o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)
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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

‎3 poemas: ALBERTO DA CUNHA MELO
– mirando o mar e altas distâncias
numa luneta de escoteiro –

POEMAS


Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.


(Poetas da Rua do Imperador, 1986)


DESCOBERTAS


A floresta tem
todos os bichos,
todas as madeiras,
todas as borboletas,
rios gordos, rios magros,
igarapés
e índios tão santos
que não querem o céu;
tudo tem a floresta,
mas penso no teu corpo
e sua mata diminuta,
que uma só borboleta
poderia cobrir.


(Clau, 1992)


CASA VAZIA


Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,


para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,


uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.


(Meditação sob os Lajedos, 2002)
imagem: Nicholas Hughes

sábado, 30 de julho de 2011




AMY MORTA POR WILLIAM BURROUGHS?
Amy Winehouse a vítima de um jogo entre bêbados que acabou mal

O esforço de explicar um vício, conferir-lhe um lugar na economia do ego, talvez seja sempre uma empresa voltada ao fracasso.
J. M. Coetzee sobre William Faulkner


Amy Winehouse poderia ter sido personagem de Beckett, diga-se: uma personagem bem mais decidida, até mesmo para a morte. "Logo ela estará bem morta, apesar de tudo". Mil sinaizinhos indicam. O que Malone (Malone morre, Beckett) tenta prorrogar de uma data a outra, Amy sabe de antemão que muitas festas vão ter que passar sem ela. E não exatamente as festas de são João Batista, do 14 de julho ou da liberdade. Sequer as da transfiguração e assunção. Amy fez todo esforço para ausentar-se. Amy não tava nem aí pra coisas como sucesso e fama. Fez gato-sapato, desdenhou do fato de a terem reduzido a uma celebridade, quando queria ter feito muito, muito mais com a música. Porém tudo foi truncado, deixado distante da personagem que poderia ser – não a que foi assomada pelo pitoresco que a mídia se põe a exibir. É foda, mas é sempre isso. Poderia morrer hoje, ontem ou amanhã. Nenhum espanto mais seria cabível. O serviço sujo está feito. E Amy, por seu turno, se esforçou, precipitou as coisas. Tudo a ver com Basquiat, pensei de imediato quando soube. Ter que decidir por si mesmo. Não ficar neutro e inerte num ambiente de irradiações falsas, negativas, de incompleta atrofia do sensível. Não se pode dizer que ainda role segredos sobre os primeiros e os últimos passos no universo pop. Tudo acontece em um terreno comum, onde a escória circula livremente: traficantes, prostitutas, bajuladores, proxenetas, falastrões, jornalistas de aluguel e similares. De fora e por fora, o grande público espectador assiste, consome e comunga. Pode durar anos e render muito. Como Willian Faulkner, a vida inteira um alcoólatra agudo e crônico. Pode durar pouco e render muito mais ainda. Num ímpeto de impaciência antecipar o fim. Nos dois casos, a saída como de uma regra alternativa: exagerar, extravasar, passar da conta em tudo. Ser o primeiro a se livrar de entusiasmo e motivação. Todos olhando o astro se desintegrar. decidir por si mesmo... a menos que um outro William, o Burroughs resolva a parada a seu modo: entre na história e aperte o gatilho.


Ney Ferraz Paiva
Imagem: "The Only Good Rock Star is a Dead Rock Star"
Amy Winehouse "shot" by William Burroughs instalation, by Marco Perego. Half Gallery, New York City.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

     
O Livro do Desassossego por Bernardo Soares, (semi-)heterônimo de Fernando Pessoa, pode ser descarregado clicando no seguinte endereço: 



O narrador principal (mas não exclusivo) das centenas de fragmentos que compõem este livro é o "semi-heterônimo" Bernardo Soares. Ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, ele escreve sem encadeamento narrativo claro, sem fatos propriamente ditos e sem uma noção de tempo definida. Ainda assim, foi nesta obra que Fernando Pessoa mais se aproximou do gênero romance. Os temas não deixam de ser adequados a um diário íntimo: a elucidação de estados psíquicos, a descrição das coisas, através dos efeitos que elas exercem sobre a mente, reflexões e devaneios sobre a paixão, a moral, o conhecimento. "Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo", escreve o narrador. Seu tom é sempre o de uma intimidade que não encontrará nunca o ponto de repouso.

 «Assim como lavamos o corpo devemos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa – não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.»

quinta-feira, 24 de março de 2011


talvez com um vestido azul
com bolas brancas
chegaste enfeitiçada senhora
a esta estranha cidade
destinada a não ser porto nem metrópole
em sujas & desleixadas ruas numa tarde
[ou já seria noite] nos assombraram senhora teus lábios
entre as coabitações da lua ou numa tarde chuvosa
lábios tão secos velhos caminhos de pedras portuguesas
sem dizer palavra chegaste cidade de onde tudo levam as 
águas enfeitiçada senhora saltavas de teus livros
valise de cronópio ao lado

talvez com um vestido azul
com bolas brancas
passageira das estrelas chegaste
onde tudo as águas levam embora entre as coabitações da
lua ou numa tarde chuvosa saltavas de teus livros
lábios tão secos sem dizer palavra valise de cronópio ao lado
em sujas & desleixadas ruas numa tarde
[ou já seria noite?] partilhavas tua beleza
ferida que não fecha
precária & preciosa

ney ferraz paiva, do livro nave do nada, 2004.

quinta-feira, 17 de março de 2011


palavra é crueldade


ó vida triste vida
se eu casasse com a filha
da minha lavadeira
dava na mesma



ney ferraz paiva, do livro não era suicídio sobre a relva

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011



m/m



vi teu novo livro
o velho rei ri uma outra vez
oracular & tipográfico
sol de mil línguas
sal do mar morto
palavras que se encaixam pra ser ouvidas longe
amalgamada infatigável enfurecida fonte
baforadas do velho credor
na rede em que lê-escreve ressoando
te roendo
bebe agora a primeira dose do dia -
à vossa saúde




ney ferraz paiva, do livro val-de-cães
imagem: marcia huber 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Orquestrar o Rio de Janeiro



O que significa uma equipe de reportagem desembarcar no Alemão junto com a polícia? Como se dá tal encontro ou incorporação? Com que fim? Este encadeamento de perguntas não comporta na verdade a complexidade que parece enfatizar. Ele escamoteia e embota ainda mais os fatos e o raciocínio. Em meio a tantos jargões (“demonstração de força”, “recuperar o controle”, “ocupar território”) e por causa de um deles, justamente o que mais escapa ao discurso militar, talvez seja preferível pensar que a Vila Cruzeiro tenha sido apenas o ensaio de um grande concerto que se daria horas depois. O lugar se tornou simbólico desde que um orquestrante foi morto ali durante uma incursão pessoal. Agora a maior apresentação de todos os tempos aconteceria no Alemão. Em mais uma sensacional cobertura da grande mídia a cidade toda veria e escutaria. Os moradores nervosos, aflitos. O suor escorrendo sem tempo para secar a testa. Nos cômodos sombrios, quantos esperariam, em silêncio? Logo iria começar. A operação, muito bem "orquestrada", estava sendo anunciada como a continuação final de “Tropa de Elite 2”. Dessa vez a sensação de justiça não poderia ser menor do que antes. Com a possibilidade dos criminosos serem aniquilados para sempre, todos deviam estar sentindo o mundo vibrar na mão. Apenas a orquestra não movia um só músculo. Tem de ser agora. Dias depois as chuvas ocupariam a cena. Até aqui ninguém podia dizer quando chegaria o temporal, mas ele viria, tão certo como os campos floridos da primavera, ele sempre vem. Enquanto isso, no Alemão, todos esquadrinhavam. Antes do entardecer a orquestra já deveria ter acabado sua apresentação. E a vida estaria desbloqueada. Na penumbra do quarto ou na densa dureza das ruas, todos eram obrigados a esperar. Impossível calcular o tempo entre um e outro relâmpago. Aquele primeiro ao menos esvoejaria imprecisa esperança. Quinze dias, um mês depois o outro. A chuva a se esticar sobre a terra. A terra movendo-se no ritmo da morte. Os comentaristas não estabeleceriam nenhuma conexão entre os fatos. Ainda que a cobertura da ocupação se estendesse pelos dias e em todas as direções. Coisas assim é bom que irrompam de repente, entrecortadas, adversas. “Fatos isolados”. É o que todo repórter e todo político relincha. Limitados pela zona de luz de tamanha sensatez. Uma ou outra vibração quase sempre repetida toma lugar da indignação. Que esta foi a última vez; que a partir de agora tudo vai melhorar; que estamos no caminho certo... O Estado democrático e suas legitimidades. Com ele uma coisa ruim até pode terminar, mas em seguida outra está começando, inevitável. Quem poderia saber das chuvas, enchentes e deslizamentos de verão? Todos pegos pela novidade e pelo ineditismo próprio das estações. Ninguém a se responsabilizar, pelo tanto que se revestem dos discursos morais – que cortariam a mão antes de pegar a propina não fosse essa uma prática “normal”. Como ainda o Rio de Janeiro pode ser afastado de tamanha pobreza? Com paredes “acústicas”? O Rio de Janeiro surpreendentemente tão empobrecido quanto o mais longínquo município do norte do Brasil. Em sua infraestrutura sim, mas também em seu espírito. Na dissimulação afetada dos dirigentes, que forjam uma cidade de exacerbada desigualdade como jamais foi – sem que esta seja mais uma interminável frase nostálgica, que tenta impor o prestígio de outros tempos. A frase suscita as diferenças sociais, os conflitos pessoais, os concentrados privilégios. E é esta cidade apequenada, desorquestrada do futuro, que se inclina ora para aplaudir ora para lamentar os repetidos consertos de dramáticas possibilidades.


Ney Ferraz Paiva, jan 2011
imagem: Andy Warhol 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Teatro-leitura
será que hoje o que ainda não sei que nome tem vai irromper e arrebatar, será?
João Gilbeto Noll, Harmada
Santiago do Chile, 1973 não é texto de dramaturgo, sequer de encenador ou homem de teatro – trata-se de um conto do escritor e filósofo André Queiroz, que o “Grupo de Dois” encena o labirinto inexaurível de leitura, sem que o fato de ir ao teatro corresponda a ir à biblioteca retirar um livro. Leitura como jogo interativo e explícito pra desorganizar as formas de expressão de um teatro que não leva em conta as sociedades da era digital, que mais faz palestra do que encena, mais refugia do que lança ao inferno, e depois de um mês em cartaz está fora do prazo de validade – por não ter como criar outra coisa à parte a essa máquina de encenar estática e sempre confiante nos Manuais de instrução. O texto “pra teatro” não é mais o ponto propulsor do ato cênico. Há outro ar em torno dele, nem do campo nem da cidade, que mesmo Brecht e Müller não souberam precisar, mas aí sufocaram antigos maneirismos e elementos. Santiago é o êxtase do deserto. A sufocação fica gravada em nossas feições. De um percurso árido. De vários patamares de tempo-espaço, sucessivos cortes, zonas e entradas. O ar fica especialmente abafado. O público chega, toma assento, “circula” nos domínios coletivos de uma escrita que avança par a par com a estranha órbita dos discursos de dor como resultado do mal que cada um pode fazer ao outro. Isto tanto pode estar em Rei Lear, de William Shakespeare, quanto nos textos-poemas pra vozes de João Cabral de Melo Neto (dentre eles Morte e Vida Severina, com que infelizmente seus encenadores ainda almejam alcançar uma eficácia social pra palavra encenada, sem que tal aspecto jamais tenha sido uma lei de funcionamento do texto). A questão por inteiro é que mesmo em seus poemas João Cabral encena a palavra que não pretende fingir nada – a forma pode ser atingida, se romper, mas a Palavra tem que permanecer intacta seja qual for o enredo. Santiago continua sendo um teatro da palavra que perpassa por essas linhas e se prorroga em suas nuances infinitas. Palavra dita por vezes em minucioso silêncio ou a plenos pulmões, gritos-sopros que não recorrem à metáfora pra ativar ali na sala quase escura um enredo que nos humanize ou dê consciência (sempre muito de acordo com o incentivo comercial dos patrocinadores). Seu encenador e também ator Tiago Fortes é quem nos dá essa versão alterada dos Manuais ao mudar as linhas de ataque destas “anotações” de dor. Menos até como teatro e mais, muito mais, como experimentação de estados de invenção, de sons e imagens desterritorializados – ondas de memória e lapsos que vão se alternando e variando em camadas sucessivas de vozes, como rasgos na pele em que se tenta remendar o que há anos ou há pouquinho se passou bem ali na tela onde se projetam as fadigas e os ultrajes do corpo, intensificando sempre o fato de que a protagonista não merece aquilo. Se por um lado o sofrimento dela não pode ficar encoberto, sequer os danos a sua vulnerabilidade, por outro lado, não se pode presumir daí algum reembolso, mesmo a vingança. O clímax aqui não traz a resolução do conflito. Talvez mesmo ele não exista de modo clássico e esteja presente como uma espécie de litígio pelo fato de que tudo aqui avança pra se constituir como “anotações” não só do que a protagonista sabia e vivia, mas do que todos sabem, ainda que dentro de cada um nada pareça despertar. A “leitura” de Tiago Fortes  da narrativa de André Queiroz é de que não há o Segredo. Todos sabem. Está diante dos olhos e mesmo se pode sentir na própria carne, metido aí como uma espécie de morte, extraordinariamente condensado. Seria este o elemento que faltava detectar? Ação a que se tem que recorrer pra se completar este jogo suspeito? Lembrar de lembrar o que se sabe?

ney ferraz paiva
salgueiro - pe outubro 2010 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

CELEBRAÇÃO DAS MARÉS
Alexandre Bonafim
I
Um risco de veleiros em fuga
sempre foi o teu nome.
Arquipélagos de incandescentes pássaros
os teus olhos. Os frutos do sal,
a íris do sol na filigrana das águas,
os cardumes do outono, clamam em teus pulsos
a presença de um fogo vivo,
cicatriz de um oceano em fúria.


Sempre foi o teu nome as marés.
Em cada palavra do teu ser,
navegam barcos de pólen,
peixes de constelações ardentes.
Em cada silêncio dos teus gestos,
nasce o azul dos cavalos marinhos,
movimento dos remos singrando o mistério.


O teu nome sempre foi os promontórios,
as ilhas desvairadas pelo verão.
Sobre tua nudez repousam
a brancura das velas infladas,
a plena luminosidade do meio-dia.


Em teu destino os corais tramaram
a encantação das estrelas marinhas,
a memória dos búzios.
Essa é a convocação das marés:
fazer do teu rosto o destino das ondas,
a areia desfeita nas orlas.


No teu nome o sono das crianças
apascentou a cólera dos naufrágios.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Orfeu Rebelde



Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do Tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.





Miguel Torga
imagem: Dante Ferraz



Desfecho



Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.





Miguel Torga, Câmara Ardente
imagem: ney ferraz paiva

quinta-feira, 8 de julho de 2010


Caçar em vão

Ás vezes escreve-se a cavalo.
Arrebentando, com toda a carga.
Saltando obstáculos ou não.
Atropelando tudo, passando por cima sem puxar o freio – a galope – no susto, disparado
sobre as pedras, fora da margem feito só de patas, sem cabeça
Nem tempo de ler no pensamento o que corre ou o que empaca:
Sem ter calma e o cálculo de quem colhe e cata feijão.
 
Armando Freitas Filho
imagem: Beuys

terça-feira, 6 de julho de 2010

Se se pudesse somente provar o seu nada,
se se pudesse repousar no seu nada,
e que esse nada não fosse uma certa forma de ser,
mas também não fosse pura e simplesmente a morte.
É tão duro deixar de existir, deixar de estar dentro de alguma coisa.
A verdadeira dor é sentir em si o seu pensamento a deslocar-se.
Mas o pensamento como um ponto não é certamente um sofrimento.
Cheguei a um ponto em que não me agarro já à vida,
mas levo comigo todos os apetites e a titilação insistente do ser.
Já só tenho uma atividade, refazer-me

Antonin Artaud, O Pesa-nervos, tradução Joaquim Afonso
imagem: Graeme Mitchell

segunda-feira, 28 de junho de 2010

o passado segundo emily dickinson

a sorte é ele voltar
à morte
deixar que o enterremos
novamente

sábado, 19 de junho de 2010

OS MORTOS

As covas cada vez mais fundas.
A cada noite os mortos mais mortos.


Sob os olmos e a chuva de folhas,
As covas cada vez mais fundas.


Rajadas escuras de vento
Cobrem a terra. A noite é fria.


Folhas voam contra as pedras.
A cada noite os mortos mais mortos.


Abraça-os a noite sem estrelas.
Seus rostos se apagam.


Não podem lembrá-los
Com suficiente nitidez. Nunca poderemos.









Mark Strand
Imagem: Frank White

quarta-feira, 16 de junho de 2010

lágrimas amargas de rainer werner fassbinder

fazer alguma outra coisa próximo às estrelas
(mas eu não quero que vocês me amem)
fazer alguma outra coisa sob águas profundas
(mas eu não quero que vocês me lembrem)
fazer alguma outra coisa contra o sofrimento
(mas eu não quero que vocês me perdoem)
fazer alguma outra coisa entre o amanhecer & o fim
(mas eu não quero que vocês me tirem das profundezas do silêncio)


o amor
mesmo o mais forte
é mais frio do que a morte
estou a ponto de vomitá-lo da minha boca




ney ferraz paiva

terça-feira, 15 de junho de 2010

MORRER É UMA COISA INDESTRUTÍVEL (manoel de barros)
-INTERRUPÇÃO-

HOMENAGEM A WILSON BUENO HOJE CASA DAS ROSAS 19:30 h - que bom que assim se faça. daqui mando minha homenagem: wilson bueno nos seus 61 anos de vida, bem como nos anos de literatura, foi mais do que uma aparição - alimentou nosso pensamento, ajudou-nos a afrontar um pouco mais o cotidiano, a agitá-lo, a nos pôr em movimento. homem e escritor intenso, inseparáveis - um acontecimento que nenhuma literatura pode dispensar, se dar o luxo de perder - e nós o tivemos, o temos e vamos continuar a ter e a amar.



ney ferraz paiva
















Vi uma foto de Anna Akhmátova
numa oferta de segunda mão
em livraria de terceira
fechando as portas também baratas
em liquidação de quarta despedida
dos leitores de páginas impressas
à tinta das antigas tipografias
condenadas aos museus,
setor dos tipos móveis de Gutemberg
que não mais importa


VI UMA FOTO DE ANNA AKHMÁTOVA, livro do extraordinário escritor FERNANDO MONTEIRO, editado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife,
leia-se: Heloísa Arcoverde de Morais, 2009.
imagem: Kerstens

sábado, 12 de junho de 2010

Náusea Ou é a Morte Que Se Aproxima?

















Rende-te, coração.
Lutamos tempo demais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.
Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.


Eu, por mim, não posso mais.
Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,


Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.

henri michaux “equador”
trad. de ernesto sampaio fenda 1999
imagem: Helena Almeida

quinta-feira, 10 de junho de 2010


Quando soube da notícia da morte de Wilson Bueno, lembrei de ter separado dos meus arquivos duas ou três matérias a seu respeito – eu tinha conversado com o escritor André Queiroz em torno de alguns autores, dentre eles João Gilberto Noll, alguma coisa sobre ter lido e ter gostado de “Harmada”, e durante a conversa, mesmo sem ter mencionado, me veio a lembrança de Bueno, certamente porque seu nome está ligado aos grandes nomes da literatura recente, aqui e alhures. Pensando agora, talvez eu não tenha mencionado o Bueno ao André porque em algum instante de sua obra eu entendesse tratar-se de uma gênese, de um nascimento – de uma narrativa que não se atém ao gênero e se dispersa em tantas direções até o limite indizível e possível. E terá sido este o Wilson Bueno – ferido por uma facada, morto, desaparecido numa noite angulosa de Curitiba? Terá sido? Com uma facada no pescoço? Como se morre assim para além de toda ficção? Onde é que você se coça e... morre...? onde? como? Teria podido ser de outro modo? Há algo que os mortos escondem de nós.
Quase
















Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro
imagem: Andreas