o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A GRANDE ESCAVAÇÃO EM KAFKA


(rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil.
Gilles Deleuze

Instalei a construção e ela parece bem-sucedida.
Franz Kafka


Como entrar na obra de Kafka? Perguntam Deleuze/Guattari, já sem a perplexidade intrincada dos primeiros críticos. Levou tempo, mas agora sabe-se bem que Franz Kafka pode ser nomeado um grande escritor. Sem creditar nada na conta das injustiças casuais, nem dos acontecimentos isolados. Não há na sua escrita nenhum ensejo de compensação do cronista, nem mesmo nos seus diários. Em Kafka escrever deixou de ser pessoal. Se houve esse jogo na literatura, ele a partir dali demonstrou tratar-se de um jogo levado ao exagero. Mas não apenas um exagero literário. Erigir mais um edifício no estreito e concorrido centro da literatura, que progressivamente se esgueirava entre as cosmovisões vanguardistas e modernas. Ele nem chegou a cogitar. Seu projeto de escrita voltou-se para o desabrigado núcleo baldio, arrastado para fora dos muros das reconhecidas significações. E na sua última fase Kafka expõe e comenta a enorme escavação a que se lançou desde o início. Em “A Construção”, 1923, aquilo que pretendeu erigir vai muito rapidamente se afastando de parecer “bem-sucedido”. E há cada vez menos possibilidade de que o nosso mundo tenha sido criado por um criador que quer o nosso bem. Em geral, é um tempo de rupturas e transições, em que a aspiração maior parece ser a Passagem, a Travessia, mas Kafka torna “visível apenas um buraco”, cujas trilhas e direções não levam a parte alguma. Abaixo da superfície, não se está construindo os fundamentos de alguma coisa surpreendente. Quando muito, a estrutura de uma toca ou uma armadilha, o que não requer chefes responsáveis pela construção nem contratantes proeminentes. O canteiro de obras não atrai visitantes. Visível a todos está a intrigante questão, num grande letreiro: "e o que haverá no fim se já houver um fim?" O que dá ao empreendimento uma dimensão assustadora e dramática. Até há os que vem e farejam a entrada – procuram, gesticulam, investigam, com o “focinho lúbrico”. Era de se supor, e Kafka o pressentiu, como Proust, com Rilke, ou seja, a alinha de frente da literatura europeia até os anos 1920: que a caçada pelo “sujeito” continuaria feroz. Pouco importa se “Ele” está de volta a sua casa, naturalmente tragado pela terra. Há os que não perdem o faro pela memória nem pelas íntimas recordações. “Ele” desgarrou-se, mas não está a salvo. É ainda uma atração, um grande negócio. Há os que não observam que a passagem está interrompida. Que ali sequer há passagem, tão pouco saída. O buraco é uma espiral de deslizamento e caos, uma ruína. Infinita extensão de silêncio. Fosse o Castelo, não reconheceriam os muros. E mesmo no quarto de Gregor Samsa, sobre a cama, não perceberiam a máquina. Quanto que um inseto pode vir a ser uma draga ou um guindaste. Desatento de todos os pormenores que a escrita de Kafka suscita, o focinho pregado na escavação, o visitante supõe que o complexo, depois de terminado, se tornará lugar de concentração. O buraco pedrento. Tudo em Kafka está obstruído. Entonação, assobio, gesto. Corpo recolhido, comedido, enrodilhado. Ainda o cerco ao “sujeito”. Admira-se a logística e discute-se como o empregado medíocre de uma companhia de seguros mudou de ramo com considerável êxito. Todos ainda muito aturdidos pelos ventos frios da Montanha em Thomas Mann. Sob a Montanha o “sujeito” encalacrava-se em seu túnel. Kafka, ao contrário, não carregava o gênio como traje. A metamorfose não é a versatilidade de um corpo que se troca em outro.  É tanto mais o buraco e menos, bem menos a clareira. Um fosso bem-instalado: rasteja-se para chegar ao ponto indiscernível do emparedamento – para dentro e para fora o desastre.






Ney Ferraz Paiva
Imagem: Kafka por Ernesto Sábato  

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Mais uma vez homenageando o poeta Max Martins, neste mês em que se comemora o seu nascimento, resolvi editar e fazer essa postagem no issuu, com base em um projeto envolvendo o site Cultura Pará, do ano de 2014. Deixo o texto de apresentação e o link para a publicação.

Não deixando de informar que a Universidade Federal do Pará - UFPA, está gradativamente relançando a obra de Max Martins, livro à livro. Neste mês de junho foram lançados mais três livros. Atualmente tem para aquisição os seguintes livros: "O estranho"; "O risco subscrito"; Caminho de Marahu; "Para ter onde ir" e "Colmando a lacuna". www.facebook.com/ed.ufpa/?fref=ts

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APRESENTAÇÃO
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Em fevereiro de 2014, quando o site Cultura Pará comemorava seus 17 anos de atividades em prol da arte e da cultura, promovendo artistas paraenses de diversos segmentos e mantendo uma agenda artística por todos esses anos, resolvemos fazer um sorteio de livros, para que as pessoas compartilhassem poemas do poeta paraense Max Martins, que estariam publicados em sua página no facebook. Chamei para compor uma curadoria para a seleção de poemas, a escritora e poeta Élida Lima e Marcia Huber, amiga do poeta, tradutora e grande admiradora das artes literárias em geral, e que mora em Munique/ALE, desde os anos 1990. A ideia inicial seria selecionar 15 poemas, mas como se tratava da obra de Max, não tivemos condições de nos limitar a apenas 15, chegamos aos 35, achando que ainda seriam poucos pelos grandes poemas que ficaram de fora da seleção.

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Resolvi então, agora em junho de 2016, mês em que se comemora seus 90 anos de nascimento, publicar aqui no issuu estes poemas editados em formato de livro para mais uma vez homenagear o grande poeta Max Martins.
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Vasco Cavalcante, Belém, junho, 2016

segunda-feira, 27 de junho de 2016

 UM MUNDO SOLITÁRIO COMO FRANZ KAFKA



A 3 de junho de 1924, Franz Kafka morre no sanatório de Kierling, arredores de Viena. Aquele que morre este ano está livre do próximo, cito Shakespeare. Mas o mundo entrou de tal forma em Kafka que ainda não se libertou da sua cronologia. Kafka nasce em Praga a 3 de julho de 1883. Por volta dos vinte anos começa a descrever a atmosfera tenebrosa do século que principia. E a teia inconsútil que se põe a tecer ainda detém a todos.

Apaixonado por Espinoza, pelas teorias de Darwin, pelo pensamento de Nietzsche e pela arte de Van Gogh, o tipo de interlocução que Kafka estabelece em Descrição de uma luta (1904), com o ar talmúdico que o acompanhará daí por diante, leva particularmente em conta que a cada tentativa, a cada investida contra o inimigo, se rastreia o humano como uma presa. E o cão que a irá segurar parece disputar com outro cão o direito ao ataque. Todos estão à mercê. Arma-se o bote espectral, do qual ninguém escapa. O mal está sempre por acontecer.

Com efeito, nos oito contos que irão compor Contemplação, publicados na revista Hyperion (Munique, 1908), nota-se uma crescente variação em torno de um desviar e perecer. O animal ronda, avista-se seu rastro, tenta-se escapar, mas não há nada que se possa fazer. Hemingway e Faulkner retomarão Melville a partir dessa perspectiva. Joyce e Beckett tratarão, por sua vez, de chicotear o escuro vazio para arrancar daí um sentido selvagem para o humano – e dar um nó a mais na correia kafkiana.

Direções e deslocamentos tão diversos quanto contraditórios e incompatíveis surgem, se excluem, se ajustam e se interpenetram a partir das sinalizações de Kafka. Escrito em 1914 e publicado em 1925, O processo é a erupção de um acontecimento estético que marcará definitivamente a literatura de uma brutalidade de tal forma arcaica e vital, definindo como padrão artístico o declínio da verdade como forma de asseverar um fato.

Refutada a aparência da retórica idealista como modelo espiritual, uma vez confrontada pela perspectiva do desviar e perecer kafkiana, esta se torna a ocorrência que irá orientar a escrita desde então e perpassar até os dias que correm. Com efeito, O processo, O castelo ou O desaparecido vão condensar um tipo de escrita que, de imediato, o que dela escapa tomba no abismo temporal.

Com ela se abre (sem que Kafka tenha se ajustado a um modelo e objetivamente nada tenha a ver com isso) uma tendência de difusão mundial, progressiva e inexorável, apesar da rigidez das fronteiras, por causa das duas Grandes Guerras, de uma escrita que atravessa pelos desvãos das principais vanguardas artísticas europeias dos anos dez e vinte (incluído aí o cubismo tcheco) e, posteriormente, desgarrando-se do próprio modernismo – quando o que cada um vai propondo e o que de cada um resulta vai se amainando à exaustão.

Kafka, como Benjamin, não se resigna às maravilhas da modernidade  reproduzidas e generalizadas como se o modelo modernista estivesse isento de perecer. Em A Metamorfose, escrito em 1912 e publicado em 1915, o entrecho reproduz o apartamento localizado na Niklasstrasse, que Kafka compartilhava com os pais. Nesse cenário urbano, familiar e normalizado, o protagonista Gregor Samsa não desperta com uma flor em sua mão, vindo do Paraíso. Os nexos que trás consigo confirmam apenas o mundo tenebroso e hostil no qual está desperto.

Membro de uma família judia, instalada na Bohemia depois da Guerra dos Trinta Anos, Kafka remeterá seus envios ao mundo, a um só tempo desventurado e novo, a partir do antiquíssimo ventre da morte. E não tratará de fazer previsão às gerações futuras. Como o futuro, ele vagará invisível, inconveniente e intruso, mas não será apagado. Ainda que sua metamorfose resulte apenas na ruína, barbárie, devoração. Gregor Samsa não terá vindo de tão longe. E Kafka, por sua vez, tentando nos despistar de uma solidão da qual não pode se libertar, no Brasil e pelo mundo, troca de pele mais uma vez.





Ney Ferraz Paiva
Imagem: ney ferraz paiva, "kafka está desperto", colagem, 2016

quinta-feira, 23 de junho de 2016

• M A X • M A R T I N S • 

























Vasco Cavalcante

Poema publicado na antologia "Impossível não te ofertar - poemas para Max", produzida pela Fundação Cultural do Pará, lançada na Feira Pan-Amazônica do Livro, e que foi relançado no dia 20/06, dia do aniversário do poeta, na Casa da Linguagem.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

O OLHAR DE MAX E AS CINZAS



Seria de certa forma redundante dizer que a obra de Max Martins, pelo menos em um dado momento, influenciou a minha, já que não conheço poeta paraense de minha geração ou depois que não tenha sofrido, repito, em algum momento, esta influência. Então prefiro contar aqui uma historieta que envolve um poema meu e participação vital de Max Martins. Digo vital porque do resultado desta situação dependia a vida ou a morte de um livro. Pouco antes de lançar meu primeiro livro, este passou por uma prova de fogo. Estava carregando os originais para ir para gráfica, quando encontrei com Max, na Casa da Linguagem, da qual era o diretor na época. Ele pediu para ler um poema e dei-lhe, aleatoriamente, do maço que carregava, o poema Dezembro 92, dedicado ao meu irmão que falecera. Ele pegou, leu e ficou em silêncio por, aproximadamente, um minuto, para mim um longo e interminável minuto, durante o qual ele olhava, alternadamente, para mim e para o poema, para mim e para o poema, para mim e para o poema, e durante o que eu pensava: dependendo do que ele disser este livro vai para a gráfica ou vai para casa. Ao final deste instante de eternidade ele sentenciou, “este poema tem um ritmo extraordinário, estranho, singular, diferente”. Alívio. O livro, então, foi pra gráfica.




Dezembro, 92
A Aluizio Tadeu

Entre o labirinto de estrelas
e a merda sob elas
ouço
                 o baque surdo
a baqueta de osso, o tambor

O toque imbatível de Cronos

A mão sabotadora rubricando a cin
zas um Não, um Z, um Ω
nas pálpebras de meu irmão







Antônio Moura, Dez, 1996.
Ney Ferraz Paiva


PARA MAX MARTINS




etéreo
eterno
rio éter

pocket-poema
hibernal

poeter
adormec ido
gota a dor
nada . tudo
a mortecido
a marahu
(rio que te vestiu)

o baque
medra o casco e
segue miúda

a canoa carcomida
do arrozal        ao (uni ver) sal
do pó ao

pó-homem
po-women
power
Pound
Poeira

o caboclo aporta no estrangeiro
vai-se além do


NÃO
ES
TAR
A
QUI
:
lugarejo de encantaria


o mito é o não mais tocá-lo com as mãos
palavra apunh
alada
























Harley Dolzane
Rogerio Uchoa


segunda-feira, 20 de junho de 2016

ENCONTRADOS EM SÃO PAULO ORIGINAIS DE MAX MARTINS



Max Martins deve ter guardado alguns poemas datilografados de Caminho de Marahu durante uma bebedeira em 1982. Os poemas ficaram esquecidos todos esses anos numa pasta de couro. O artista que a usava deve ter pedido ao poeta para guardar os poemas um pouco antes daquele ponto ápice quando os bêbados descem de uma vez ao abismo. Pode ter sido no Bar do Parque, 3x4 ou num dos botecos da Condor, arredores da UFPA. Uma coisa é certa: estavam acompanhados da mulher mais bela da cidade. Ela permaneceria tomada pela poesia durante toda noite como pelas labaredas do inferno. Dias depois o artista viaja para a Alemanha. Trinta e cinco anos se passam, já de volta ao Brasil, radicado em São Paulo, num daqueles instantes em que todas as coisas emergem das sombras, ele se depara com a velha pasta de couro. Pra quê? Soube logo em seguida: os poemas ferviam ali dentro. Não a vida acabada, presa no passado, mas os modos de progressão e resistência da poesia. De toda forma, Max Martins acabaria incluindo esses poemas em Caminho de Marahu, publicado em 1983. E distinguiria extraordinariamente aquele tempo e aquela cidade a que estava ligado indelevelmente. Aquele sistema nervoso – e suas fuliginosas “palavras/ larvas de nada”.










Ney Ferraz Paiva

quarta-feira, 8 de junho de 2016

max e minha pessoa


● minha pessoa adora jaguares ●
● olhando a quebra do rio passando a mão ●
● sobre a cabeça de max enquanto ele mastiga ●

● cranios e mãos cruas de macaco ●
● max adora cranios e mãos cruas de macaco ●
● ele ri ele ronrona ele se deita e rola e ri ●

● como gosta de cranios e mãos cruas ●
● de macaco max o belo jaguar de minha ●
● pessoa passando a mão em sua cabeça furta ●

● cor sua imensa cabeça q mastiga cranios ●
● max agora dorme max agora sonha max deixa ●
● correr a baba da mais pura felicidade ●

● como se tivesse caçado na floresta ●
● max sabe q caçou sabe q esses cranios ●
● q todas essas mãos de macaco cruas ele caçou ●

● entre as arvores entre as pedras da floresta ●
● agora mesmo minha pessoa sabe q max bebe ●
● agua na lagoa entre as arvores da floresta ●

● sentindo o medo q ele provoca o silencio ●
● daqui a pouco ele saira da lagoa pra dormir ●
● cheio de cranios e mãos cruas de macaco ●

● se deitara sonhando q minha pessoa passa ●
● a mão em sua cabeça enquanto ele sonha ●
● com uma lagoa e cranios e mãos de macaco ●

● mas minha pessoa não se engana nem pode ●
● porq sabe q minha pessoa é apenas uma parte ●
● do sonho de max depois de comer cranios ●

● de comer mãos de macacos depois de beber ●
● agua na lagoa cheia do silencio feito por max ●
● como minha pessoa a lagoa e os macacos ●

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Alberto Lins Caldas
Imagem: ney ferraz paiva, “max o belo jaguar”, colagem, 40 x 30cm, 2016