o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 27 de julho de 2016

KAFKA E SEUS PRECURSORES


  Certa vez premeditei um exame dos precursores de Kafka. A princípio, pude considerá-lo tão singular como a fênix dos louvores retóricos; do pouco que o li, pensei reconhecer sua voz, ou seus hábitos, em textos de diversas literaturas e de diversas épocas. Registrarei alguns deles aqui, em ordem cronológica.
  O primeiro é o paradoxo de Zenão contra o movimento. Um móvel que está em A (declara Aristóteles) não poderá alcançar o ponto B, porque antes deverá percorrer a metade do caminho entre os dois, e antes a metade da metade, e antes a metade da metade da metade, e assim até o infinito; a forma desse ilustre problema é, exatamente, a de O castelo, e o móvel e a flecha e Aquiles são os primeiros personagens kafkianos da literatura. No segundo texto que me trouxe o acaso dos livros, a afinidade não está na forma, mas no tom. Trata-se de um apólogo de Han Yu, prosador do século IX, e consta na admirável Anthologie raisonnée de la littérature chinoise (1948), de Margouliès. É este o parágrafo que marquei, misterioso e tranquilo: “Universalmente se admite que o unicórnio é um ser sobrenatural e de bom agouro; assim declaram as odes, os anais, as biografias de varões ilustres e outros textos cuja autoridade é indiscutível. Até os parvos e as mulheres do povo sabem que o unicórnio constitui um presságio favorável. Porém, esse animal não figura entre os animais domésticos, e encontrá-lo não é fácil, não se presta a classificações. Não é como o cavalo ou o touro, o lobo ou o corvo. Em tais condições, poderíamos estar diante de um unicórnio e não saberíamos com segurança que se trata dele. Sabemos que um animal com crina é cavalo e que um animal com chifres é touro. Não sabemos como é o unicórnio”.
  O terceiro texto procede de uma fonte mais previsível: os escritos de Kierkegaard. A finalidade mental desses dois escritores é coisa que ninguém ignora; o que ainda não se destacou, pelo que sei, é a recorrência de Kierkegaard, como Kafka, em parábolas religiosas de tema contemporâneo e burguês. Lowrie, em seu Kierkegaard (Oxford University Presss, 1938), transcreve duas. Uma é a história de um falsificador que examina, incessantemente vigiado, as cédulas do Banco da Inglaterra; Deus, de igual modo, desconfiaria de Kierkegaard e lhe teria confiado uma missão, justamente por sabê-lo habituado ao mal. O assunto da outra são as expedições ao polo Norte. Os párocos dinamarqueses teriam declarado desde os púlpitos que participar de tais expedições convém à salvação eterna da alma. Não obstante,  teriam admitido que chegar ao polo é difícil e talvez impossível, e que nem todos podem intentar a aventura. Finalmente, anunciaram que qualquer viagem – da Dinamarca a Londres, digamos, de barco a motor –, ou um passeio dominical em carro de praça,  são, analisando-se bem, verdadeiras expedições ao polo Norte. A quarta das prefigurações a encontrei no poema “Fears and Scruples”, de Browning, publicado em 1876. Um homem tem, ou acredita ter, um amigo famoso. Nunca o viu e o fato é que, até agora, ele não pôde ajudá-lo, embora atribuam a ele gestos muito nobres, e circulem cartas autênticas com seu nome. Há quem ponha em dúvida os gestos, e os grafólogos afirmam o caráter apócrifo das cartas. O homem, no último verso, pergunta: “E se esse amigo for Deus?”.
   Minhas notas registram igualmente dois contos. Um pertence às Histories désobligeantes de León Bloy e alude ao caso de pessoas que colecionam globos terrestres, atlas, guias ferroviários e baús, e que morrem sem jamais ter conseguido deixar sua cidade natal. O outro se intitula “Carcassonne” e é obra de lorde Dunsany. Um invencível exército de guerreiros parte de um castelo infinito, subjuga reinos e vê monstros e se exaure nos desertos e nas montanhas, mas nunca chega a Carcassonne, ainda que chegue a divisá-la. (Este conto é, como facilmente se advertirá, o exato reverso do anterior; no primeiro, nunca se sai de uma cidade; no último, nunca se chega).
  Se não me engano, as heterogêneas peças que enumerei se assemelham a Kafka; se não me engano, nem todas se parecem entre si. Este último fato é o mais significativo. Em cada um desses textos está a idiossincrasia de Kafka, em grau maior ou menor, mas se Kafka não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer, não existiria. O poema “Fears and Scruples” de Browning, profetiza a obra de Kafka, mas nossa leitura de Kafka apura e desvia sensivelmente nossa leitura do poema. Browning não o lia como nós agora o lemos. Ao vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas é preciso tentar purificá-la de toda conotação polêmica ou rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro. Em nada importa, nessa correlação, a identidade ou a pluralidade dos homens. O primeiro Kafka de Betrachtung é menos precursor do Kafka dos mitos sombrios e das instituições atrozes do que Browning ou lorde Dunsany.


Kafka e sua irmã Otlla

Jorge Luis Borges
Buenos Aires, 1951

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