o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 25 de setembro de 2016

Testamento do Homem Cansado


Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim...
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.





         Carlos Pena Filho
         Imagem: Dionysos

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos
e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque
nada se reparte: ou se devora tudo
ou não se toca em nada,
morre-se mil vezes de uma só morte ou
uma só vez das mortes todas juntas:
só colaboro na minha morte:
e eles entenderam tudo, e pensaram: que este não colabore nunca,
que o demônio o leve, e foram-se,
e eu fiquei contente de nada e de ninguém,
e vim logo escrever este, o mais curto possível, e depressa, e
vazio poema de sentido e de endereço e
de razão deveras,
só porque sim, isto é: só porque não agora






HERBERTO HELDER, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.
Imagem: Igor Malaschenko, da série "back to babel - back and forth from babel", 2015.


domingo, 11 de setembro de 2016

EM ALGUM LUGAR SECO E ENORME, 1949


Você e eu vestidos confortavelmente observando a linha reta
enquanto no céu as nuvens correm como no filme
que às vezes Você sonha fazer comigo sem os filhos olhando
a linha reta entre dois amarelos que antes foram
a massa amarela e que nunca saberemos em que demônios
se converteram (nem nos importa!) Você e eu na casa alugada
sentados junto ao janelão a verdade dizes é que poderia
chorar por toda a tarde a verdade é que não tenho fome e sim
um pouco de medo de embebedar-me outra vez sentados junto
a um janelão reto, não? enquanto atrás de nós
os pássaros saltam de galho em galho e a luz da cozinha
pisca Você e eu em uma cama, ali estamos! Observando
as paredes brancas – dois contornos que se misturam – ajudados
pela luz da rua e pela luz de nossos corações frios
que se negam a morrer.






ROBERTO BOLAÑO
        Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Eugenio Recuenco

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Dá-me um poema
Para despedaçar o coração dos homens
Puro como lâminas
Como o som de um relógio
Sobre o pântano.
Diz-me o significado, espectro,
E diz-me a hora
Em que me perco,
E em que quarto serei encontrado outra vez.
Dá-me o poder da minha mão
E que as minhas palavras sejam sãs
E fortes como o voo.
Conduz o meu aparo,
Ajuda-me a escrever,
Mostra-me as portas
Onde estão as ordens;
E a prisão
Que a minha alma contempla,
Onde a minha coragem
Ruge entre as grades.








Malcolm Lowry
Imagem: Ernesto Timor, 2012-2014

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

SEM TÍTULO

Agora teu corpo é sacudido por
pesadelos. Já não és
o mesmo: o que amou,
que se arriscou.
Já não és o mesmo, ainda que
talvez amanhã tudo se desvaneça
como um sonho ruim e comeces
de novo. Talvez
amanhã comeces de novo.
E o suor, o frio,
os detetives erráticos,
sejam como um sonho.
Não desanimes.
Agora tremes, mas talvez
amanhã tudo comece de novo.




Roberto Bolaño
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Tempos Modernos, Charles Chaplin, 1936

sábado, 3 de setembro de 2016

AMANHECER


Creia-me, estou no centro de minha casa
esperando que chova. Estou só. Não me importa
terminar ou não meu poema. Espero a chuva,
tomando um café e olhando pela janela uma bela paisagem
de pátios internos, com roupas penduradas e imóveis,
silenciosas roupas de mármore na cidade, onde não existe
o vento e ao longe só se escuta o zumbido
da televisão em cores, assistida por uma família
que também, a esta hora, toma café reunida em volta
de uma mesa: creia-me: as mesas de plástico amarelo
se estendem até a linha do horizonte e mais além:
até os bairros distantes onde se constroem edifícios
de apartamentos, e um garoto de 16 sentado sobre
ladrilhos vermelhos contempla o movimento das máquinas.
O céu na hora do garoto é um enorme
parafuso oco com quem a brisa brinca. E o garoto
brinca com ideias. Com ideias e com cenas congeladas.
A imobilidade é uma neblina transparente e dura
que sai de seus olhos.
Creia-me: não é o amor que vai chegar,
mas a beleza com sua estola de alvoradas mortas.





ROBERTO BOLAÑO
Tradução: André Caramuru Aubert
Imagem: Elaine Pessoa, Tempo Arenoso, São Paulo, Edições Olhavê, 2015.