tempo, e com isso, sedimenta sua obra: “Nau sem porto, /Barco feito de mito, construído no espaço /com a matéria das nuvens”. Nessa direção mergulha ao fundo de cada empreendimento, contudo deslocando-se para um ‘sem fundo’, que se abre - continuamente - noutras experimentações do fazer literário: “As palavras foram na infância os seus brinquedos / e não compreendeu mais tarde a sua própria linguagem / cheia de estranhos sinais; o coração adolescente / dormiu nas estrelas em obscuras viagens [O Mistificador]. Trata-se, sem dúvida, da infância desenhada como a imagem que se transforma constantemente - o devir criança do pensamento, alheio às regras da lógica, produzindo uma palavra que não cede e a um só tempo não se deixa nomear. Paulo Plínio foi uma singularidade. Quanto à sua poética, não se deixou alinhar pelas tendências predominantes de sua época, estando desde sempre ‘fora do lugar’, navegando, tal como nos diz Francisco Paulo Mendes: pelas “Iluminações, para qual a poesia é o reflexo ou lampejo de uma outra realidade, oculta, transcendente”[iii]. Há na poesia de Paulo Plínio uma miríade de encontros, uma verdadeira nutrição, expressa em influências determinantes [Rimbaud/ Mallarmé/ Surrealismo/ Pessoa], que remetem o poeta para um círculo mais exigente. Esse é o seu investimento, o combate na direção dos encontros, mas também, dos deslocamentos, estando desde sempre em movimento, sendo sempre outro. A sua escrita age silenciosa e encontra no sujeito a decisão de não-ser; que consiste no desejo nômade de convocar o ausente, para tornar real sua presença - fora do sujeito e do mundo - na sua realidade de escritura. Seu lugar é o não-lugar. Esse é seu combate, sua matéria de fim e de começo, ofício de interminável busca.

II. Rilke, Plínio e o Plano de imanência

Mas há também Rilke, e é com ele que Plínio trava sua experiência decisiva, mergulho intenso, encontro, deflagração no sentido de uma produção, pois há um efeito rilkeano na escrita de Paulo Plínio: “Um dos aspectos da poética de Paulo Plínio a exigir atenção é o da sua temática. São numerosos os temas: o da viagem, o de uma região maravilhosa, o do amor e da amada, o da infância, o do anjo, o da pureza, etc. E dominado todos esses o tema da Morte. Como se verifica, ainda uma temática rilkeana” [iv]. Efeito que nada tem a ver com fazer parecido, isto é, de repetir o que o poeta disse, mas de produzir semelhança, arrastando “o texto ora para as margens, ora para o meio, ora para o fora ou o dentro, em uma escrita-experimento, sem dualidades, todavia, com o rigor necessário próprio à interpretação como musicalidade cuja potência criativa exige uma espécie de ascese do texto [v]. O tema da morte torna-se um ponto de interação entre Plínio e Rilke, ambos navegando no ‘mesmo’ plano de imanência, cada um a sua maneira, interpretando, produzindo multiplicidades. Criando, a partir do tema da morte, suas próprias noções: “São retratos mentais noéticos, maquínicos”. Neles a morte é pensada como algo intimamente ligado à vida: “Tu que veste a morte com o que cai do coração dos vivos”, nos diz Paulo Plínio; ou “o morrer que seja verdadeiramente parte desta vida”, afirma Rilke. Tanto em um caso com em outro é a morte acontecendo como algo que é ‘nosso’ mas que não nos cabe controlar. Como não pensar em Hölderlin: “Viver é uma morte, e a morte também é uma vida”. Por certo Hölderlin foi a referência silenciosa que frequentou as leituras de Rilke e Paulo Plínio. Poderoso encontro tríplice, bela experiência de atravessamento, portanto de Afecção, [conceito peculiar a Espinosa], “efeito de um corpo sobre o outro”, e também: “ efeito sobre minha própria produção, prazer ou dor, alegria ou tristeza”. As afecções “São passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas” [vi] . O poder de ser afetado, em Paulo Plínio Abreu, desdobra-se então na potência que engendra uma prática de escrita, o que implica num fazer desejoso que faz da escrita um instrumento de ação, verdadeira máquina nômade, sempre aberta, sempre por fazer-se, que combate pela criação de uma outra paisagem para a literatura: “ um mundo pressentido e oculto” [viagem ao sobrenatural]; mundo fora do mundo, realidade que se concretiza por esse fora: “é na realização desse fora que começa a criação literária”[vii]. O Fora é uma tempestade de forças não-estratificadas, informes, um espaço anterior, no qual as coisas não são representativas, mas singulares, como uma linguagem outra, fora da usual, fruto de uma experiência da escrita. Um Exercício de Estilo como faz Raymond Queneau a parti da fórmula: “É escrevendo que se vira escrevedor”. Nessa esfera, escrever é lapidar uma experiência outra. Trabalho de artesão, martelando na direção do por vir / do indeterminado da escrita. A literatura é uma saúde. A saúde como literatura consiste em “inventar um povo que falta”. Fazer-se estrangeiro na sua própria língua, “criando um devir outro da língua”, tal como fez Manoel de Barros: uma minoração da língua maior. Já não se trata mais simplesmente de fazer o texto, mas criar outra sintaxe, algo que não parte do preexistente, que inventa sua própria lógica de uso das palavras, elevando a linguagem a seu limite, valendo-se de “algumas palavras que ainda não tenham idioma” [viii]. Com efeito, lançando a escrita para zonas de inventividade, para um espaço de criação. Criar é, nesse sentido, produzir forças. Como a força dos Poemas de Paulo Plínio, uma verdadeira tempestade de sons, traços, imagens, um bloco de multiplicidades em que o estilo denota uma potência e a um só tempo nos revela a criatividade do seu fazer artístico.

III. Atualidade de Paulo Plínio Abreu

Dentro do panorama literário de nossa época, a poesia de Paulo Plínio Abreu ocupa um lugar singular. É difícil classificá-lo entre as expressões do presente, sempre tão associadas a um fazer territorializado no qual a literatura é a narrativa de uma historinha regional. Afora algumas obras – Rio Silêncio; Nave do Nada; Infância Vegetal: belas experimentações na direção do Espaço literário – a imagem é fatigante: é a escrita como a expressão da unidade, de uma vontade de preservação, isso e suas variações em torno do tema da identidade. Contudo "O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da falência da representação, assim como da perda das identidades” [ix]. O acontecimento passa alhures, em outras cenas, na velocidade das correntes marítimas, quase imperceptíveis, mas sempre indo, sempre em movimento.
Tal como em Paulo Plínio, a poesia de Max Martins, Mário Faustino e Cauby Cruz, forma um abecedário de resistência pela Alta Literatura [valendo-se do conceito de Leyla Perrone-Moisés]. Resistência enquanto potência ativa, como criação, no âmbito da obra literária. Há seguramente um caráter inovador na poesia de Paulo Plínio, uma abertura evidente que cintila na esfera das palavras. Nela a poesia dobra-se em fluxos de intensidades: “a luta do poeta não é / com o anjo,/ mas com o verbo”. A sua postura é singular, está deliberadamente fora dos clichês e dos axiomas da identidade: “As chaves do mundo / para sempre perdidas” [Fragmentos]. A poesia de Paulo Plínio transcorre por fora de toda significação, em voos rumo a uma direção própria: “Nau sem porto”/as águas te seduzem”. Escrita líquida: “Nave do nada feita e quase ave / desfeita em voo puro”. Essa escrita nada tem a ver com sistemas ou arborescências, pois acontece exterior à gramática da representação, navegando pelas margens, numa viagem em que não existe início ou fim, mas tão somente vontade de novo, num vigoroso processo de trabalho pela re-invenção da matéria escrita. Paulo Plínio combate em favor da palavra, descortinando em cada frase, fragmento, poema, imagens que compõe uma outra fisionomia; é um extraordinário caso de ruptura. Sua jornada acontece desviando-se dos pontos e fronteiras, avançando pelo meio “do mar, do deserto, de um país estrangeiro”, gerando afectos, trocas, devires. E assim, pelo meio, Paulo Plínio atravessa a superfície do contemporâneo expressando sua vontade de potência, sua força de criação.

16/6/2009

[i] Hölderlin, Elegias, Lisboa, Assírio e Alvim, 1992, p.69
[ii] Deleuze, Gilles. Bergsonismo, São Paulo: Ed. 34, 1999, P. 95-123.
[iii] MENDES, Francisco Paulo. Prefacio - Poesia: Paulo Plínio Abreu. Belém: Ufpa, 1978, p.X
[iv] id, ibd, p. XII
[v] Lins, Daniel. Expressão: Espinosa em Deleuze..., São Paulo, Forense Universitária, 2007, p.4
[vi] DELEUZE, Gilles. Critica e Clínica, São Paulo, Ed, 34, 1997, p. 157.
[vii] Blanchot, Maurice: A parte do Fogo, São Paulo, Rocco, 1997, p. 305.
[viii] Barros, Manoel, Livro das Ignoranças, São Paulo, Rocco, 1994, p. 21.
[ix] Deleuze, Gilles, Diferença Repetição, Graal, Rio de Janeiro, 1988, p, 20 a 61.

Imagem: Louise Bourgeois

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Sylvia, d-i-á-r-i-o-s



"(...) Ah, é duro para mim me reconciliar com isso tudo. Talvez por isso eu seja uma moça — assim posso viver com mais segurança que os rapazes que conheci e invejei, ter filhos e instalar neles o desejo intenso de aprender e amar a vida que eu jamais chegarei a sentir plenamente, pois não há tempo, pois não há mais tempo, em vez disso há o medo súbito e desesperado, o relógio que bate e a neve que cai de repente demais após o verão. Certo, sou dramática e meio cínica, indolente e meio sentimental. Mas nos anos fáceis poderei amadurecer e descobrir meu caminho. Agora estou vivendo numa situação crítica. Estamos todos na beira do precipício, isso exige muito vigor, muita energia, seguir pela borda, olhar para baixo, ver a escuridão profunda sem ser capaz de identificar através da névoa amarelada e fétida o que jaz abaixo do lodo, na lama que escorre cheia de vômito; e assim sigo em frente, imersa nos meus pensamentos, escrevendo muito, tentando achar o centro, um significado para mim." – Diários

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A PALAVRA, OCUPAÇÃO DE RIVAIS [2]




Era ele que morava no andar de baixo na Fitzroy Road e pode ter sido a última pessoa a vê-la com vida; conta ele que na véspera de seu suicídio Sylvia Plath apareceu em sua porta e pediu-lhe alguns selos emprestados. No texto de Alvarez, Thomas é a chave da teoria segundo a qual Sylvia Plath não pretendia morrer, mas de retornar de sua morte pelo gás da mesma forma como despertara de sua morte por soníferos. Segundo Alvarez, ela contava com “o pintor idoso que morava no andar de baixo” (ele tinha 55 anos) para salvá-la. Uma nova babá havia combinado chegar em casa às nove e, se tudo tivesse corrido de acordo com os planos, Thomas a teria ouvido tocar a campainha; ela teria descoberto o corpo ainda quente de Sylvia Plath e “não há dúvida de que ela teria sido salva”. Mas Thomas não escutou a campainha – um pouco de gás escapou para o seu apartamento e o deixou meio tonto – e quando a moça voltou com ajuda, depois de uma espera interminável numa cabine telefônica, já era tarde demais. (Em Amarga fama, a idéia de que Sylvia Plath teria sido salva se a moça – que, conforme pesquisas posteriores revelaram, era uma acompanhante para ela própria, enviada por seu médico, o dr. John Horder – tivesse entrado na casa às nove é questionada. Escreve Anne Stevenson: “O dr. Horden é da opinião de que, mesmo que tivesse sido resgatada enquanto seu corpo ainda estava vivo, é provável que seu cérebro sofresse danos irreversíveis”.)
O próprio Thomas jamais confirmou nem contestou a versão de Alvarez; mudou-se de Londres e nunca mais disse nada, nem nada se ouviu falar dele, até 1986, quando reemergiu na lenda de Sylvia Plath. Uma carta de Elizabeth Sigmund publicada no Observer, reclamando da caracterização de Sylvia Plath numa de suas matérias, captou seu olho aprovador e o estimulou a escrever para ela por intermédio do jornal. Elizabeth passou Thomas, então com 79 anos, para Clarissa Roche, que o convenceu a registrar suas memórias por escrito. A pedido dela, ele produziu um manuscrito datilografado de 27 páginas – em 1989, mandou tirar fotocópias e encaderná-lo com uma tiragem de 200 exemplares – narrando os dois meses de suas relações com Sylvia Plath no número 23 da Fitzroy Road e contando tudo que viu e ouviu na casa nos meses que se seguiram a sua morte. O texto, intitulado “Sylvia Plath: last encounters” (“Sylvia Plath: últimos encontros”), é um documento notável. Como o livro de memórias de Dido Merwin, transmite um auto-retrato imediato e claro, e, a exemplo de Dido, Thomas evoca sem nenhum afeto a memória de Sylvia Plath. À diferença de Dido, porém, Thomas não deprecia Sylvia Plath a fim de resgatar Hughes: fala mal dele também. Na verdade, nenhum dos dois lhe interessa muito, e ele deixa claro que só se interessa por si mesmo. O próprio fato de ter conhecido Sylvia Plath foi apenas mais uma das manifestações do azar que o perseguiu ao longo de toda a vida. “Depois que minha mulher me deixou, em setembro de 1962, procurei desesperadamente algum lugar onde meus filhos Giles e Joshua pudessem morar comigo”, escreve Thomas na primeira página de “Últimos enconstros”. Um dia, no final de outubro ou no começo de novembro – pouco antes de Sylvia Plath escrever sua acarta entusiasmada à mãe sobre o apartamento que encontrara na Fitzroy Road –, Thomas viu o mesmo apartamento e ficou igualmente apaixonado. O problema era o valor do aluguel: não sabia ao certo se conseguiria ganhar dinheiro necessário para pagar o adiantamento de três meses e pediu ao funcionário da imobiliária que reservasse o apartamento para ele durante o fim de semana, o que lhe foi prometido. No entanto, quando ligou na segunda-feira para dizer que tinha uma solução, o apartamento já havia sido alugado. O funcionário “contou que um jovem casal com dois filhos pequenos, o sr. e a sr. Hughes, tinham visto o apartamento no domingo e, achando que a necessidade deles era maior do que a minha, ele lhes entregou o apartamento de dois andares e reservou o apartamento do térreo para mim”. E continua Thomas:
“Fiquei muito aborrecido, porque o apartamento térreo era pequeno demais. Também tinha certeza de ter sido enganado de alguma forma. Embora estivessem separados, Ted Hughes se prestara a ir com ela ao escritório da imobiliária, que dificilmente aceitaria alugar o apartamento a uma mulher sozinha com dois filhos. Anos mais tarde, fiquei sabendo que a sra. Hughes pagara um ano de aluguel adiantado, assinando um contrato de cinco anos. Não admira que os funcionários achassem que a sua necessidade era maior do que a minha.”
Embora o apartamento térreo não lhe conviesse, Thomas o alugou. “Pelo menos era alguma coisa”, resmunga ele. Tirei meus pertences do guarda-móveis e atulhei tudo no apartamento (...). E vi que precisava construir beliches para os meninos.” A razão para essa concessão aparentemente incompreensível – ele sem dúvida poderia ter procurado um apartamento maior em outro lugar – era a placa azul de cerâmica com o nome de Yeats. Em sua juventude em Liverpool, Thomas produzira uma montagem de uma peça de Yeats, At the Hawk’s Well, em que trabalhara como diretor, ator e figurinista. Thomas acreditava no sobrenatural e sentia que “precisava” morar na casa da Fitzroy Road que fora de Yetas. Mas nem por isso sentia-se obrigado a ser prestativo, ou mesmo especialmente delicado, com a jovem que se mudara para o andar de cima, e enumera em seu texto, com uma espécie de satisfação, as várias ocasiões em que pôde ser imprestável ou indelicado com ela. Quando Sylvia Plath, no dia de sua mudança, trancou-se por acidente, junto com os filhos, do lado de fora do apartamento e pediu a ajuda de Thomas, “tive de frustrar suas esperanças de encontrar uma cópia da chave, pois só tinha as chaves de meu próprio apartamento. A última coisa que eu desejava era me envolver com ela, por isso recomendei que ligasse para a polícia e fui cuidar da minha vida”. Noutra ocasião, durante a onda de frio do inverno, quando a neve estava alta e Sylvia Plath não conseguia dar a partida em seu carro, “ela queria que eu saísse de casa e girasse uma dessas manivelas pesadas que se enfia na frente do carro para dar o arranque. Tive de recusar, porque se você não sabe o jeito certo pode quebrar um dedo, ou até mesmo o pulso”. Thomas conta que Sylvia Plath jogava seu lixo nas latas dele, em vez de comprar latas de lixo próprias, e costumava bloquear o corredor com seu carrinho de bebê. “Acho que seria correto dizer que eu não deixava de sentir uma certa antipatia por ela”, escreve ele. E acrescenta:
“Ela tendia a ser uma pessoa egocêntrica, que não se envolvia com os problemas das outras pessoas. Nunca pensou em mim, nos meus filhos ou nas dificuldades que podíamos estar vivendo. E nem manifestou interesse pelos meus quadros ou pelo que eu fazia. O mundo girava em torno dela. Já pude observar esse tipo de absorção em si mesma em outras pessoas.”


Janet Malcom, A Mulher Calada, Companhia das Letras, 2005.

terça-feira, 5 de maio de 2009

TIRO NO CORAÇÃO














o que se tornou o amor, para que um homem e uma mulher
saiam dele tão desmunidos, lamentáveis e enfermos,
e ajam e reajam tão mal, tanto no começo quanto no fim, numa
sociedade corrompida?
Gilles Deleuze, A imagem-tempo


Tiro no Coração, de Mikal Gilmore, não é nem de longe uma viagem em busca do tempo perdido – pelo estonteante fato de que o tempo para ele e sua família, o tempo que os uniu também os destroçou. E o que resulta de lembrança de tudo isso esbarra na pele de Mikal e seu irmão Frank Jr. como um insulto. Para eles – os sobreviventes, relembrar não os salva de nada. A dor é o único legado.

O livro conta a história da família como de uma terrível decepção. A família Gilmore (Frank, o pai, Bessie, a mãe, e os filhos Krank Jr., Gary, Gaylen e Mikal) no transcurso de 50 anos, mas que pode ser o de qualquer família hoje, uma vez que o enredo mistura os elementos banais da vida moderna e seus grandes buracos negros em qualquer tempo.

Mikal descreve a superfície sempre maquiada de certa família norte-americana, de origem nômade e mórmon, e de seus ritos sociais e seus subterrâneos; é a eles que Mikal desce, aos lugares tenebrosos das faces desmascaradas, e daí se põe a falar, ou melhor, tenta falar; ainda que conheça bem a história, esteve preso dentro dela, o que se escuta de verdade são gritos e balbucios; ele não tem como responder ao grande enigma proposto: o que torna um homem tão amargo a ponto de não servir para ser pai?

Frank Gilmore não se dava a mínima. Tinha as suas próprias prioridades. Seus segredos e temores sombrios. E tinha o alcoolismo Não podia conciliar seu mundo de trevas com uma família. Um mundo do qual ele não teve como escapar e acabou trazendo a todos para ele. Como imaginar um ambiente familiar onde depoimento como o que segue seja possível: “Eu não gostaria de ser criança de novo. Por nada neste mundo. Uma vez basta.” E ter que ficar aí, quando ficar é a última coisa a fazer. É então que se descobre que entre as múltiplas formas eficientes de se excluir o outro da sua vida, é que ambos fiquem juntos. “E para onde eu iria? Quem mais ia me querer? Fiquei porque não havia outra coisa a fazer.” Para a mulher, quais os vetores de saída?

Bessie Gilmore tinha bem a noção de seu emparedamento. Além de Frank, sua outra parte no mundo era a casa dos pais – uma casa da qual ela sempre tentou escapar desesperadamente. Do fanatismo rigoroso de um ambiente mórmon rural e de suas esperanças frustradas. Por isso mesmo tinha que reagir ao Frank, conviver com a calmaria e os sobressaltos do território que ele dominava e aí se por à espreita, defender a si e a seus filhos; um combate que resultava em perda diária, ano após ano, infinitamente maior do que ela podia suportar. Enquanto Frank viveu, ele fez o serviço devastador de tornar a todos bichos. Podia-se ter uma casa, um carro, comida e roupas. Podia-se até mesmo ir à escola e à igreja, mas era, ainda assim, uma vida de bichos. Por dentro da pele e no coração.

E foi bem aí que todos foram alvejados, no coração. Um tiro certeiro e aniquilador. Que fez de Gary Gilmore um nome para sempre ligado ao crime na América. Dele Mikal diz: “Sou irmão de um homem que matou homens inocentes”. A astúcia criminosa de Gary tornou pública sua tentativa bizarra de não escapar do que se é. Preso por matar dois jovens mórmons em junho de 1976, Gary foi condenado à morte. E aí, no espaço mínimo de uma cela, ele não se deixou acuar. Fora preparado a vida inteira para o papel.

Mikal foca os aspectos privados que poderiam ser as origens do pesadelo. Conta sua história no lugar de outra, não a conta para aplacar os seus nem os nossos males, apenas responde por ela e aí se mostra e desaparece. Ilustra seu almejado vazio com as fotos de todos os fantasmas, das casas mal assombradas e dos mortos vivos. Num nível, a palavra fatal, noutro, a imagem inumana. Tudo resumido ficam expostas as maneiras de morrer a cada dia, ainda válidas para estes tempos de pesadelos.


Ney Ferraz Paiva

sexta-feira, 1 de maio de 2009

REVISTA POLICHINELLO 10 ESCRITA RIZOMÁTICA



Participam desta edição:

[ Daniel Lins ] - Fortaleza [ Victor Sosa ] - México [ Juliano Pessanha ] - São Paulo [ Luís Serguilha ] - Lisboa [ Giselda Leirner ] - São Paulo [ Virna Teixeira ] - São Paulo [ Ney Ferraz Paiva ] Tocantins [ Efraín Rodríguez Santana ] - Cuba [ Antônio Moura ] - Belém [ Lúcia Castello Branco ] Belo Horizonte [ Alberto Pucheu ] - Rio de Janeiro [ Vicente Franz Cecim ] - Belém[ Maria Inês de Almeida ] - Belo Horizonte [ Ieda Magri ] - Rio de Janeiro [ Márcio-André ] - Rio de Janeiro [ Flávio Boaventura ] - Belo Horizonte [ Denny Yang ] - China [ Carlos Emilio Correia Lima ] - Fortaleza [ Beatriz Bajo ] - Londrina [ Goiamérico Felício ] - Goiânia [ Victor Paes ] - Rio de Janeiro [ Nilson Oliveira] - Belém

PROGRAMAÇÃO DE LANÇAMENTOS:

BRASÍLIA - 23 de Abril as 19h
CONVERSAÇÕES NILSON OLIVEIRA & JORGE AMÂNCIO
Local: T-Bone: SCLN 312 Bl B Lj 27 Brasília DF
.
GOIÂNIA - 24 de Abril as 14h30
EXIBIÇÃO DO FILME MAURICE BLANCHOT,
PALESTRA NILSON OLIVEIRA
Local: CINE UFG (Faculdade de Letras/Campus II)
.
BELO HORIZONTE - 29 de Abril as 19:30
CONVERSAÇÕES MAURICE BLANCHOT E A LITERATURA
COM LÚCIA CASTELLO BRANCO FLÁVIO BOAVENTURA
ANDRÉ QUEIROZ
Local: Fundação Gregório Baremblitt Instituto Felix Guattari
Rua Herval, 267 Bairro Serra Belo Horizonte.
BELÉM - 08 de Maio as 17h.
Local: Casa das 11 Janelas
LANÇAMENTO DAS REVISTAS POLICHINELLO & NÃO-LUGAR
RECITAL ANTONIO MOURA PAULO VIEIRA LUIZAN PINHEIRO
RENATO TORRES
Palestra do Filósofo Daniel Lins: Por uma Escrita Rizomática


quinta-feira, 23 de abril de 2009


Dona Clarice

Por Benedito Nunes


Conheci Clarice Lispector, antes de conhecer a escritora e a pessoa, por um outro nome: “Dona Clarice”, que é como a chamava, sempre que a ela se referia, o Professor Francisco Paulo Mendes, seu amigo de primeira viagem. Encontraram-se em Belém, no início da década de 40, acho que em 44, ela, com o marido Amaury Gurgel Valente, então a serviço do Itamarati, hóspedes do Central Hotel. Viam-se frequentemente no Café Central, um verdadeiro Café, que dava para a rua, e onde, muito mais tarde, juntei-me ao grupo que ali se reunia, liderado pelo referido professor. Em 44 ainda tinha 14 anos e Clarice Lispector, que acabara de publicar Perto do coração selvagem, começara a escrever O lustre, a sair em 1948. Foi somente nesse ano que comecei a ouvir o “Dona Clarice”, recordação da romancista, bela mulher, nos fins de tarde ou à noite resplandecendo na terrasse do Café Central, ao lado dos amigos de Francisco Paulo Mendes, que depois foram meus, Ruy Barata e Cléo Bernardo, ambos já falecidos.
O professor revelou-lhe Sartre, me diria, mais tarde, “Dona Clarice”. E a ele dirigiria o súplice recado de Um sopro de vida: “Cadê o desaparecido Francisco Paulo Mendes? Morreu? Me abandonou, achou que eu era muito importante.” Antes da Clarice real e da Clarice ficcionista, conheci a mítica, dona estelar de memorável brilho no passado do grupo. Comecei a ler a ficcionista pelos contos de Laços de família. Mas foi em 64, com A paixão segundo G. H., que os laços da sedução literária e filosófica à ela me amarraram. Dois anos depois escreveria sobre essa obra uma série de cinco artigos, publicados no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, e que incluiria, em 70, em O dorso do tigre, sob o título geral de O mundo imaginário de Clarice Lispector, abreviado para O mundo de Clarice Lispector, na oletânea de 66 que o precedeu, editada em Manaus, por iniciativa de Athur Cézar Ferreira Reis. O fervor da sedução levou-me a aceitar convite de Nelly Novaes Coelho para participar da coleção Escritores de hoje, de sua editora Quíron, com volume dedicado à escritora. Então, para escrever Leitura de Clarice Lispector (1973), voltei de Laços de família a Perto do coração selvagem, percorri O lustre, A cidade sitiada, A maçã no escuro, A legião estrangeira e o último, até aquele momento, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. (Mais tarde reveria e passaria a limpo esse livro, que se tornou O drama da linguagem (1995) acrescentando-lhe capítulos sobre Água viva, A hora da estrela e Um sopro de vida).
“Ele vai me considerar uma existencialista?”, teria ela, receosa e desgostosa, perguntado sobre as minhas intenções à Nelly, quando esta lhe anunciou o Leitura. A preocupação da escritora era justificável. Nos cinco artigos da série havia exagerado a dose da náusea sartriana, corrigida na publicação seguinte à custa da acentuação sobre a tendência mística em G. H. Tinha conhecido antes a Clarice real numa visita à casa dela, no Rio pelas mãos de Aloisio Magalhães, quase uma visita de cerimônia. Depois de saída a Leitura, encontrei-a novamente, desta vez no casamento de sua amiga Eliane Zagury. Não me lembro de termos conversado nessa ocasião. A primeira conversa deu-se em Brasília, até onde eu fora, nos fins do período Geisel, para participar do Congresso de Crítica Literária, ali realizado em 1974. Era tarde da noite, já tinha me deitado, quando ela, que tinha vindo a Brasília por outro motivo, hospedada no mesmo hotel, telefonou para o meu quarto. Estava angustiada, com problemas de consciência. Deveria entrevistar o Ministro Ney Braga? Repugnava-lhe aproximar-se dessa gente do governo militar. Mas como poderia agir diferente, se era jornalista e precisava ganhar a vida? Tinha sido recentemente demitida do Jornal do Brasil e preparava o livro de entrevistas, De corpo inteiro.
Ainda não se completara um ano depois disso, quando ela escreveu para Francisco Paulo Mendes, àquela época ainda em atividade como professor de Língua Portuguesa, pedindo ao amigo que conseguisse da Universidade Federal do Pará a ventura de poder voltar a Belém. Pagaria a viagem e a estadia com uma conferência; dispunha-se, também a conversar com os estudantes do curso de Letras. Clóvis Malcher, o reitor de então, mandou-lhe passagem e hospedou-a. Ouvimo-la na leitura hesitante de seu conhecido e belo texto sobre o sentido vanguardeiro da sondagem do real pelo aprofundado uso da língua portuguesa, já lido em Austin. (Literatura de vanguarda no Brasil, 63) e em muitos outros centros universitários. Esteve no campus, enfrentou grandes e buliçosas platéias.
Veio aqui em casa para um jantarzinho, convidados os antigos amigos dela e meus. Confessou que estava se sentindo bem entre nós. O retorno a Belém teria sido o seu tempo reencontrado. Acho que a partir de então surgiu entre nós uma afetuosa relação, extensiva à minha mulher. Depois que regressou, telefonava frequentemente e, sem falta, no período natalino, uma ou outra vez angustiada com o que fazer e com o que pensar, porque não raro pendia de um “se”, de uma eventual e dilacerante interrogação.
Em 77 passava por São Paulo, voltando de Campinas (lecionava na UNICAMP durante o segundo semestre), quando interei-me de sua morte. Não haveria telefonema no Natal desse ano.


Dois ensaios e duas lembranças, Belém: SECULT-UNAMA, 2000.