ARTES VISUAIS CARA A CARA
A única coisa que é interessante definitivamente, é influenciar, é estabelecer um contato, comunicar, enfiar um prego na passividade e na indiferença das pessoas.
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à procura de uma linguagem inabitável louca desgarrada é ela que traz água aos moinhos
o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)
segunda-feira, 30 de março de 2009
domingo, 8 de março de 2009
EU SUJEI A PERFEIÇÃOEntrevista com Max Martins
Por
Oswaldo Coimbra
OC -
Max, nós gravamos a conversa que você teve conosco – professor e alunos do
mestrado de Letras, da UFPA, há sete anos, durante a qual você fez longas e
demoradas reflexões sobre a poesia, seus métodos de criação, seu público, as
quais gostaríamos de apresentar agora a você, imaginando que não necessitarão
de grandes correções da sua parte.
MM -
Eu posso falar porque, afinal, são setenta e quatro anos de vida e tive tempo
de meditar sobre a minha poesia. Então, eu repetirei o que disse, embora já
se tenham passado sete anos desde aquela conversa. Vocês encontrarão a minha
boca torta, a língua meio enrolada, portanto, diferente daquele tempo, mas
creio que teremos sucesso ao falarmos de poesia.
OC -
Gostaríamos, inicialmente, de recuperar um momento importante daquela
conversa, quando você, a nosso pedido, estabeleceu uma relação entre a sua
produção poética e a sua vida, isto é, quando você entrou no tema “Texto e
Vida”. Você disse que a poesia era uma opção de vida. “Em primeiro lugar, eu
quis ser poeta”. Esta frase contém alguma coisa que não costumamos ouvir.
Embora a figura, a imagem social, do poeta, a de um homem sensível capaz de
atrair o interesse das mulheres, dentro do clichê conhecido, encante muita
gente, poucas pessoas colocam, de fato, a produção poética no centro de sua
vida, como a sua atividade mais importante. Você disse ainda: “Mas eu sabia
que isto poderia me custar muito. Perdi os dentes, perdi o bonde, perdi uma
maneira de ganhar dinheiro, de vencer na vida. Me dediquei só à poesia. O
resto eu transformei em calo seco para que não doesse tanto”.
MM -
Gostei desta frase. Tomara que eu tenha agora a mesma inspiração daquela
hora. A minha poesia tem uma relação muito séria, muito veemente com a vida.
É poesiavida, vidapoesia. Eu quero sentir nas palavras, nas frases que eu uso,
nas rimas – se há rimas –, em tudo, cheiro de sangue. Faço uma imagem. Como
não datilografo, escrevo só a mão, quero sentir meu sangue escorrendo nas
minhas veias, passando para os dedos e para a minha mão que segura a caneta "bic", de tinta preta. Eu bebo a minha emoção no cotidiano. O meu ler a vida é
relacionado às coisas mais simples, mais corriqueiras da vida que me incluem
e eu transformo em poema. Acho que o poeta precisa ter a maior liberdade para
criar. Não se compreende um artista preso em correntes, nem na chamada
realidade do cotidiano, nem em religiões. Só se cria alguma coisa tendo
liberdade. Acho que o poeta é um Deus – comparando-o metaforicamente – porque
ele tem a liberdade de Deus ao criar, para inventar o seu poema. Porém, o
poeta precisa também de humildade para enfrentar o desafio da folha em
branco, para tentar criar alguma coisa. Ao poeta, também, é necessário
desejar, ter vontade, uma chama, para fazer o melhor poema do mundo. Ele deve
tentar alcançar esta grandeza embora possa nunca alcançá-lo. Ele tem de ter
vontade de fazer a coisa bem-feita, perfeita. Eu digo que escrevo pelo meu
bem. Não escrevo sobre coisas já constituídas. A minha poesia é o império do
vago. Tenho um diário com já perto de cem cadernos em que crio palavras a
esmo, de onde um pinço meus poemas. Pinço palavras sem o seu significado
comum que dependem do acaso. A poesia também é um jogo com as palavras, com
as ideias. É fruto de uma vagabundagem, de uma viagem que eu faço, sempre
escrevendo numa prancheta, dentro de uma rede que eu chamo de minha nave
caótica. Misturo sonhos, e, às vezes não estou escrevendo nada, nem estou
pensando no sentido filosófico da palavra. Estou apenas viajando no meu
pensamento, na minha vagabundagem. Sim, agora façam outra pergunta.
OC -
Vamos voltar para a rede. Quando pedimos, na conversa anterior, para você
falar de seu método de criação você disse de modo definitivo: “Não existe
chamamento, inspiração”. E explicou: “Diariamente, eu pego meu papel, o lápis
e uma prancheta, e, me embalo na rede”. Este embalo tem uma função no seu
processo de criação?
MM -
Nós costumamos empregar a palavra embalo para designar dança. Dizemos, por
exemplo, “Estou no embalo”, com o significado de dançar. A poesia, como a
dança, tem um ritmo. Nascido, porém, da respiração do poeta. Não é um ritmo
melódico, nem rimado, embora um poema possa casualmente ter rima.
Infelizmente, o meu pulmão está intoxicado pelo cigarro, mas o cigarro é
muito importante para mim. Tenho a impressão que, pelo andar da minha vida,
morrerei fumando. Fumar, hoje em dia, sofre repressão por uma mania de saúde
que obriga as pessoas a serem belas, fortes e ter bons pulmões. Não aceito
esta repressão e me enraiveço com as pessoas que me tolhem, inclusive na
minha própria família. Tive de levantar ontem à noite da mesa onde estava
jantando porque minha filha que não mora na minha casa também jantava e me
disse: “Papai, você não podia fumar longe?” Ela é cardíaca também e estava
com razão, mas fiquei com raiva. Não disse nada. Me levantei e me tranquei no
meu paraíso, aquele último quarto onde estão os meus livros, minha rede. E me
embalei na rede e esqueci o incidente. Acho antipático este policiamento. Por
que não reclamam dos carros em cima das calçadas? Das calçadas esburacas? Do
cocô de cachorro em cima das calçadas? Há muita coisa contra o que reclamar.
Mas só se reclama do cigarro. Isto nasceu de uma mania de americano zeloso de
ser só preocupado em comer suas vitaminas. Por isto, isto é, por raiva acho
que morrerei fumando.
OC -
Mas o embalo da rede fornece um ritmo?
MM -
Ah! Sim. O embalo dá o ritmo que já está dentro do meu pulmão, na minha
respiração e na minha aspiração - um ritmo docemente ondulatório.
OC -
Ainda com relação a seu método de criação, você disse, naquela conversa que,
ao se embalar na rede, “pensava e escrevia”. Você afirmou: “Poderia começar a
escrever um poema com uma ideia ou com uma frase escrita a esmo, a qual
depois seria trabalhada e reconvidada a entrar no salão do poema. Mas eu
poderia começar com uma frase escolhida a num texto qualquer. Ou, ainda, com
uma outra frase poética”. Então, você tem várias possibilidades como ponto de
partida?
MM -
No poema cabe tudo, qualquer palavra, signo, ideia. O poema pode ter alguma ideia
e pode não ter. O ritmo se faz ao acaso. Vagamente. Imposto pelo meu
respirar. Automaticamente. Se eu já respiro pouco porque meu pulmão está
ressentido, meu poema será capenga em seu pulmão, se podemos dizer assim. No
poema cabe qualquer palavra contanto que tenha este ritmo natural. No final,
ela vai se encaixando. Mas pode ser que as palavras não sejam entendidas
imediatamente. As palavras podem ser sombrias, pedem sombras, adoram sombras
porque escondem outras palavras. As coisas, aliás, existem escondidas nas
outras coisas. Este é um mistério que nos atrai, esteticamente. Há aí uma
questão de gosto, de prazer nisto. Por esta razão digo que escrevo pelo meu
bem, pela minha autossatisfação, movido pelo meu desejo. O que move tudo é o
desejo. Não só amoroso, embora, no final, tudo redunde, recaia no desejo
amoroso. Afinal, o amor é o que o principal da vida. E o poema busca nos
ouvintes o caminho do amor. Amor que, neste caso, é doação. O poeta é um
doador. O que move o poema é o se dar. É o oferecer uma dádiva, um trabalho,
um papel com um poema, enfim, um trabalho de arte. Pode ser que a doação do
poeta não ocorra no momento em que for lido pela primeira vez. Mas ainda que
se passem cem anos surgirá o momento da identidade entre a poesia e a vida.
OC -
Max, você acabou de dizer que é o amor que move a criação poética, um amor
não necessariamente físico, sexual. Mas há poemas seus que são eróticos, não
é verdade? Na nossa outra conversa, você disse: “As palavras têm a capacidade
de parir outras palavras”. Explique isto para nós, por favor.
MM -
Sou chamado de poeta erótico, não porque descreva cenas eróticas, mas principalmente
porque, para mim, as palavras se amam, se abraçam, se beijam, copulam,
dependendo das circunstâncias poéticas, no contexto da escrita. Elas rimam
umas com as outras – estão se amando. Há também um erotismo das palavras em
outras figuras de Poética. Eles se aliteram. Há as metáforas. Enfim, elas se
tocam.
OC -
Há sete anos, nós perguntamos o que, para você, é a poesia. Você nos
respondeu: “Para mim, a criação poética não se confunde com o trabalho de
burilar versos. É estudar e ver o mundo. Em primeiro lugar, é estudar a arte
poética da minha língua. Mas, também, os sons, as rimas, as metáforas dos
poemas escritos em outras línguas. Compreendi que a arte da poesia é
trabalho, estudo, uma visão do mundo e uma apreensão do espírito da humanidade”.
Portanto, é tudo isto, e, só não é inspiração.
MM -
A poesia é muito mais respiração porque não existe esta coisa de sentar-se
numa mesa de bar, num fim de tarde já indo para a noite, tomar uma cerveja,
olhar a lua e esperar que ela jogue no papel de sua mesa um poema. Não. A
poesia é antes de tudo um trabalho que é, também, físico. Eu, por exemplo,
fico cansado fisicamente também, depois de vagabundear por um certo tempo –
cansado de escrever, riscar, emendar. O trabalho do poeta consiste também em
sentar a bunda diante de uma mesa com um papel em branco e começar a
escrever, mesmo sem saber no que pensar. Também se transpira, se sua, neste
trabalho. É um parto, com a dor da fêmea, parindo.
OC -
Mas o poeta também é um moleque, um brincalhão, não é?
MM -
Sim. Se é um jogo é uma brincadeira, também.
OC -
Dizemos isto porque causou muito impacto naquela turma de mestrandos, com a
qual você conversou, anteriormente, aquele momento no qual foi pedido a você
que explicasse o significado de um pequeno círculo preto usado como título de
um de seus poemas. E você pacientemente explicou que não era, digamos, um
nariz.
MM -
Era o cú. Um simples sinal usado como título que lembrava o cu, mas lembrava
também o ponto preto. Podia levar àquilo que o leitor imaginasse porque o
leitor, às vezes, é superior, em inteligência e em ideias, ao próprio autor.
OC -
Você acha, então, Max, que o poema lido pelo leitor é às vezes melhor do que
aquele escrito pelo poeta?
MM -
Pode acontecer isto, mas pode não acontecer, também. É algo colocado dentro
das possibilidades. O leitor pode sentir algo, não compreender, nem
interpretar, sem poder dizer isto em palavras. Por isto, na sua leitura pode
acabar escrevendo outro poema melhor que o do poeta.
OC -
E qualquer forma, aquele ponto preto é algo ligado à concepção que você tem
da palavra também como mancha na página, não é isto? Então, se é uma mancha,
pode, inclusive, ser apenas um ponto preto.
MM -
Exato.
OC -
Aquela conversa, você disse: “A palavra é ideia, som e figuração visual”.
Para o seu trabalho qual destas três dimensões da palavra é a mais
importante, aquela que você mais explora?
MM -
A mais importante é a dimensão da palavra enquanto som. O som é um elemento
fantástico do ritmo. Ritmo, insisto, que não é melodia, nem rima, nem
metrificação. A poesia pode ficar longe de tudo isto. Ela pode abster-se de
rima e de metrificação, mas não se abstém da metáfora porque é algo próprio
do ser humano inventar metáforas já que uma ideia puxa outra ideia. Um pé de
mesa não é um pé mas recebe este título. Há um farto universo de metáforas.
Cabe ao poeta, ao acaso, pinçar uma ou outra e criar novas metáforas. Cabe a
ele isto – criar metáforas inusitadas, não adivinhadas ainda, mas que, um
dia, serão creditadas, acreditadas, ainda que para isto seja necessária a
passagem de cem anos, pois a humanidade sempre estará pensando em novas metáforas.
No momento que se vive, hoje, as metáforas estão abundantes até na propaganda
comercial. Então, faremos poemas da propaganda comercial.
OC -
Depois que você lembrou, naquela conversa, das múltiplas dimensões da
palavra, nós entramos num outro item, relativo às frequentes manifestações de
insatisfação dos poetas com as palavras, sobretudo, porque elas generalizam,
não captam fenômenos específicos aos quais se referem. Por exemplo, com a
palavra amor se designa tipos diferentes de sentimentos: o amor por livros, o
amor materno, o amor entre irmãos etc. Quanto a este item, você disse: “Eu
desconfio das palavras. Nós somos limitados, passageiros. Não temos ideia do
todo. Só temos esta ideia, através do misticismo, da bebedeira, da loucura e
da poesia. E só podemos falar deste todo com metáforas ou com silêncios
entremeados com palavras”. Depois, você disse também: “Eu quero mostrar num
poema que eu desconfio das palavras, que não acredito nelas, mas que, ainda
assim, quero fazer um bom poema com aquelas palavras. Quero que o leitor
perceba que faço o jogo de quem acha que se deve acreditar nas palavras”. Em
seguida, você contou aquela anedota zen segundo a qual o dedo que aponta para
a Lua não é a Lua.
MM -
A palavra nunca é a coisa, a não ser em metáforas com a própria palavra. É um
erro confundir a Lua com o dedo apontando para a Lua mas, hoje, já existe o
homem na Lua que pode apontar para ela própria. Isto é outra coisa. Todas as
palavras são falsas porque elas não são as coisas a que se referem. Neste
sentido não acredito nelas. Uma palavra não é o sentimento de amor, nem de
patriotismo. Por outro lado, da palavra consta também uma visualidade que se
consegue igualmente no seu som, e, na maneira de escrevê-la, tanto através de
caligrafia, como de tipografia, como eu mostrei no meu poema Copulêtera.
Muita gente não o entendeu. Aliás, numa ocasião, eu falava para estudantes da
Casa da Linguagem e mostrei um poema visual. Era o Abracadabra que se compõe
de vários “As” em preto, e, de um único “A”, vermelho, no centro do poema.
Então, me perguntaram: por que aquele A é vermelho? Confesso que não tinha
uma resposta. Então, improvisei. Disse: “Este A vermelho é o coração do
homem, e, é o coração do poema”. E a explicação foi aceita. Mas, eu havia
pensado aquilo naquela hora. Concluindo: portanto, na poesia também existe a
trapaça, o roubo, a molecagem. Entra tudo neste jogo, neste brinquedo, nesta
brincadeira, devido à liberdade que o poeta deve ter para criar. Deus, o
criador, segundo Fernando Pessoa, devia ser um brincalhão, também, um
moleque, quando garoto. Mas, puxem mais pela minha língua e pela minha
memória.
OC -
Ouvindo você, agora, Max, nós nos lembramos de que em algumas religiões
orientais, Deus não pode sequer ser designado por uma palavra. Ele é o
Inominado porque qualquer outra palavra o diminuiria em sua importância.
MM -
Deus, para mim, é um mistério, felizmente. Um mistério para o qual procuramos
uma metáfora, como Deus, Jeová, Tupã etc. O homem precisa nomear as coisas,
dar nomes a ela, se não ele bate com a cabeça na parede. A necessidade de dar
nomes, de criar palavras, é também visceral, humaníssima. É uma necessidade
do homem. Aproveito para contar que este poema Abracadabra eu inventei de uma
lembrança de meu pai. Aprendi a ler numa folha de cartolina, onde meu pai
colocou o abecedário. As letras consoantes e as vogais. Umas pretas, outras
vermelhas. Assim, fui aprendendo a silabar, a criar palavras. Quando fui para
a escola, já sabia ler. Foi com a lembrança disto que criei o poema. Descobri
a palavra abracadabra, com a sua profusão de “As”, no mesmo lugar. Eu só fiz
puxar os As que ela tem. Eles já tinham um ritmo, uma medida. E fui afinando
as linhas com os As e botei um A, vermelho, no centro. E vi, como Deus, que
aquilo era bom. Que era ótimo. Eu tinha criado algo, assim como a
possibilidade de inventar uma mentira sobre minha criação. Fiz o poema como
homenagem ao meu pai, ao meu criador, que me ensinou a ler. E respeito muito
a memória de meu pai, por isto, até hoje.
OC -
Max, na primeira conversa que tivemos você nos presenteou com uma muito bem
elaborada descrição de como você faz um poema. Você nos disse: “Consigo fazer
um poema com um dizer que é direto, num esconde-mostra, com palavras que não
escolho antecipadamente”. Vamos começar pelo esconde-mostra e pela escolha
não antecipada.
MM -
Eu embaralho tudo e tiro palavras que estão dentro da palavra escolhida.
Começo a olhar, a ver visualmente a palavra, de frente, de lado, de costas,
para verificar o que ela pode dar. E aí começo a traçar uma rede que não é de
embalar, mas me embala a ideia.
OC -
Você continuou, em sua descrição: “As palavras vão surgindo da experiência de
vida, da experiência de convivência com outros homens, da experiência de
lidar com as palavras, da experiência de lidar com a tradição poética”.
MM -
Puxa vida! Eu não tenho hoje, a facilidade para fazer esta descrição que tive
naquela ocasião. Conviver com as palavras, viver com as palavras é também dar
a sua vida às palavras. Fingir que as palavras vivem. E aí começa a crescer
aquela rede. As palavras se trançam e transam, também. Entra o erotismo. As
palavras criam um tecido de ideias, de sons etc. Como, agora, está ocorrendo,
quando vou dar sequência a estas ideias. Neste instante, vou ter de inventar ideias.
Continuando, portanto: as palavras criam uma rede, como a que nos embala na
infância e como a que nos enterra, também. É uma rede que lembra a vida, mas
lembra a morte, também. E ai de quem se lembrando da vida, não se lembre da
morte! A ideia da morte, de sobrevivência do homem, está escondida. O homem
não quer nem se lembrar dela, mas, ao não querer lembrar, ele está lembrando.
Eu, com setenta e quatro anos, sou obrigado a pensar sempre na morte. Minha filha
diz: “Papai, não pense na morte”. Mas estou vivo, então, tenho de pensar na
morte. Há esta curiosidade na poesia, esta curiosidade humana desperta e,
também, noturna, escura, de auto enganação. Daí porque as palavras amam a
sombra. Por isto, também, todo poeta tem de ser difícil, por causa desta
obscuridade. Eu, agora, me perdi, como naquele meu poema Viagem, feito para a
maconha. Eu falava nela, sem falar a palavra maconha. Dizia: “O rio
desapareceu. Ou me perdi”. Estou sendo obscuro.
OC -
Você não se perdeu. O que está dizendo é algo que você vem repetindo, há
algum tempo. Lembramos que já ouvimos você dizer que odeia o virtuosismo.
MM -
Abomino a coisa certinha.
OC -
Você nos disse que odeia o que faz com facilidade, por já o fazer, há muito tempo.
Afirmou, em nossa conversa, há sete anos: “O que amo e adoro são os caminhos
tortos. É a mancha, o riscado, o homem com as suas limitações e erros. Quando
eu faço algo e pelo tempo e pela constância com que eu o faço sou levado a
uma facilidade em fazer, tenho consciência de que devo mudar para não me
tornar um virtuoso”. Não é aí que entra a sua atração pelas coisas tortas?
MM -
Eu adoro as manchas. Tenho uns diários que eu ilustro com palavras escolhidas
ao acaso, com desenhos e colagens. Nunca aprendi a desenhar, nem a pintar,
mas gosto das minhas manchas. Desenho umas calungas de diferentes cores e
parto do erro, da coisa errada para ver o que ela diz à minha sensibilidade,
à minha rede nervosa. Por causa do erro tenho, então, de pensar em outras
coisas e vou criando. As coisas tortas têm mais a me dizer do que as coisas
certíssimas que, a cada passo, nos entediam, nos aborrecem, nos enjoam. Eu
quero que, a cada passo, um soco na minha cara me desperte. Esta é uma imagem
zen. Os mestres zens chegam a esbofetear os discípulos para despertá-los para
a iluminação, o nirvana. Eu me perdi, de novo. Ainda bem.
OC -
Nesta nossa conversa de agora você também já falou de seu público,
ligeiramente. Mas, na vez anterior, você disse: “Escrevo para o meu bem, como
se fosse para mim. Mas escrevendo para mim, procuro seduzir o outro. Procuro
dotar minhas palavras de altas voltagens”. O que são as altas voltagens?
MM -
Vou ter de inventar a minha resposta, agora. Alta voltagem é o som, o seu
significado perfeito dentro da língua, mas que possa ser também trocado,
truncado, para obrigar o leitor a bater a cabeça e a criar, como pode fazer
um soco na cara, que é violento, mas pode despertar para a claridade uma ideia.
OC -
Portanto, você não se interessa em atender ao chamado gosto médio do leitor.
MM -
Nunca penso no gosto médio do leitor. Penso no leitor ocasional. Há um
leitor? Deve haver. Então, ele vai fruir da coisa boa, bonita, que eu disse.
Mas pode não usufruir. Acredito que encontrarei um leitor até na China,
falando chinês. Como? Não sei. Mas vale a metáfora. Uma pessoa analfabeta
pode se sensibilizar ouvindo uma pessoa ler um poema, numa tradução. Isto
depende da possibilidade de o tradutor ter a capacidade de inventar, de ser
original.
OC -
Com relação a seu público, você disse também: “Eu não escrevo para uma cara.
Escrevo para o ser humano”.
MM -
Por exemplo, havia um poeta inglês que escrevia num gabinete, diante de uma
lareira, para si mesmo. Mas, estava escrevendo, de fato, para uma multidão.
Já Maiakovski lia os seus poemas para uma multidão reunida num ginásio.
Porém, tanto o inglês, como o russo, estavam falando para um indivíduo só,
para o coração do homem que estava ouvindo-os. Afinal, uma multidão é formada
de indivíduos. Então, este é o público que se pode ter. Fala-se sempre para
este universo que é um homem, com coração, fígado, estômago, braços, alguém
capaz de se sensibilizar.
OC -
Naquela entrevista nós não perguntamos a você, mas vamos perguntar agora, o
seguinte: o seu compromisso com a universalidade da linguagem poética pode
ficar ameaçado se você se sentir obrigado a desenvolver um sentimento de
compromisso também com a região amazônica?
MM -
Uma vez me perguntaram por que eu não escrevia sobre a Amazônia.
OC -
Na verdade você escreve. Há um poema seu sobre o Ver-o-Peso.
MM -
Há outro sobre Muaná. Mas, desconheço isto para fazer valer a seguinte
resposta: eu não escrevo sobre a Amazônia. A Amazônia é que me escreve. Isto
é complicado e não tem lógica, mas um poeta não pode andar atrás da Lógica.
Fica aí a questão, a coisa vaga. O poeta é vago.
OC -
Nós tínhamos incluído um item sobre erotismo em sua obra na pauta desta nossa
conversa porque na anterior você havia dito: “Não se trata de um erotismo que
resulta do significado das palavras. É acasalamento, cópula de uma palavra
com outra, de uma imagem com outra”. Mas você já falou disto. Então, nós
queríamos que você contasse aquela sua experiência de tentar escrever um
poema erótico com a poetisa Olga Savary.
MM -
Pensei em fazer um poema místico oriental com a Olga Savary porque ela tem um
livro de poemas eróticos. Os meus poemas iriam ter um acasalamento com os
dela. Comecei pelo fim, com a palavra mística budista om, que significa
revelação, congraçamento. A palavra, no fim do poema, ficaria num círculo
composto por um “o” e por um “m” que se completavam. Mas perdi a vontade.
Conversei com a Olga e não tive coragem de apresentar a ela a minha ideia do
poema. Cheguei a escrever uma carta, há muitos anos, quando tive esta ideia,
mas acabei não a mandando e o poema murchou.
OC -
Você está se sentindo cansado, neste momento, Max?
MM -
Um pouco. Vou tomar um copo de água. Mas queria dizer que minha poesia tem
muito a ver com o dadaísmo, com suas brincadeiras, com a linguagem do
tatibitate. Tem a ver também com o surrealismo. Gosto de tudo o que é
poético.
OC -
Max, por fim, queríamos pedir que você nos falasse mais de suas colagens.
Qual é a história delas?
MM -
Comecei a montar, a colar, recortando, a princípio, com tesoura, depois,
rasgando, para obter contornos eriçados. Isto há muitos anos. Hoje, acho
aquelas colagens muito bonitinhas. Embora sejam dadaístas, surrealistas,
estão muito de acordo com o figurino semântico, poético. E, por serem
perfeitas demais, me incomodavam. Hoje, minhas colagens são muito diferentes.
São menos certas, mais erradas. Nunca são certas, mas eu gosto delas.
OC -
Você já chegou a expô-las?
MM -
Já houve uma exposição delas em São Bernardo, São Paulo. E recentemente elas
foram expostas em várias universidades norte-americanas, levadas pelo Jim
Bogan, um poeta norte-americano que visita muito Belém. Ele se entusiasmou
pelas colagens, tirou cópias coloridas das páginas do meu diário e as expôs,
junto com poemas meus. Mas... Minha memória não é fogo.
OC -
Você estava dizendo que suas colagens já não são tão certinhas, hoje.
MM -
Ah! Com relação aos poemas, Bogan me recomendou que mandasse algum em sua
versão original, com suas rasuras e correções, com as emendas que eu havia
feito nele. Em fingi que mandei um poema original. Falsifiquei emendas e
rasuras. Ele achou ótimo. Poesia também é fingimento, falcatrua, molecagem.
Tudo vale neste jogo maravilhoso que é a poesia.
OC -
Muito obrigado, Max.
MM -
Eu ainda queria dizer que sou um autodidata, mas que estudei e continuo
estudando, lendo. Na minha geração, nós tínhamos a obrigação de nos
apresentar com textos bem feitos, com bons trabalhos. Um reflexo desta
geração era a perfeição. E eu sujei a perfeição. Por isto, aceito, em vez de
homenagem, um soco zen-budista na cara, que me alerte, me desperte.
OC -
Mas nós queremos homenageá-lo entregando rosas a você, rosas que você já
disse serem dádivas.
MM -
Isto me lembra uma frase de um artista plástico. Ele disse: “Deixem crescer
as flores”. Ele fez este apelo veemente, contido só nesta frase. E eu
escrevi, usando a frase e pensando em minha própria morte: “Deixem falar as
flores nesta árvore” E desenhei a imagem de uma árvore já morta, e, escrevi:
“Neste dia, neste dia”.
OC -
Tudo bem, Max, mas nós não estamos dando as flores por pensarmos em morte,
neste instante. Ao contrário, queremos apenas celebrar o prazer que a sua
presença, hoje, entre nós, nos traz, numa manifestação de gratidão a você e à
vida.
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Imagem:
Joseph Beuys, Iphigenie/Titus Andronicus, 1985
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009
A AVENTURA
Eu te
encontrei
Como
quem atravessa um corredor longo e de janelas fechadas,
Como
quem vem para a manhã trazendo o sono enfermo das madrugadas.
Eu te
encontrei
Como
quem saiu da noite e foi descalço até o mar para brincar nas pedras.
Como
quem sob a chuva saiu para apanhar as açucenas,
E
dormiu nas grandes folhas úmidas das árvores,
Ou
como quem, perdido nos caminhos, de súbito encontrou o mar.
PAULO
PLÍNIO ABREU, Poesia, UFPA, 1978
Imagem: Francesca Woodman, espaço 2
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
A PALAVRA, OCUPAÇÃO DE RIVAIS [1]
Por que, então Sylvia se matou?
Acredito que seu suicídio tenha sido, em parte, “um pedido de socorro” que saiu pela culatra, com conseqüências fatais. Mas foi também uma última tentativa de exorcizar a morte que tanto evocara em seus poemas.
Já sugeri que talvez existissem duas razões para Sylvia ter começado a escrever obsessivamente sobre a morte.
Em primeiro lugar, ao separar-se do marido, querendo ou não, passara a reviver profunda dor e sensação de perda experimentada em criança quando o pai, com sua morte, parecera abandoná-la. Em segundo lugar, acredito que o acidente de carro do verão anterior a libertara; pagara suas dívidas, qualificando-se como uma sobrevivente, e agora podia escrever sobre o assunto.
No entanto, para o próprio artista a arte não é necessariamente terapêutica; ele não se livra automaticamente de suas fantasias ao expressá-las. Ao contrário, por uma espécie de lógica perversa da criação, o ato da expressão formal pode simplesmente tornar o material trazido à tona mais prontamente disponível para o artista.
O ato de lidar com essas fantasias em seu trabalho pode muito bem fazer com que ele de repente se perceba vivendo-as.
Para o artista, em suma, a natureza muitas vezes imita a arte. Ou, para mudar de clichê, quando um artista aponta um espelho para a natureza, ele descobre quem, e o que, ele é; mas essa descoberta pode modificá-lo irremediavelmente, a ponto de ele se tornar essa imagem.
Acho que Sylvia, de uma forma ou de outra, sentiu isso.
Numa nota introdutória que escreveu para “Daddy”, para o programa da BBC, ela diz, a respeito da narradora do poema: “Ela tem de encenar mais uma vez a terrível pequena alegoria antes de ver-se livre dela”.
A alegoria em questão era, da forma como Sylvia a entendia, a luta travada dentro dela entre um imaginário pai nazista e uma mãe judia. Mas talvez fosse uma fantasia de carregar dentro dela o pai morto, como uma mulher possuída por um demônio (no poema, ela chega mesmo a chamá-la de vampiro). Para que ela possa ver-se livre dele, o pai tem de ser libertado como uma espécie de gênio da lâmpada. E era exatamente isso que os poemas faziam: corporificavam a morte que existia dentro dela. Mas também o faziam de forma extraordinariamente vívida e criativa. Quanto mais ela escrevia sobre a morte, mais forte e fértil seu mundo criativo se tornava. E isso lhe dava todos os motivos para querer viver.
Acho que, no fundo, o que ela queria era encerrar o tema de uma vez por todas, mas a única maneira que encontrou para fazê-lo foi “encenando mais uma vez a terrível pequena alegoria”. Ela sempre tivera um certo espírito de jogador, estava habituada a correr riscos.
A força de sua poesia devia-se em parte à maneira corajosa como teimava em seguir o fio de sua inspiração até a toca do minotauro. E essa coragem psíquica tinha seu paralelo em sua petulância física e imprudência. Riscos não a atormentavam; ao contrário, ela os achava estimulantes.
Freud escreveu: “A vida perde interesse quando a ficha mais alta no jogo da vida, a própria vida, não pode ser posta em risco”. No final Sylvia decidiu correr esse risco. Jogou pela última vez, tendo calculado que a sorte estaria a seu favor, mas talvez em sua depressão, sem importar-se muito com o fato de vir a ganhar ou perder.
Seus cálculos estavam errados, ela perdeu.
Foi um erro, portanto, e a partir dele todo um mito se criou.
Um mito que, imagino, não seria muito do agrado de Sylvia, já que é um mito do poeta como vítima sacrificial, ofertando-se em benefício de sua arte, tendo sido arrastado pelas Musas até aquele derradeiro altar, passando por todos os tipos de aflição.
De acordo com essa lógica, seu suicídio se transforma na razão de ser de toda a história, o ato que valida seus poemas e lhes confere interesse, e que atestam sua própria seriedade.
Assim as pessoas são atraídas para a sua obra num espírito muito semelhante àquele que levou a Time a fazer uma longa matéria sobre ela: não pela poesia, mas por um certo “interesse humano” extraliterário, também conhecido como bisbilhotice. No entanto não só o suicídio não acrescenta absolutamente nada à poesia em si, como o mito de Sylvia como vítima passiva é uma total distorção da mulher que ela foi. Ele deixa de fora por completo sua vivacidade, seu apetite intelectual e humor impiedoso, seus extraordinários recursos criativos, intensidades de sentimentos, seu controle.
Acima de tudo, deixa de fora a coragem com que ela conseguiu transformar desgraça em arte. O lamentável não é que exista um mito em torno de Sylvia Plath, mas, sim, que esse mito não seja simplesmente o de uma poetisa tremendamente talentosa que morreu cedo demais, por erro e imprudência.
Eu costumava considerar sua alegria uma fachada, como se ela fosse capaz, de maneira um tanto esquizóide, de virar as costas para o seu sofrimento a bem das aparências e fingia que ele não existia. Mas talvez, também, conseguisse manter sua infelicidade sob controle porque podia escrever sobre ela, porque sabia que estava salvaguardando de todos aqueles terrores algo maravilhoso.
O fim veio quando ela sentiu que não podia mais suportar o tema. Tinha esgotado o assunto, e estava pronta para algo novo.
“O jorro de sangue é poesia,
Não há como estancar.”
A única maneira que ela conseguiu para estancá-lo, estando a essa altura com a visão já toldada pela depressão e o mal estar físico, foi apostando aquela última ficha. Tendo então, como imaginava, providenciado um salvamento, deitou-se diante do forno ligado quase esperançosamente, quase com alívio, como se estivesse dizendo: “Talvez isso me liberte”.
A. ALVAREZ. “O Deus Selvagem – Um Estudo do Suicídio”, Companhia das Letras, 1999, Tradução Sonia Moreira
ESPELHO
Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.
Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.
Sylvia Plath
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes & Maurício A. Arruda
sábado, 21 de fevereiro de 2009
A MORTE É INDESTRUTÍVEL
Acabava-se de morrer minha morte
Hélène Cixous
Há dez dias morria em Belém do Pará o poeta Max Martins.
Deixou uma poesia maior do que nós e ele próprio talvez percebesse. Exigia-se muito, o máximo, mas jamais a perfeição. Como ele mesmo disse: “Eu sujei a perfeição”.
Rivalizava-se com a palavra, aspirava uma obra em que os pontos de
tensão se multiplicavam e distendiam de um livro a outro. O zen era uma fraude.
O zen era uma farsa. Sua escrita se movimentava num espaço de violência ativa,
de combate e ruína. Max vivia e pensava a linguagem. Relação incomensurável com
a poesia permanentemente renovada pela experimentação que nos deu a alegria de
dois livros geniais, incomuns, de quem jamais cedeu e só assim pôde realizar
seus grandes feitos - O risco subscrito (1980) e Caminho
de Marahu (1983).
Livros que são mais poesia do que pode conter a amesquinhada biblioteca de toda
literatura paraense.
Max não era o poeta de um lugar. O lugar permanece inconfessável.
Max escreve num trânsito de memória, delírio, esquecimento.
O que lhe nega a língua, o mutismo das representações e da
intimidade. O silêncio de quem nada tem a confessar, nem seu léxico a revelar.
Seu texto é sempre Outro. Nômade. Sem rosto nem pertences. Há, claro, ramificações
e revezamentos diversos e intensos. Dos mais antigos: Walt Whitman, Carlos Drummond, Murilo Mendes, Paulo Plínio Abreu, Mário Faustino, Robert
Stock, aos mais
recentes: Ingeborg Bachmann, Thomas
Bernhard, Edmond Jabès.
Max apartava-se do testemunho documental. Não queria ser o poeta
das pequenas histórias ou das grandes tiradas do momento na sala de festas da
oficialidade local. Nem procurou escapar pela saída de emergência dos contos nem das
crônicas nem do jornalismo. Foi poeta apenas. Poeta da palavra com as consequências
e implicações tremendas.
Fez a sua escolha de poeta e manteve até o fim os caminhos de sua
aposta. Uma aposta pela grande poesia. E lançou sorte à sua morte. E viveu sem concessão o seu delírio.
Ney Ferraz Paiva 20.02.2009
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
Para que não se vá a vida ainda
Internado
há seis meses em um hospital de Belém, o poeta Max Martins, 82 anos, enfrenta
seus dias finais. Ainda em dezembro sofreu uma parada cardíaca que durou
trinta minutos, mas surpreendentemente seu coração voltou a bater. Por ele
mesmo, pelos amigos, pela palavra – esta última sempre foi a sua grande opção: “Em primeiro
lugar, eu quis ser poeta. Mas eu sabia que isto poderia me custar muito. Perdi
os dentes, perdi o bonde, perdi uma maneira de ganhar dinheiro, de vencer na
vida. Me dediquei só à poesia. O resto eu transformei em calo seco para que não
doesse tanto”. Sob os efeitos da palavra Max apreendeu esta fala de fluxos
errantes em todos os sentidos e direções. Entre 1952 e 2002 foram quinze livros de
intensidade livre, aberta – partículas loucas, inesperadas, sem estratificações.
Seleta
- Max Martins
***
***
Estanho
Não
entenderás o meu dialeto
nem
compreenderás os meus costumes.
Mas
ouvirei sempre as tuas canções
e
todas as noites procurarás meu corpo.
Terei
as carícias dos teus seios brancos.
Iremos
amiúde ver o mar.
Muito
te beijarei
e
não me amarás como estrangeiro.
[do livro O Estranho, Belém, 1952]
1926/1959
Já
então é tudo pedra
os
dias, os desenganos.
Rios
secaram neste rosto, casca
de
barro, areia causticante.
E
onde outrora o mar
– os
olhos – búzios esburacados.
E
tudo é duro e seco e oco,
o
sexo enlouquecido
o
osso agudo
coberto
de pó e de silêncios.
Havia
uma ferida, a primavera
que
já não arde nem desfibra – seca
a
flor amarela escura
anêmica
impura
–
rato no deserto
caveira
de pássaro
exposta
na planura
[do
livro Anti-Retrato, Belém, 1960]
Koan
A pá
nas minhas mãos vazias
Não
a pá de ser
mas
a de estar, sendo pá
lavra
no vento
nuvem-poema
arco
busco-te-em-mim
dentro dum lago
max
eKOÃdo
e a
face esgarça-se verdemusgo
muda
(Quem
com ferro fere
o
canto-chão
infere
o
silen
cioso
poço?)
pá!
Cavo
esta terra – busco num fosso
FODO-A
agudo
osso
oco
flauta
de barro
sôo?
Silentes
os sulcos se fecham
espelhos
turvam-se
e
cavo sou
a pá
nas minhas mãos vazias
[do
livro H’era, Rio de Janeiro,
Labor, 1971]
Enterro
dos Ossos
Outrora
eu te escrevia oásis
Raso
fosso de vozes
entre
parênteses
(eu-tu)
tu)
(eu
nós
palavras
de
febre e areia
ex-caldo
do
vosso ventre
fruto
frustro
num X
pendente:
ISTO
É MEU CORPO
delito
escrito
e escarrado
parido
da
mão solitária
Mister-mistério
(o acaso) eu te escrevia
transcrevia
do
princípio ao fim o avesso nome
alpha
de alar
phalar
e te
seguir
as’ir
seta
perdida
atrás
do alvo (negro eu) Céu cego-vazio
Ou
Outrora
escrita-pista para o pouso
(ânsia
no vôo
em
vão
no
ar senil)
ousava
usava
falaz-faminto
o
louco lábio
errava
E
ilhas não há
senão
álibis sibilinos sub-líneos
Uns
pássaros sujos
as’peados
Hoje
te desescrevo
libidinoso
grito: Cavo o silêncio
e
enterro os ossos
órficos
(e
este vício)
no
poente
ó
asa
as
a
[do
livro O risco subscrito, Belém,
1980]
***
Este
que é o sudário. A teia
em
que me escrevo e me alivia
do
sangue adiante na sua cólera
este
é meu céu. Numa bandeira turva
a
palavra sobrevoada por astros –
constelações
de minha vida, uma jura
adorada
no silêncio
–
eis-me
em
linho corrompido amordaçando a ilha
amordaçando
a chaga, aliciando a carne
anavalhada,
a lua
negra
na pele – eis
erótico-erosivo,
o ideograma da morte
a
flor da areia
O
nome na escritura, eis
a
palavra, o deserto da página
e o
verso mistério da fé
Eis
o
caminho
o
branco que firo, a letra
o
gueto do signo e suas estrelas
Eis-nos,
em abandono
[do
livro A fala entre parêntesis,
renga com Age de Carvalho, Belém, 1982]
Ayesha
Toco
enfim
no oco
no
ânus sinuoso da beleza
E é
falso
o
Luminoso
o
outro-gozo, o vício da beleza
falsa
a falárica, a fala em riste
a
África em chamas do poema
o
fórum da beleza
Toco
desmoronadamente
n’Ela
a
Feiticeira
[do
livro Caminho de Marahu, Belém,
1983]
Isto
por aquilo
Impossível
não te ofertar:
O
rancor da idade na carga do poema
O
ronco do motor numa garrafa
Ou
isto
(por
aquilo
que
vibrava
dentro
do peito) o coração na boca
atrás
do vidro a cavidade
o
cavo amor roendo
o
seu motor-rancor
–
ruídos
[do
livro 60/35, Belém, 1985]
Saltimbanco
O
não mais espumoso vinho dos abismos
O
cauterizado testemunho de um instante de beleza
O
ritmo do oceano
O
palco
e a
metade da cama para o falso poema
O
saltimbanco
Ou o
sangramento
da
pedra de um deus a cada assalto
O
cadafalso
O
semi destroçado frêmito de um destino de cego de antemão
O
não mais aceito rito do ofício O ofício:
esta
rasura do corpo sendo esquecido
O
esquecimento
O
desabitado segredo das palavras
[do
livro Marahu Poemas, Belém, 1991]
A
hóspede
Tua
mão no freio embaixo, freia.
Detém
tuas coxas
teus
pés
os
passos. Deixa
que
a fruta caia só ao seu tempo.
Cumpre
é que te isoles
(ou
até mesmo fujas)
desta
insolente e sobrevinda jovem
a
hóspede
(para
que teu céu não se envileça
nem
te envelheça o vento
que
vem de cima para baixo, sobre a pele)
Melhor
é que agora obscureças
o
poder dela, o nome dela, estas tuas águas
–
águas trementes
[do
livro Para ter onde ir, São
Paulo, 2002]
Marahu:
primeira relação
2
formigas – operárias
ápteras
ou
novatas, não
de
fogo mas
noturnas,
doces
1
grilo
(depois
aprisionado
pela
aranha, morto
ao
amanhecer)
O
canto dum galo
e
outro galo
A
saracura. A tarde
2
gaviões molhados
encolhidos
no pau da árvore
pensos
Garças
Sobre
as pedras
negras
da praia
Os
urubus
o
boto morto
um
cão medroso, sapos
sapos
sapos
1
goteira
sapos
chuva
o
sol
vindo
do mato
às 7
da
manhã
A
noite
a
escuridão o vento as velas
de
Lao-tsé
Thoreau
E o
meu cajado de bambu rachado
o
chão
folhas
úmidas
[do
livro Colmando a lacuna, Belém,
2001]
Imagem:
Paulo Ponte Souza
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