o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Este Mundo


Noite, duro tempo
fechado mas os dias
nascem. A manhã
abre com luz 

na janela.
O sol, agora, escala
O céu azul.
Ao meio-dia

na praia
posso ver
cintilantes ondas,
para sempre,

seguir seus sons
fundos, na mente
ecoam –
deixar a luz

como ar
ser um alívio.
O vento
corta o rosto

e as mãos,
mais frias. O que
se pode pensar –
o mar

miríade de pedras.
Nuvens passam,
cinza do lado de baixo,
branco feixe

de ar, tudo
ar. Água
se move à margem,
azul, verde

branca trama
de espuma.
O que se
perde,

se recobra.
O que importa, a cada um,
neste mundo?




Robert Creeley Tradução Régis Bonvicino
Foto: Skopje, Macedónia © Dragana Jurisic

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

A dança dos fantasmas
Sobre as figuras de Ney Ferraz Paiva
Por Nilson Oliveira


Detetive sem mistério, Ney Ferraz Paiva, colagem, 2017.



As figuras de «Numa gaiola com pombos como Magritte» gravitam em instigante jogo de acoplamento e montagem, num movente espiral, cujas formas oscilam cintilando grafias, imagens, traços, rasgos, numa composição plena de margens e atritos. Por vezes são figuras sobrepondo figuras, constituindo uma vertiginosa poética das disjunções.
Tais figuras/espectros, nessa linha de montagem e desmontagem, irrompem para fora de toda quietação, desordenando identidades, num fluxo de erupções e desassossegos.

São sombras sem sombra, rostos realçados pelo fulgor de uma fenda imprecisa. Por vezes estão sós, acuados entre a desordem da tela e o arco vazio da moldura branca. Mas, por outras, acoplados a coisas, a uma máquina, a um fantasma, ou a outrem, com o riso mais comumremota singularidade. Todos, nesse fundo sem fundo, com Magritte, imersos no mistério do caminho.


Seguindo tranquilamente o caminho, Ney Ferraz Paiva, colagem, 2016.



Das figuras, neste abismo de gaiolas e pombos, cruzam a cena, Haroldo Maranhão, Sylvia Plath, João Cabral de Melo Neto, Max Martins. Todos, numa sensível relação de metamorfose entre o espaço, a escritura e o vazio.
Vigoroso elo entre corpos e escritas, cujos desdobramentos implicam numa experiência: a ideia da colagemzona de cópula e atritoefusão de cortes e suturas, imagens contrabandeadas, devaneios do resto, garatujas.
Essas experiências derivam de forças imperceptíveiscubismo, surrealismo, arte popna direção do vitalismo possível no espaço do fazer artístico. De outro modo, se articulam na interface dos combates entre imagem e poesia, na cadência de um pensamento no qual o gesto se consagra nas distinções entre o mundoda literaturae o que pulsa na imprecisão do fora mais longínquo.

Nesses pouco mais de 20 anos de poesia, os caminhos de Ney Ferraz Paiva sempre foram antípodas do repouso, no trabalho braçal do poema, de jornada em jornada, na inquieta busca da poesia.



terça-feira, 21 de novembro de 2017

CHELSEA HOTEL MAIO DE 1971





No decorrer de uma manhã de brincadeiras
Como num filme de Hitchcock
Você me deu uma faca
O suspense entre nós estava criado
Sob o chuveiro você convida
Atenta ao perigo que a cerca
A faca risca a cena
Obriga o corpo a uma tarefa delicada
De olhos vendados
Passo a marcar você
A dor se abre como uma árvore
Mão suspensa no ar
Tudo que vai colher
Deixo todos os traços da minha passagem
A febre o corte o rasgo
















Ney Ferraz Paiva

terça-feira, 3 de outubro de 2017

INTEMPESTIVIDADE




Onde nasci? em Estranha
Maura Lopes Cançado
É a minha mais esquisita
Conterrânea
Lá as mulheres não enlouquecem
Por castigo divino
Trocam e-mails impublicáveis com o primo
Têm um elefante solto na cabeça
Onze Mil Varas de Apollinaire
Num pendrive





Ney Ferraz Paiva

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Antipoética de Houdini


Atado pelos pulsos na cama
Arranco os fios à noite?
Mal acordo
E sou o Arranca-Fios!
Estude os nós
Tudo é desatável
Pela atenção paciente
Sou Houdini o mágico
Mas jamais afundaria nas águas
Acorrentado numa pedra



Sebastião Uchoa Leite
David Shannon

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
    Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
    E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
    E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
    Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
    Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redação, das que elogiam tudo,
    Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
    Vale um desdém solene.

Com raras exceções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
    Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
    Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingenuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
    Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
    Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
    Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
    E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
    Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
    Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
    Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
    Que mundo! Coitadinha!



Cesário Verde
Guilherme Ginane, 6 cigarros, 2016. Óleo sobre tela. 120 x 100 cm


quarta-feira, 29 de março de 2017

Poesia como trilha sonora para um filme

Edição de 2003, pela editora Francis.


eu fui artista de teatro, conhece teatro?, pois é, eu fui um artista, um ator… 
Harmada, João Gilberto Noll


Gosto de Harmada (Francis, 1993) do escritor João Gilberto Noll. Da chuva caindo, da chuva que acreditamos ter caído na véspera, torrencial, evanescente, devastadora, fatal. “Aproveitar a terra que virou lama depois do temporal”, diz o personagem, misturado à terra, à água, à lama, ao matagal, enrodilhado em volta de um tronco, a um passo de virar um animal. A experiência de ser arrancado, expelido, dissolvido de si. Tomado pelo escuro da terra. O assombro e o prazer da noite, vento, bruma, o que mais? Uma misteriosa escrita ativada por lâminas de imagens em ziguezagues, blocos desviantes, passagens planas fatiadas. Como resgatar um animal da água? Opera-se o desmembramento dos fatos, registros, acontecimentos. Aquele que teria sido ator — teria sido apenas o que representava de si a cronologia amesquinhada de a cada movimento recorrer à datas e horas e fotos nas paredes? Ou aquele ator entraria no roteiro aleatoriamente? O fluxo das imagens multiplicado ao ritmo tenso, como se auxiliado por um disparador automático, formando um mosaico. Seria isto uma escrita encenada — fotografada par a par com a narrativa? João Gilberto Noll gera em Harmada um campo magnético capaz de interagir com qualquer outra linguagem também magnetizada, num estado próximo à intimidade e à dispersão. Neste país ou cidade — Harmada — há mentiras, segredos e farsas; todos os sinais de vida sugados para fora das janelas, dispersando a todos. A cidade atrai e repele. Não é uma estrutura apenas para harmonizar paisagens, construções e indivíduos de acordo com as leis do acaso e da sorte. Sabe-se para onde ir, mas não se tem exatamente a certeza de onde se pode chegar. E tudo que não se viabiliza nesse transcurso é a elaboração de mapas. Antes a fadiga, o adormecer:

“e o sono sobrevinha a tudo, e a vigília agora não era mais do que águas passadas”.

Aquele ator trancafiado no asilo, albergado, retirado de circulação. Para ele não há caminho mais curto entre dois pontos. Direções interrompidas. Sônia, Amanda e Cris impregnadas no pequeno quarto de hotel; o terreiro de galos de rinha; o escritório de representação comercial, e aí Jane, o casamento, os filhos a que esse ator e homem de entrecortantes palavras não pode ter… As intempéries que conhecera até ali.

“Eu era aquele homem no espelho, eu era quase um outro, alguém que eu não tivera a chance de conhecer”.

Aquele ator estagnado sob inúmeros aspectos. Alguns pequenos extras constituem a expressão máxima do caminho tomado por ele. Aquele ator, um canastrão… Por um lado, os tipos típicos de atuações que permaneceram inalteradas — paradas no tempo do herói cercado por fantasmas à espera de uma saída que nunca veio. Por outro lado, se ligarmos falas e pontas, teremos talvez um plano ousado de atuação de um norte que há muito não é visitado:

“eu era então tomado por um desprezo absoluto pelo sofredor”, “eu sou um homem mau”, “há de tudo sobre a Terra, inclusive eu”.

Falas de um personagem associado ao misererere nobis de um teatro de racionamento e impossibilidades as mais diversas. Um prisioneiro de circunstâncias. Aquele ator é o próprio teatro. Quase sempre como o circo, o mais pé-rapado dos mambembes. O que tem a ver com a forma que a cultura trata o artista. E o que pode ser a arte. Nesse ponto fugidio do livro até mesmo os cães se tornam memorialistas e recordam se poderia ter ocorrido a evolução a que o autor recorreria para resgatar as linhas tortuosas de sua escrita, e como reorganizar isto com um personagem à beira do desastre? Com a ruptura entre fato e ficção? De volta a Harmada, chegaria a hora e a vez de acertar do personagem? Ele e uma Cris reencontrada. Seria, então, ela o incomparável que lhe acontecera? Seria? Ou bem ao contrário, ela o paradoxo, a contradição? Cris juntou a ele a sua voz, nada mais que pudesse conciliar ou limitar os estragos em que ele está metido.

“eu talvez esteja metido em uma espécie de morte, digamos desta maneira, de morte, mas que é apenas um estado mínimo, extraordinariamente concentrado, e que mesmo sendo invisível como um grão de poeira no escuro, atrai, atrai os outros corpos, e nesta atração todos os componentes se chocam e se atritam tanto, que das fagulhas provenientes destes choques e atritos nascem outras galáxias que gerarão outras através da sempre mesma atração e repulsa dos corpos…”.

Com efeito, os caminhos entrechocam-se, precipitam-se, o que nos tornamos, o que podemos pensar em ser, tamanha é a vontade de viver rigorosamente o mesmo momento e as mesmas pegadas — como animais em fuga.


Harmada, romance de João Gilberto Noll, marcou o retorno do veterano Maurice Capovilla à direção de filmes. Ele estava afastado desta atividade há mais de 20 anos. É uma bela incursão sobre a obra de Noll. O ator Paulo César Peréio ganhou o Candango de melhor ator no Festival de Brasília de 2003. As filmagens foram feitas em 2002 em Parati, no Rio de Janeiro.


Ney Ferraz Paiva

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

NAVEGANTE SEM NAVEGAGENS

Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho
Alberto da Cunha Melo


Porto de Belém.


perdida em seu caminho
como perdi o meu
belém se inicia termina
cidade escassa fortuita

santa & pornográfica
entra nos meus poros
rói minha memória
lambe meus pés sujos
subcutânea necrose
que se diz cidade
que não tem cura

não começa cessa
não dispara sai pela culatra

fossem meus pés serpentes
que voam pra trás numa
viagem ao contrário de
congestionamentos sem fim

esquiva    cerco   queda

interditada reduzida em escala
a cidade lembra as ramificações
de uma árvore tombada
ventanias chuvas urubus

a cidade não me cabe expele
sem deixar vestígios
o traço do meu rosto

a cidade me amesquinha
dissipa animaliza
não começa alicia
não termina golfa
nutre meu câncer
navegante à deriva
torna-me motivo de mofa

pés gangrenados asas eclipsadas
enquanto o barulho o barulho
é a boca da cidade
pavoroso movimento de mandíbulas
dores gritos choros
terrificantes tormentos

mesmo se o acaso
entrasse no páreo
a chuva me devorava
beleza luz juventude
enterrado vivo na cidade
povoada de datas passadas
cremadas manhãs
que mais falta acontecer?


sem rumo certo
uma balsa cruza o Guamá
ou corre pelo ar
a céu aberto
navegagens
devastadas
como se a
revólver faca
esquecimento

além do fogo
que mais pode
crescer em
torno do rio? 

Belém, onde hoje é o  bairro da Cremação.


Ney Ferraz Paiva