o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 11 de julho de 2009


Tocantins: rio morto pela metade

Pedro Tierra é poeta da natureza, primitivo no seu sentido radical: fala das coisas essenciais que nos mantém vivos. Um rio é essencial para a vida? Não se precisaria fazer esta pergunta, mas o poeta faz, porque a resposta em algum momento se tornou perversa. Essencial, por certo, mas pela energia elétrica que se pode tirar do rio. Pela barragem que se pode construir nele. Mas e se falássemos assim do nosso próprio corpo? Quantas veias se poderia obstruir, sem que nada saísse de errado? Quantos coágulos se poderia tolerar, sem que o coração parasse? É disso que Pedro Tierra se põe a falar. De uma vida que precisa ser preservada ante todas as ameaças.

Um rio quando barragem
tem a espinha quebrada
vira um rio paralítico
feito um animal vivo
que morreu só a metade:
a outra metade viva pulsando
solta, como veia aberta a foice...
Um rio quando barragem anoitece
as manhãs que cultivava...



Não há em nenhum lugar do mundo uma barragem que tenha resultado em melhores condições de vida, sobretudo para as populações locais, sempre passivas e detentoras dos passivos sociais e ambientais da obra. Ganham os governos, os empreendedores com essas ilhas da fantasia cercadas por lagos de artificialidades brutais. Que aceleram o ritmo de devastação e de poluição. Inclusive os processos de negociação (licenciamentos, consultas, indenizações) não passam de ardis, enganação, componentes com os quais se vai tecendo a rede de poderes perversos em que as populações serão envolvidas e arrancadas de suas casas e de suas vidas. Desterrados, sem que isso seja ainda o pior.



O rio teima em manter-se rio, corrente:
uma veia de esmeralda líquida e retesa
varando o ventre do lago,
feito alma submersa
e luminosa a lhe dar sentido.

Vencido, o rio se abranda em barros e silêncios.
Grávido, cálido, fermentado.
Engendrando o desconhecido
Belo ou monstruoso que saltará sobre nós.



Precisamos considerar se de fato uma Consulta Pública (sempre esvaziadas de "público") sobre os Recursos Hídricos (notem, a palavra usada é recurso e não bem - o bem público diz respeito a todos, já o recurso...) poderá nos liberar das imposições, pressões, aliciamentos que se dão por trás dos tapumes dos canteiros de obras. Que tudo não seja apenas uma superficial substituição de palavras. E por isso que deve ser evocado aqui Pierre Bourdieu, nas suas “Razões Práticas”, quando trata dos atos desinteressados. Diz-nos Bourdieu: “os agentes sociais não agem de maneira disparatada, que eles não são loucos, que eles não fazem coisas sem sentido. O que não significa supor que eles sejam racionais, que têm razão em agir como agem ou mesmo, de maneira mais simples, que eles tenham razão em agir, que suas ações sejam dirigidas, guiadas ou orientadas por essas razões. Eles podem ter condutas razoáveis sem serem racionais; podem ter condutas às quais podemos dar razão, como dizem os clássicos, a partir da hipótese de racionalidade, sem que essas condutas tenham tido a razão como princípio. Eles podem se conduzir de tal maneira que, em uma avaliação racional das possibilidades de sucesso, pareça que eles tinham razão em fazer o que fizeram, sem que tenhamos razão em dizer que o cálculo racional das probabilidades tenha sido o princípio das escolhas que fizeram.”


Ney Ferraz Paiva
Imagem: Márcio Di Pietro

quinta-feira, 2 de julho de 2009



Das medidas e desmedidas contra a Amazônia

Que tempos são esses, em que
Falar de árvore é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Bertold Brecht


O Senado mais uma vez atuou nas sombras contra os povos da Amazônia. Na madrugada do dia 03 de junho, na semana em que se comemorava o Dia Internacional do Meio Ambiente, o indormido plenário aprovou a Medida Provisória 458, que “regulariza” a ocupação (leia-se grilagem) de terras públicas da Amazônia Legal. Como sombras chinesas, o Senado gosta de fazer teatro para o público que melhor paga. Pouco importa o que estiver à venda: eles vendem, vendendo-se. É mais do que uma vergonha, é um procedimento vil que ultrapassa em muito os limites de Brasília, da vida anababesca que se dá aos políticos para que eles defendam os interesses dos seus Poderosos Patrões. Isso transparece neste teatro silencioso sempre em cartaz pelos palcos de Brasília. Tanto o Senado quanto a Câmara estão presos aos fios das negociatas e da corrupção, como títeres deste bailado escabroso. Os povos da Amazônia e todo povo brasileiro saem perdendo. Não vi, nem li absolutamente nada em tom de protesto ou de reprovação do governo do Tocantins sobre o fato, mas também, como poderia afastar-se agora de sua indiferença, de seu “apolitismo” de opinião? Sabe-se: para certos temas o silêncio é regra. Ou será que o Estado já foi retirado da Amazônia Legal como queria fazer aqui certa “trupe” política? A relatora da Medida 458 é senadora pelo Tocantins. Mas o povo do Tocantins não defende que se negocie o que é seu com grileiros. Os pequenos produtores do Bico do Papagaio e do sudeste do Estado (já que a região central está tomada pelo agronegócio) não foram chamados para entrar nesse “esquema”, já que tão vantajoso. Eles como nós não perderam o senso da realidade e da percepção coletiva. Não estamos à venda, seja no mercado legal ou ilegal. Acreditamos na Amazônia e nas novas relações com o trabalho a partir da preservação da Floresta. Entendemos que este é o caminho para os novos agenciamentos econômicos, sociais e políticos na Amazônia Legal e em todo Norte do país. Junte-se tudo: a calamidade pública em que se transformou a vida dos Povos da Amazônia com as recentes chuvas, grilagem de terra, exploração ilegal de madeira, conivência do judiciário e dos políticos com esses delitos. E mais esta escabrosa lei aprovada quase na íntegra pelo Presidente Lula há uma semana – um ultraje à memória de Gabriel Pimenta, irmãos Canuto, Paulo Fonteles, Chico Mendes, Pe Josimo, Irmã Dorothy e tantos outros que tombaram lutando por um país justo, por oportunidades iguais para todos no campo e na cidade.


Ney Ferraz Paiva
Imagem: Miguel Chikaoka


sábado, 20 de junho de 2009










Pensamento e Intensidade na Poesia de Paulo Plínio Abreu
Por Nilson Oliveira

Sim! O antigo permanece! Prospera, amadurece.[i]
Hölderlin

I. O retorno à cena

Três décadas após a primeira edição de POESIAS, o poeta volta à cena. Sem dúvida, um acontecimento expressivo nas dobras do espaço literário. A poesia de Paulo Plínio é de um vigor - tal como todo grande projeto de escritura - que confronta o tempo, rivalizando ombro a ombro com o presente, lançando questões [imagens inusitadas] que, pela potência intempestiva, remetem o pensamento literário para as bandas do por vir. Seus poemas nos trazem uma experiência de desterritorialização, ou seja, de um deslocamento do estabelecido, do que está amarrado a uma cultura do mesmo, pois há na escrita de Paulo Plínio Abreu um sinuoso jogo movediço, no qual as imagens deslizam pela superfície do não-familiar. É sempre uma cena de estranhamento ou de novas imagens. Com Ele não há planos fixos, mas Voos, ventos, ondas: “O vento vem do mar e dos navios que passam / carregados de vento e sal para as Antilhas” [Ode na praia do leme]. A poesia de Paulo Plínio é sempre um êxodo, um fluxo, operando por “linhas de fuga”, o que consiste em pensar de outra maneira, erigindo uma outra paisagem para a cena literária, pensando o não pensado do pensamento. Corte finíssimo, abertura, passagem de ar, pensamento que é pura duração: “Nele a cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto é a sombra de seu produto. O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é o que não é e o movimento é o que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados” [ii]. Essa é a cadência da Poesia de Paulo Plínio: matéria e acontecimento, feixe aberto no horizonte, já não há presente ou passado, apenas duração. Nela o poeta descortina o seu próprio conceito de tempo, e com isso, sedimenta sua obra: “Nau sem porto, /Barco feito de mito, construído no espaço /com a matéria das nuvens”. Nessa direção mergulha ao fundo de cada empreendimento, contudo deslocando-se para um ‘sem fundo’, que se abre - continuamente - noutras experimentações do fazer literário: “As palavras foram na infância os seus brinquedos / e não compreendeu mais tarde a sua própria linguagem / cheia de estranhos sinais; o coração adolescente / dormiu nas estrelas em obscuras viagens [O Mistificador]. Trata-se, sem dúvida, da infância desenhada como a imagem que se transforma constantemente - o devir criança do pensamento, alheio às regras da lógica, produzindo uma palavra que não cede e a um só tempo não se deixa nomear. Paulo Plínio foi uma singularidade. Quanto à sua poética, não se deixou alinhar pelas tendências predominantes de sua época, estando desde sempre ‘fora do lugar’, navegando, tal como nos diz Francisco Paulo Mendes: pelas “Iluminações, para qual a poesia é o reflexo ou lampejo de uma outra realidade, oculta, transcendente”[iii]. Há na poesia de Paulo Plínio uma miríade de encontros, uma verdadeira nutrição, expressa em influências determinantes [Rimbaud/ Mallarmé/ Surrealismo/ Pessoa], que remetem o poeta para um círculo mais exigente. Esse é o seu investimento, o combate na direção dos encontros, mas também, dos deslocamentos, estando desde sempre em movimento, sendo sempre outro. A sua escrita age silenciosa e encontra no sujeito a decisão de não-ser; que consiste no desejo nômade de convocar o ausente, para tornar real sua presença - fora do sujeito e do mundo - na sua realidade de escritura. Seu lugar é o não-lugar. Esse é seu combate, sua matéria de fim e de começo, ofício de interminável busca.

II. Rilke, Plínio e o Plano de imanência

Mas há também Rilke, e é com ele que Plínio trava sua experiência decisiva, mergulho intenso, encontro, deflagração no sentido de uma produção, pois há um efeito rilkeano na escrita de Paulo Plínio: “Um dos aspectos da poética de Paulo Plínio a exigir atenção é o da sua temática. São numerosos os temas: o da viagem, o de uma região maravilhosa, o do amor e da amada, o da infância, o do anjo, o da pureza, etc. E dominado todos esses o tema da Morte. Como se verifica, ainda uma temática rilkeana” [iv]. Efeito que nada tem a ver com fazer parecido, isto é, de repetir o que o poeta disse, mas de produzir semelhança, arrastando “o texto ora para as margens, ora para o meio, ora para o fora ou o dentro, em uma escrita-experimento, sem dualidades, todavia, com o rigor necessário próprio à interpretação como musicalidade cuja potência criativa exige uma espécie de ascese do texto [v]. O tema da morte torna-se um ponto de interação entre Plínio e Rilke, ambos navegando no ‘mesmo’ plano de imanência, cada um a sua maneira, interpretando, produzindo multiplicidades. Criando, a partir do tema da morte, suas próprias noções: “São retratos mentais noéticos, maquínicos”. Neles a morte é pensada como algo intimamente ligado à vida: “Tu que veste a morte com o que cai do coração dos vivos”, nos diz Paulo Plínio; ou “o morrer que seja verdadeiramente parte desta vida”, afirma Rilke. Tanto em um caso com em outro é a morte acontecendo como algo que é ‘nosso’ mas que não nos cabe controlar. Como não pensar em Hölderlin: “Viver é uma morte, e a morte também é uma vida”. Por certo Hölderlin foi a referência silenciosa que frequentou as leituras de Rilke e Paulo Plínio. Poderoso encontro tríplice, bela experiência de atravessamento, portanto de Afecção, [conceito peculiar a Espinosa], “efeito de um corpo sobre o outro”, e também: “ efeito sobre minha própria produção, prazer ou dor, alegria ou tristeza”. As afecções “São passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas” [vi] . O poder de ser afetado, em Paulo Plínio Abreu, desdobra-se então na potência que engendra uma prática de escrita, o que implica num fazer desejoso que faz da escrita um instrumento de ação, verdadeira máquina nômade, sempre aberta, sempre por fazer-se, que combate pela criação de uma outra paisagem para a literatura: “ um mundo pressentido e oculto” [viagem ao sobrenatural]; mundo fora do mundo, realidade que se concretiza por esse fora: “é na realização desse fora que começa a criação literária”[vii]. O Fora é uma tempestade de forças não-estratificadas, informes, um espaço anterior, no qual as coisas não são representativas, mas singulares, como uma linguagem outra, fora da usual, fruto de uma experiência da escrita. Um Exercício de Estilo como faz Raymond Queneau a parti da fórmula: “É escrevendo que se vira escrevedor”. Nessa esfera, escrever é lapidar uma experiência outra. Trabalho de artesão, martelando na direção do por vir / do indeterminado da escrita. A literatura é uma saúde. A saúde como literatura consiste em “inventar um povo que falta”. Fazer-se estrangeiro na sua própria língua, “criando um devir outro da língua”, tal como fez Manoel de Barros: uma minoração da língua maior. Já não se trata mais simplesmente de fazer o texto, mas criar outra sintaxe, algo que não parte do preexistente, que inventa sua própria lógica de uso das palavras, elevando a linguagem a seu limite, valendo-se de “algumas palavras que ainda não tenham idioma” [viii]. Com efeito, lançando a escrita para zonas de inventividade, para um espaço de criação. Criar é, nesse sentido, produzir forças. Como a força dos Poemas de Paulo Plínio, uma verdadeira tempestade de sons, traços, imagens, um bloco de multiplicidades em que o estilo denota uma potência e a um só tempo nos revela a criatividade do seu fazer artístico.

III. Atualidade de Paulo Plínio Abreu

Dentro do panorama literário de nossa época, a poesia de Paulo Plínio Abreu ocupa um lugar singular. É difícil classificá-lo entre as expressões do presente, sempre tão associadas a um fazer territorializado no qual a literatura é a narrativa de uma historinha regional. Afora algumas obras – Rio Silêncio; Nave do Nada; Infância Vegetal: belas experimentações na direção do Espaço literário – a imagem é fatigante: é a escrita como a expressão da unidade, de uma vontade de preservação, isso e suas variações em torno do tema da identidade. Contudo "O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define o mundo da representação. Mas o pensamento moderno nasce da falência da representação, assim como da perda das identidades” [ix]. O acontecimento passa alhures, em outras cenas, na velocidade das correntes marítimas, quase imperceptíveis, mas sempre indo, sempre em movimento.
Tal como em Paulo Plínio, a poesia de Max Martins, Mário Faustino e Cauby Cruz, forma um abecedário de resistência pela Alta Literatura [valendo-se do conceito de Leyla Perrone-Moisés]. Resistência enquanto potência ativa, como criação, no âmbito da obra literária. Há seguramente um caráter inovador na poesia de Paulo Plínio, uma abertura evidente que cintila na esfera das palavras. Nela a poesia dobra-se em fluxos de intensidades: “a luta do poeta não é / com o anjo,/ mas com o verbo”. A sua postura é singular, está deliberadamente fora dos clichês e dos axiomas da identidade: “As chaves do mundo / para sempre perdidas” [Fragmentos]. A poesia de Paulo Plínio transcorre por fora de toda significação, em voos rumo a uma direção própria: “Nau sem porto”/as águas te seduzem”. Escrita líquida: “Nave do nada feita e quase ave / desfeita em voo puro”. Essa escrita nada tem a ver com sistemas ou arborescências, pois acontece exterior à gramática da representação, navegando pelas margens, numa viagem em que não existe início ou fim, mas tão somente vontade de novo, num vigoroso processo de trabalho pela re-invenção da matéria escrita. Paulo Plínio combate em favor da palavra, descortinando em cada frase, fragmento, poema, imagens que compõe uma outra fisionomia; é um extraordinário caso de ruptura. Sua jornada acontece desviando-se dos pontos e fronteiras, avançando pelo meio “do mar, do deserto, de um país estrangeiro”, gerando afectos, trocas, devires. E assim, pelo meio, Paulo Plínio atravessa a superfície do contemporâneo expressando sua vontade de potência, sua força de criação.

16/6/2009

[i] Hölderlin, Elegias, Lisboa, Assírio e Alvim, 1992, p.69
[ii] Deleuze, Gilles. Bergsonismo, São Paulo: Ed. 34, 1999, P. 95-123.
[iii] MENDES, Francisco Paulo. Prefacio - Poesia: Paulo Plínio Abreu. Belém: Ufpa, 1978, p.X
[iv] id, ibd, p. XII
[v] Lins, Daniel. Expressão: Espinosa em Deleuze..., São Paulo, Forense Universitária, 2007, p.4
[vi] DELEUZE, Gilles. Critica e Clínica, São Paulo, Ed, 34, 1997, p. 157.
[vii] Blanchot, Maurice: A parte do Fogo, São Paulo, Rocco, 1997, p. 305.
[viii] Barros, Manoel, Livro das Ignoranças, São Paulo, Rocco, 1994, p. 21.
[ix] Deleuze, Gilles, Diferença Repetição, Graal, Rio de Janeiro, 1988, p, 20 a 61.

Imagem: Louise Bourgeois

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Sylvia, d-i-á-r-i-o-s



"(...) Ah, é duro para mim me reconciliar com isso tudo. Talvez por isso eu seja uma moça — assim posso viver com mais segurança que os rapazes que conheci e invejei, ter filhos e instalar neles o desejo intenso de aprender e amar a vida que eu jamais chegarei a sentir plenamente, pois não há tempo, pois não há mais tempo, em vez disso há o medo súbito e desesperado, o relógio que bate e a neve que cai de repente demais após o verão. Certo, sou dramática e meio cínica, indolente e meio sentimental. Mas nos anos fáceis poderei amadurecer e descobrir meu caminho. Agora estou vivendo numa situação crítica. Estamos todos na beira do precipício, isso exige muito vigor, muita energia, seguir pela borda, olhar para baixo, ver a escuridão profunda sem ser capaz de identificar através da névoa amarelada e fétida o que jaz abaixo do lodo, na lama que escorre cheia de vômito; e assim sigo em frente, imersa nos meus pensamentos, escrevendo muito, tentando achar o centro, um significado para mim." – Diários

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A PALAVRA, OCUPAÇÃO DE RIVAIS [2]




Era ele que morava no andar de baixo na Fitzroy Road e pode ter sido a última pessoa a vê-la com vida; conta ele que na véspera de seu suicídio Sylvia Plath apareceu em sua porta e pediu-lhe alguns selos emprestados. No texto de Alvarez, Thomas é a chave da teoria segundo a qual Sylvia Plath não pretendia morrer, mas de retornar de sua morte pelo gás da mesma forma como despertara de sua morte por soníferos. Segundo Alvarez, ela contava com “o pintor idoso que morava no andar de baixo” (ele tinha 55 anos) para salvá-la. Uma nova babá havia combinado chegar em casa às nove e, se tudo tivesse corrido de acordo com os planos, Thomas a teria ouvido tocar a campainha; ela teria descoberto o corpo ainda quente de Sylvia Plath e “não há dúvida de que ela teria sido salva”. Mas Thomas não escutou a campainha – um pouco de gás escapou para o seu apartamento e o deixou meio tonto – e quando a moça voltou com ajuda, depois de uma espera interminável numa cabine telefônica, já era tarde demais. (Em Amarga fama, a idéia de que Sylvia Plath teria sido salva se a moça – que, conforme pesquisas posteriores revelaram, era uma acompanhante para ela própria, enviada por seu médico, o dr. John Horder – tivesse entrado na casa às nove é questionada. Escreve Anne Stevenson: “O dr. Horden é da opinião de que, mesmo que tivesse sido resgatada enquanto seu corpo ainda estava vivo, é provável que seu cérebro sofresse danos irreversíveis”.)
O próprio Thomas jamais confirmou nem contestou a versão de Alvarez; mudou-se de Londres e nunca mais disse nada, nem nada se ouviu falar dele, até 1986, quando reemergiu na lenda de Sylvia Plath. Uma carta de Elizabeth Sigmund publicada no Observer, reclamando da caracterização de Sylvia Plath numa de suas matérias, captou seu olho aprovador e o estimulou a escrever para ela por intermédio do jornal. Elizabeth passou Thomas, então com 79 anos, para Clarissa Roche, que o convenceu a registrar suas memórias por escrito. A pedido dela, ele produziu um manuscrito datilografado de 27 páginas – em 1989, mandou tirar fotocópias e encaderná-lo com uma tiragem de 200 exemplares – narrando os dois meses de suas relações com Sylvia Plath no número 23 da Fitzroy Road e contando tudo que viu e ouviu na casa nos meses que se seguiram a sua morte. O texto, intitulado “Sylvia Plath: last encounters” (“Sylvia Plath: últimos encontros”), é um documento notável. Como o livro de memórias de Dido Merwin, transmite um auto-retrato imediato e claro, e, a exemplo de Dido, Thomas evoca sem nenhum afeto a memória de Sylvia Plath. À diferença de Dido, porém, Thomas não deprecia Sylvia Plath a fim de resgatar Hughes: fala mal dele também. Na verdade, nenhum dos dois lhe interessa muito, e ele deixa claro que só se interessa por si mesmo. O próprio fato de ter conhecido Sylvia Plath foi apenas mais uma das manifestações do azar que o perseguiu ao longo de toda a vida. “Depois que minha mulher me deixou, em setembro de 1962, procurei desesperadamente algum lugar onde meus filhos Giles e Joshua pudessem morar comigo”, escreve Thomas na primeira página de “Últimos enconstros”. Um dia, no final de outubro ou no começo de novembro – pouco antes de Sylvia Plath escrever sua acarta entusiasmada à mãe sobre o apartamento que encontrara na Fitzroy Road –, Thomas viu o mesmo apartamento e ficou igualmente apaixonado. O problema era o valor do aluguel: não sabia ao certo se conseguiria ganhar dinheiro necessário para pagar o adiantamento de três meses e pediu ao funcionário da imobiliária que reservasse o apartamento para ele durante o fim de semana, o que lhe foi prometido. No entanto, quando ligou na segunda-feira para dizer que tinha uma solução, o apartamento já havia sido alugado. O funcionário “contou que um jovem casal com dois filhos pequenos, o sr. e a sr. Hughes, tinham visto o apartamento no domingo e, achando que a necessidade deles era maior do que a minha, ele lhes entregou o apartamento de dois andares e reservou o apartamento do térreo para mim”. E continua Thomas:
“Fiquei muito aborrecido, porque o apartamento térreo era pequeno demais. Também tinha certeza de ter sido enganado de alguma forma. Embora estivessem separados, Ted Hughes se prestara a ir com ela ao escritório da imobiliária, que dificilmente aceitaria alugar o apartamento a uma mulher sozinha com dois filhos. Anos mais tarde, fiquei sabendo que a sra. Hughes pagara um ano de aluguel adiantado, assinando um contrato de cinco anos. Não admira que os funcionários achassem que a sua necessidade era maior do que a minha.”
Embora o apartamento térreo não lhe conviesse, Thomas o alugou. “Pelo menos era alguma coisa”, resmunga ele. Tirei meus pertences do guarda-móveis e atulhei tudo no apartamento (...). E vi que precisava construir beliches para os meninos.” A razão para essa concessão aparentemente incompreensível – ele sem dúvida poderia ter procurado um apartamento maior em outro lugar – era a placa azul de cerâmica com o nome de Yeats. Em sua juventude em Liverpool, Thomas produzira uma montagem de uma peça de Yeats, At the Hawk’s Well, em que trabalhara como diretor, ator e figurinista. Thomas acreditava no sobrenatural e sentia que “precisava” morar na casa da Fitzroy Road que fora de Yetas. Mas nem por isso sentia-se obrigado a ser prestativo, ou mesmo especialmente delicado, com a jovem que se mudara para o andar de cima, e enumera em seu texto, com uma espécie de satisfação, as várias ocasiões em que pôde ser imprestável ou indelicado com ela. Quando Sylvia Plath, no dia de sua mudança, trancou-se por acidente, junto com os filhos, do lado de fora do apartamento e pediu a ajuda de Thomas, “tive de frustrar suas esperanças de encontrar uma cópia da chave, pois só tinha as chaves de meu próprio apartamento. A última coisa que eu desejava era me envolver com ela, por isso recomendei que ligasse para a polícia e fui cuidar da minha vida”. Noutra ocasião, durante a onda de frio do inverno, quando a neve estava alta e Sylvia Plath não conseguia dar a partida em seu carro, “ela queria que eu saísse de casa e girasse uma dessas manivelas pesadas que se enfia na frente do carro para dar o arranque. Tive de recusar, porque se você não sabe o jeito certo pode quebrar um dedo, ou até mesmo o pulso”. Thomas conta que Sylvia Plath jogava seu lixo nas latas dele, em vez de comprar latas de lixo próprias, e costumava bloquear o corredor com seu carrinho de bebê. “Acho que seria correto dizer que eu não deixava de sentir uma certa antipatia por ela”, escreve ele. E acrescenta:
“Ela tendia a ser uma pessoa egocêntrica, que não se envolvia com os problemas das outras pessoas. Nunca pensou em mim, nos meus filhos ou nas dificuldades que podíamos estar vivendo. E nem manifestou interesse pelos meus quadros ou pelo que eu fazia. O mundo girava em torno dela. Já pude observar esse tipo de absorção em si mesma em outras pessoas.”


Janet Malcom, A Mulher Calada, Companhia das Letras, 2005.

terça-feira, 5 de maio de 2009

TIRO NO CORAÇÃO














o que se tornou o amor, para que um homem e uma mulher
saiam dele tão desmunidos, lamentáveis e enfermos,
e ajam e reajam tão mal, tanto no começo quanto no fim, numa
sociedade corrompida?
Gilles Deleuze, A imagem-tempo


Tiro no Coração, de Mikal Gilmore, não é nem de longe uma viagem em busca do tempo perdido – pelo estonteante fato de que o tempo para ele e sua família, o tempo que os uniu também os destroçou. E o que resulta de lembrança de tudo isso esbarra na pele de Mikal e seu irmão Frank Jr. como um insulto. Para eles – os sobreviventes, relembrar não os salva de nada. A dor é o único legado.

O livro conta a história da família como de uma terrível decepção. A família Gilmore (Frank, o pai, Bessie, a mãe, e os filhos Krank Jr., Gary, Gaylen e Mikal) no transcurso de 50 anos, mas que pode ser o de qualquer família hoje, uma vez que o enredo mistura os elementos banais da vida moderna e seus grandes buracos negros em qualquer tempo.

Mikal descreve a superfície sempre maquiada de certa família norte-americana, de origem nômade e mórmon, e de seus ritos sociais e seus subterrâneos; é a eles que Mikal desce, aos lugares tenebrosos das faces desmascaradas, e daí se põe a falar, ou melhor, tenta falar; ainda que conheça bem a história, esteve preso dentro dela, o que se escuta de verdade são gritos e balbucios; ele não tem como responder ao grande enigma proposto: o que torna um homem tão amargo a ponto de não servir para ser pai?

Frank Gilmore não se dava a mínima. Tinha as suas próprias prioridades. Seus segredos e temores sombrios. E tinha o alcoolismo Não podia conciliar seu mundo de trevas com uma família. Um mundo do qual ele não teve como escapar e acabou trazendo a todos para ele. Como imaginar um ambiente familiar onde depoimento como o que segue seja possível: “Eu não gostaria de ser criança de novo. Por nada neste mundo. Uma vez basta.” E ter que ficar aí, quando ficar é a última coisa a fazer. É então que se descobre que entre as múltiplas formas eficientes de se excluir o outro da sua vida, é que ambos fiquem juntos. “E para onde eu iria? Quem mais ia me querer? Fiquei porque não havia outra coisa a fazer.” Para a mulher, quais os vetores de saída?

Bessie Gilmore tinha bem a noção de seu emparedamento. Além de Frank, sua outra parte no mundo era a casa dos pais – uma casa da qual ela sempre tentou escapar desesperadamente. Do fanatismo rigoroso de um ambiente mórmon rural e de suas esperanças frustradas. Por isso mesmo tinha que reagir ao Frank, conviver com a calmaria e os sobressaltos do território que ele dominava e aí se por à espreita, defender a si e a seus filhos; um combate que resultava em perda diária, ano após ano, infinitamente maior do que ela podia suportar. Enquanto Frank viveu, ele fez o serviço devastador de tornar a todos bichos. Podia-se ter uma casa, um carro, comida e roupas. Podia-se até mesmo ir à escola e à igreja, mas era, ainda assim, uma vida de bichos. Por dentro da pele e no coração.

E foi bem aí que todos foram alvejados, no coração. Um tiro certeiro e aniquilador. Que fez de Gary Gilmore um nome para sempre ligado ao crime na América. Dele Mikal diz: “Sou irmão de um homem que matou homens inocentes”. A astúcia criminosa de Gary tornou pública sua tentativa bizarra de não escapar do que se é. Preso por matar dois jovens mórmons em junho de 1976, Gary foi condenado à morte. E aí, no espaço mínimo de uma cela, ele não se deixou acuar. Fora preparado a vida inteira para o papel.

Mikal foca os aspectos privados que poderiam ser as origens do pesadelo. Conta sua história no lugar de outra, não a conta para aplacar os seus nem os nossos males, apenas responde por ela e aí se mostra e desaparece. Ilustra seu almejado vazio com as fotos de todos os fantasmas, das casas mal assombradas e dos mortos vivos. Num nível, a palavra fatal, noutro, a imagem inumana. Tudo resumido ficam expostas as maneiras de morrer a cada dia, ainda válidas para estes tempos de pesadelos.


Ney Ferraz Paiva

sexta-feira, 1 de maio de 2009

REVISTA POLICHINELLO 10 ESCRITA RIZOMÁTICA



Participam desta edição:

[ Daniel Lins ] - Fortaleza [ Victor Sosa ] - México [ Juliano Pessanha ] - São Paulo [ Luís Serguilha ] - Lisboa [ Giselda Leirner ] - São Paulo [ Virna Teixeira ] - São Paulo [ Ney Ferraz Paiva ] Tocantins [ Efraín Rodríguez Santana ] - Cuba [ Antônio Moura ] - Belém [ Lúcia Castello Branco ] Belo Horizonte [ Alberto Pucheu ] - Rio de Janeiro [ Vicente Franz Cecim ] - Belém[ Maria Inês de Almeida ] - Belo Horizonte [ Ieda Magri ] - Rio de Janeiro [ Márcio-André ] - Rio de Janeiro [ Flávio Boaventura ] - Belo Horizonte [ Denny Yang ] - China [ Carlos Emilio Correia Lima ] - Fortaleza [ Beatriz Bajo ] - Londrina [ Goiamérico Felício ] - Goiânia [ Victor Paes ] - Rio de Janeiro [ Nilson Oliveira] - Belém

PROGRAMAÇÃO DE LANÇAMENTOS:

BRASÍLIA - 23 de Abril as 19h
CONVERSAÇÕES NILSON OLIVEIRA & JORGE AMÂNCIO
Local: T-Bone: SCLN 312 Bl B Lj 27 Brasília DF
.
GOIÂNIA - 24 de Abril as 14h30
EXIBIÇÃO DO FILME MAURICE BLANCHOT,
PALESTRA NILSON OLIVEIRA
Local: CINE UFG (Faculdade de Letras/Campus II)
.
BELO HORIZONTE - 29 de Abril as 19:30
CONVERSAÇÕES MAURICE BLANCHOT E A LITERATURA
COM LÚCIA CASTELLO BRANCO FLÁVIO BOAVENTURA
ANDRÉ QUEIROZ
Local: Fundação Gregório Baremblitt Instituto Felix Guattari
Rua Herval, 267 Bairro Serra Belo Horizonte.
BELÉM - 08 de Maio as 17h.
Local: Casa das 11 Janelas
LANÇAMENTO DAS REVISTAS POLICHINELLO & NÃO-LUGAR
RECITAL ANTONIO MOURA PAULO VIEIRA LUIZAN PINHEIRO
RENATO TORRES
Palestra do Filósofo Daniel Lins: Por uma Escrita Rizomática


quinta-feira, 23 de abril de 2009


Dona Clarice

Por Benedito Nunes


Conheci Clarice Lispector, antes de conhecer a escritora e a pessoa, por um outro nome: “Dona Clarice”, que é como a chamava, sempre que a ela se referia, o Professor Francisco Paulo Mendes, seu amigo de primeira viagem. Encontraram-se em Belém, no início da década de 40, acho que em 44, ela, com o marido Amaury Gurgel Valente, então a serviço do Itamarati, hóspedes do Central Hotel. Viam-se frequentemente no Café Central, um verdadeiro Café, que dava para a rua, e onde, muito mais tarde, juntei-me ao grupo que ali se reunia, liderado pelo referido professor. Em 44 ainda tinha 14 anos e Clarice Lispector, que acabara de publicar Perto do coração selvagem, começara a escrever O lustre, a sair em 1948. Foi somente nesse ano que comecei a ouvir o “Dona Clarice”, recordação da romancista, bela mulher, nos fins de tarde ou à noite resplandecendo na terrasse do Café Central, ao lado dos amigos de Francisco Paulo Mendes, que depois foram meus, Ruy Barata e Cléo Bernardo, ambos já falecidos.
O professor revelou-lhe Sartre, me diria, mais tarde, “Dona Clarice”. E a ele dirigiria o súplice recado de Um sopro de vida: “Cadê o desaparecido Francisco Paulo Mendes? Morreu? Me abandonou, achou que eu era muito importante.” Antes da Clarice real e da Clarice ficcionista, conheci a mítica, dona estelar de memorável brilho no passado do grupo. Comecei a ler a ficcionista pelos contos de Laços de família. Mas foi em 64, com A paixão segundo G. H., que os laços da sedução literária e filosófica à ela me amarraram. Dois anos depois escreveria sobre essa obra uma série de cinco artigos, publicados no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, e que incluiria, em 70, em O dorso do tigre, sob o título geral de O mundo imaginário de Clarice Lispector, abreviado para O mundo de Clarice Lispector, na oletânea de 66 que o precedeu, editada em Manaus, por iniciativa de Athur Cézar Ferreira Reis. O fervor da sedução levou-me a aceitar convite de Nelly Novaes Coelho para participar da coleção Escritores de hoje, de sua editora Quíron, com volume dedicado à escritora. Então, para escrever Leitura de Clarice Lispector (1973), voltei de Laços de família a Perto do coração selvagem, percorri O lustre, A cidade sitiada, A maçã no escuro, A legião estrangeira e o último, até aquele momento, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. (Mais tarde reveria e passaria a limpo esse livro, que se tornou O drama da linguagem (1995) acrescentando-lhe capítulos sobre Água viva, A hora da estrela e Um sopro de vida).
“Ele vai me considerar uma existencialista?”, teria ela, receosa e desgostosa, perguntado sobre as minhas intenções à Nelly, quando esta lhe anunciou o Leitura. A preocupação da escritora era justificável. Nos cinco artigos da série havia exagerado a dose da náusea sartriana, corrigida na publicação seguinte à custa da acentuação sobre a tendência mística em G. H. Tinha conhecido antes a Clarice real numa visita à casa dela, no Rio pelas mãos de Aloisio Magalhães, quase uma visita de cerimônia. Depois de saída a Leitura, encontrei-a novamente, desta vez no casamento de sua amiga Eliane Zagury. Não me lembro de termos conversado nessa ocasião. A primeira conversa deu-se em Brasília, até onde eu fora, nos fins do período Geisel, para participar do Congresso de Crítica Literária, ali realizado em 1974. Era tarde da noite, já tinha me deitado, quando ela, que tinha vindo a Brasília por outro motivo, hospedada no mesmo hotel, telefonou para o meu quarto. Estava angustiada, com problemas de consciência. Deveria entrevistar o Ministro Ney Braga? Repugnava-lhe aproximar-se dessa gente do governo militar. Mas como poderia agir diferente, se era jornalista e precisava ganhar a vida? Tinha sido recentemente demitida do Jornal do Brasil e preparava o livro de entrevistas, De corpo inteiro.
Ainda não se completara um ano depois disso, quando ela escreveu para Francisco Paulo Mendes, àquela época ainda em atividade como professor de Língua Portuguesa, pedindo ao amigo que conseguisse da Universidade Federal do Pará a ventura de poder voltar a Belém. Pagaria a viagem e a estadia com uma conferência; dispunha-se, também a conversar com os estudantes do curso de Letras. Clóvis Malcher, o reitor de então, mandou-lhe passagem e hospedou-a. Ouvimo-la na leitura hesitante de seu conhecido e belo texto sobre o sentido vanguardeiro da sondagem do real pelo aprofundado uso da língua portuguesa, já lido em Austin. (Literatura de vanguarda no Brasil, 63) e em muitos outros centros universitários. Esteve no campus, enfrentou grandes e buliçosas platéias.
Veio aqui em casa para um jantarzinho, convidados os antigos amigos dela e meus. Confessou que estava se sentindo bem entre nós. O retorno a Belém teria sido o seu tempo reencontrado. Acho que a partir de então surgiu entre nós uma afetuosa relação, extensiva à minha mulher. Depois que regressou, telefonava frequentemente e, sem falta, no período natalino, uma ou outra vez angustiada com o que fazer e com o que pensar, porque não raro pendia de um “se”, de uma eventual e dilacerante interrogação.
Em 77 passava por São Paulo, voltando de Campinas (lecionava na UNICAMP durante o segundo semestre), quando interei-me de sua morte. Não haveria telefonema no Natal desse ano.


Dois ensaios e duas lembranças, Belém: SECULT-UNAMA, 2000.

terça-feira, 21 de abril de 2009

CORAÇÕES SELVAGENS


Por Ney Ferraz Paiva

"o mal, para mim, não foi uma entidade literária, ou uma sombra apenas entrevista no horizonte humano. Soube com pungente intensidade o que ele significa em nossas vidas, e muitas vezes toquei seu corpo com meus dedos queimados... já que a dura contingência humana me fez tão propício ao seu fascínio".
Lúcio Cardoso, Diário Completo

"(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.”
Clarice, A Paixão Segundo G. H.


Você escreve carta não pelo prazer do grande texto, mas para mobilizar alguém, acreditava Ana Cristina César. Essa mobilização do outro bem que Clarice Lispector tentou nas cartas enviadas a Lúcio Cardoso – ela que quando escrevia carta utilizava, graças a seu olhar multiplicador de imagens, “um anzol compridíssimo, cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta”. Resposta sempre avara. Lúcio assumira uma legenda de mistérios e incógnitas para manter-se distante ou talvez perto, muito perto com seu coração selvagem. Estranha proximidade contra a qual Clarice freqüentemente protestava: “Lúcio, como vai você? Responda...”.
São vinte as cartas conhecidas de Clarice endereçadas a Lúcio, num período que vai de 1941 a 1947, de diferentes cidades: Belo Horizonte, Belém, Nápoles, Rio de Janeiro. Quase todas cartas de amor, de um amor que ficou suspenso, mudo, em face às intermitentes palavras de Clarice, desafiadoras, latentes ou, efeito contrário, a bloquear qualquer possibilidade de relacionamento amoroso, quando todas as tentativas resultaram vãs.
Clarice e Lúcio se conheceram em 1940, no Rio de Janeiro, na sede da Agência Nacional, onde ela trabalhava como redatora. Tinha 19 anos, ele 28. E esse não é um fato externo que importa apenas à biografia e à lenda dos dois escritores. Para eles o tempo começa a contar-se por esse encontro. Por vezes a realidade dissolve-se em ambigüidades, ironias, nuanças devastadoras, de tal forma que a história pessoal passa a importar pelos oblíquos e indiretos jogos de motivações, ainda que incompletos, como marca do estilo e da vida do artista. Uma vida “não relatável” e “não vivível”, diria Clarice.
Os impedimentos de mobilizar/pescar o receptor – de quem apesar de tudo se pensa reconhecer a “silhueta” –, pressupondo-se (talvez falsamente) que ele deve estar algures no espaço físico, são recorrentes na escrita, e reúnem assim os signos que permitiram à Clarice e a Lúcio usar aquela espécie de crueldade que algumas vezes é interpretada como desejo de representar a verdade. Porém toda verdade é indiscernível.
A primeira carta, datada de Belo Horizonte, junho de 1941, narra uma paixão de perder-se e também de perder, retiradas as possibilidades de se afirmar a presença do outro: “quanto ao teu fantasma, procuro-o intimamente pela cidade”. O pulso do amor batia forte, mas Lúcio insistia em não pegá-lo na travessia – grande dissipador. Para ele, nada mais sórdido do que a proximidade. E o silêncio, a imediata recusa.
Existe sempre algo mais como parte do enredo da história e da vida de todos nós. Esse “mais” é o que está sempre vindo, porém Clarice nem sempre soube sentir-se livre em meio a essa disposição dialética. Em 1943 casa-se com Maury Gurgel Valente, diplomata, que não havia entrado na história, nem nas cartas de Clarice que, endereçadas a Lúcio, ainda assim se avolumavam. O interesse afetivo e intelectual pelo amigo não se desfez, surpreendentemente se manteve intenso. Ela então lhe mostra um manuscrito que considerava um esboço despretensioso; ele o lê e percebe um romance pronto; escolhem juntos o título joyceano “Perto do Coração Selvagem”.
O livro seria publicado no início de 1944, dez dias depois, Clarice se transfere com o marido para Belém, onde residira por seis meses. O mundo imerso na irrealidade e no desnorteamento de uma guerra imprevisível, enquanto os combates pessoais prosseguem. A necessária deriva. “Belém, 6 de fevereiro de 1944. Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei procurar trabalhar e começo de novo a me torturar, até que resolvo a não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas, e me volto também contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Caiu-me plenamente nas mãos “Madame Bovary”, que reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que tive e as que não tive. – Eu nunca tive propriamente o que se chama “ambiente”, mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem “mutuca”, (isso é besouro, mas por que não chamar tudo mutuca logo de uma vez?)".
A presença de Clarice em Belém é mais do que uma vaga referência emocional. Foi ali que toda a repercussão de sua estréia revolucionária vai encontrá-la, entre as paredes de um quarto no Central Hotel, na Presidente Vargas.
É o caso do artigo de Lúcio, no Diário Carioca: “Poucas vezes temos visto um tão exacerbado individualismo, uma tão lenta e obstinada sondagem do seu próprio eu, como faz a autora de ‘Perto do Coração Selvagem’. Deste mundo essencialmente feminino, cheio de imagens, de sons, de claridades azuis, brancas e esverdeadas, de folhas novas e manhã ainda cheirando a mato, Clarice Lispector consegue nos transmitir uma imagem poderosa e viva: não há dúvida de que estamos diante de uma singular personalidade, que sabe captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da sua fusão, uma vida perfeita. Nesta estranha narrativa, onde o romance se esfuma para converter muitas vezes numa rica cavalgada de sensações, a poesia brota como uma fonte nova e pura”.
O artigo valeu como se Lúcio tivesse respondido a sua primeira carta, mas ela sabia não se tratar de uma resposta, e sim da voz selvagem dos demônios, entre exílios e expulsões, silenciando o coração de Lúcio. “Imagine que eu estava junto à mesa, pronta para escrever para você e contar coisas, quando bateram à porta e trouxeram-me, vindo do Rio, o que você publicou no Diário Carioca... Fiquei assustada com o que você diz – que é possível que o meu livro seja o mais importante. Tenho vontade de rasgá-lo e ficar livre de novo (é horrível a gente estar completa). Sei que não é isso que você quis dizer. Quanto ao meu meio sucesso me perturbar, às vezes, ele me deixa saciada e cansada. Ás vezes, embora possa parecer falso, me desanima, não sei porquê. Parece que eu esperava um começo mais duro e, tenho a impressão, seria mais puro. Enfim, tudo isso é tolice minha”.
Mestre de bruxarias incrustadas na carne e na palavra, Lúcio lhe faria amar qualquer coisa viva, talvez mesmo uma barata, desde que em silêncio. O inexprimível nada a oscilar: “Alô Lúcio, isto é apenas para perguntar como você vai. O quê? Ah, estou bem, obrigada. O quê? Ah, sim, você talvez tenha razão. Que você tem me escrito muito? Sim, recebo sempre suas cartas; até ia lhe dizer que não me escrevesse tanto porque você pode se cansar. O quê? Que você faz isso por amizade? É claro, pois foi o que pensei. Que você me mandou seus livros? realmente, todos os dias recebo um. Se eu li seu poema ‘Miradouro’? sim, li e gostei tanto, tanto. O quê? desculpe, não estou mais ouvindo, a distância é grande, minha ‘aura’ está acabando e o esforço desta comunicação é tão sobrehumano que mal tenho força de assinar”.
Lúcio fazia um mínimo de gestos, reduzia tudo a quase nada, não fossem as palavras de Clarice a narrar uma paixão em que o caso amoroso não era do outro mais (+) o outro, mas do outro menos (-) o outro. A própria reversão das iniciais do nome de Clarice Lispector (CL) e de Lúcio Cardoso (LC) talvez insinuasse a impossibilidade de se tocar sequer as extremidades “queimadas” dos dedos, numa despedida. Não realizada na pessoa amada a alquimia única e vibrante que o tempo ousa ser. Ainda que, de um jeito ou de outro, nem a beleza, nem o amor escapem a ele. Paixão de perder e não de exceder. Excesso também é vazio, sabeis.
Clarice seguiu acompanhando o marido por diversos postos diplomáticos. De Nápoles, a 26 de março de 1945, estica ou condensa outra carta/isca: “Lúcio, me escreva e conte coisas. Ou então não escreva, que posso eu fazer? Um dia desses fui ver a lava do Vesúvio. Tenho um pedaço feio de lava para você. Depois de um ano ainda estava quente; é uma extensão enorme, negra, de vinte a trinta metros de altura; a gente anda sobre casas, igrejas, farmácias soterradas. A erupção foi em março de 1944 e quando chove sai fumaça ainda.”
Mesmo sem querer – avessa que era a dar pistas sobre seu texto –, Clarice faz aqui uma das mais belas descrições de sua obra. Passados mais de 30 anos de sua morte, ocorrida a 9 de dezembro de 1977, essa escritura permanece “quente” e “é uma extensão enorme” de um território engendrado por ausências e vazios, que não se captura, quando muito se rivaliza pelos subterrâneos inventivos da palavra, atravessados por poucos: um Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Osman Lins, Raduan Nassar. Quem mais? Tanto que, nas tardes de chuvas intensas como as que caem sobre Belém, “sai fumaça ainda” de suas palavras.

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS






















Você não deve escrever sobre hospícios. Não. Todo mundo tem um hospícios perto. Ou é a sua bolsa que é um hospício. Ou sua casa. Ou ainda a carteira de dinheiro. Muita coisa pode ser um hospício. Não falo da desorganização, falo de hospícios mesmo. Rimbaud apareceu vestido de índio apache. Disse que eu estava virando general Custer. Havia muitas flores em toda a clínica. Era um lugar bonito. Por isso digo que hospícios são lugares tão bonitos que lembram os cemitérios. Aqueles cemitérios onde há enormes jardins.


Rodrigo de Souza Leão
imagem: Alberto Giacometti

segunda-feira, 20 de abril de 2009

REDESENHAR O RISCO

REDESENHAR O RISCO


A arte está em risco – A arte está por um risco. Rosana Ricalde arrisca-se aos revezamentos alternativos e radicais ao se associar aos “desenhadores de palavras” (Mallarmé, Apollinaire, Ezra Pound, Mário Sá-Carneiro, e. e. cummings) e menos, bem menos, aos “autores de imagens”, todos eles, sem exceção. Riscalde não se contenta com o olhar distante dos que contemplam nos museus e galerias; ela quer o olhar atônito dos que devoram, dos que transitam sem destino a cidade e as ruas, a querer saber, a indagar-se como um Josef K, sem dar a mínima para as descrições, paisagens, estações. Riscalde busca as conexões do olhar – olhares & proliferações que o texto, antes, anuncia nas suas reações, nos seus deslimites e atravessamentos. Suas palavras não saltam de um espelho e sim de um lago. Ali estamos submersos, afogados. O cotidiano que torna a ser, infinitamente, não nos devolve a nossa face. Somos agora a caligrafia de um mito que se simula. Redesenhados. Riscados. Corpos e linguagens de erros, distorções. Submersos aí, irreconhecíveis. Atraídos cada vez mais pela dissimilitude dos jogos e brincadeiras de uma infância que a todos escapa, mas que por vezes retorna, incrustada silenciosamente na carne. O pintor Francis Bacon afirmou serem os açougues suas catedrais. Ricalde não é menos dramática ao nos lançar de volta a nossas lembranças, que não deixam de se constituir numa lógica de sensações animais, maquínicas, do nosso nomadismo subjetivo e cultural.





Ney Ferraz Paiva

quarta-feira, 15 de abril de 2009

OBJETO DE AMOR






De tal ordem é tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com essa dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

Adélia Prado, O pelicano, Record, 2007
Imagem: Francesca Woodman