o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A Terra Devastada

T. S. Eliot

Tradução de Gualter Cunha



Elaine Pessoa, Tempo Arenoso


I. O Enterro dos Mortos

Abril é o mês mais cruel, gera
Lilases da terra morta, mistura
A memória e o desejo, agita
Raízes dormentes com chuva da Primavera.
O Inverno aconchegou-nos, cobriu
A terra com o esquecimento da neve, alimentou
Uma pequena vida com bolbos ressequidos.
O Verão apanhou-nos de surpresa, veio por sobre o Stambergersee
Com um aguaceiro súbito; paramos na colunata,
E seguimos, já com sol, para o Hofgarten,
E tomamos café e ficamos uma hora a conversar.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
E quando éramos pequenos, e ficamos em casa do meu primo,
O arquiduque, ele levou-me a andar de trenó
E eu apanhei um susto. Disse, Marie,
Marie, segura-te bem. E fomos por ali abaixo.
Nas montanhas, aí sim sentimo-nos livres.
Leio, quase toda a noite, e vou para o sul no Inverno.


Que raízes se prendem, que ramos crescem
Neste entulho pedregoso? Filho do homem,
Não consegues dizer, nem adivinhar, pois conheces apenas
Um montão de imagens quebradas, onde bate o sol,
E a árvore morta não dá qualquer abrigo, nem o grilo alívio,
Nem a pedra seca qualquer ruído de água. Apenas
Há sombra debaixo desta rocha vermelha
(Anda, vem para a sombra desta rocha vermelha),
E vou mostrar-te uma coisa ao mesmo tempo diferente
Da tua sombra quando ao amanhecer te segue
E da tua sombra quando ao entardecer te enfrenta;
Vou mostrar-te o medo num punhado de poeira.


                     Frisclz welzt der Wind
                     Der Heimat zu
                     Mein Irisclz Kind,
                     Wo weilest du?
«Deste-me Jacintos há um ano pela primeira vez;
«Diziam que eu era a rapariga dos jacintos.»
Porém quando viemos, já tarde, do jardim dos jacintos,
O teu braçado cheio e o teu cabelo molhado, não consegui
Falar, os meus olhos toldaram-se, eu não estava
Vivo nem morto e não conheci a nada,
Os olhos postos no coração da luz, o silêncio.
Oed' wzd leer das Meer.


Madame Sosostris, vidente famosa,
Estava muito constipada, no entanto
Passa por ser a mais sabedora mulher da Europa,
Com um maldito baralho de cartas. Aqui, dizia ela,
Está a sua carta, o Marinheiro Fenício afogado,
(Aquilo são pérolas que eram os olhos dele. Veja!)
Aqui está Belladonna, a Senhora dos Rochedos,
A senhora das complicações.
Aqui está o homem dos três bordões e aqui a Roda
E aqui o mercador zarolho, e esta carta,
Que é branca, é alguma coisa que ele leva às costas,
Que não me é consentido ver. Não encontro
O Enforcado. Tenha medo da morte pela água.
Vejo multidões de gente, a caminhar em círculo.
Obrigada. Se vir a querida Sra. Equitone,
Diga-lhe que eu própria levo o horóscopo:
Hoje em dia temos de ter tanto cuidado.


Cidade Irreal,
Sob o nevoeiro pardo de um amanhecer de Inverno,
Uma multidão fluía pela London Bridge, eram tantos,
Eu não pensava que a morte tivesse aniquilado tantos.
Suspiros, curtos e raros, eram exalados,
E cada um fixava os olhos adiante dos pés.
Fluíam encosta acima e desciam King William Street,
Até onde Saint Mary Woolnoth dava as horas
Com um som morto na derradeira badalada das nove.
Aí vi alguém que conhecia, fi-lo parar, gritei-lhe: «Stetson!
«Tu que estiveste comigo nos barcos em Mylae!
«O cadáver que plantaste o ano passado no jardim
«Já começou a dar rebentos? Será que dá flor este ano?
«Ou o canteiro foi estragado pela geada imprevista?
«Oh, afasta de lá o Cão, que é amigo dos homens,
«Ou ele com as unhas ainda o desenterra outra vez!
«Tu! hypocrite lecteur! mon semblable , mon frère!»


II. Uma Partida de Xadrez

A Cadeira onde ela se sentava, como um trono polido,
Reluzia no mármore, onde o espelho
Apoiado em colunas ornadas de vides com uvas
Por entre as quais espreitava um Cupido dourado
(Outro escondia os olhos com uma asa)
Duplicava as chamas de candelabros de sete velas
Refletindo a luz no tampo da mesa enquanto
Para a luz se elevava o brilho das suas joias
Derramadas em exuberância de estojos acetinados.
Em frascos de marfim e vidro colorido
Destapados, emboscavam-se seus estranhos perfumes sintéticos,
Em creme, em pó ou líquidos perturbavam, confundiam
E afogavam o sentido em odores; agitados pelo ar
Refrescante vindo da j anela, eles ascendiam,
Engordavam as chamas alongadas das velas,
Lançavam o fumo sobre a moldura do teto,
Onde agitavam o desenho dos caixotões.
Madeiros do mar ali mentados com cobre
Ardiam em laranja e verde, enquadrados pela pedra de cor,
Em cuja luz triste nadava um golfinho entalhado.
Sobre o lintel da vetusta lareira era mostrada
Como se uma janela desse para a cena rústica
A mudança de Filomela, pelo bárbaro rei
Tão brutalmente violentada; mas aí o rouxinol
Enchia todo o deserto com voz inviolável
E ela ainda gritava, e ainda o mundo persegue,
«Chac Chac» a ouvidos imundos.
E outros ressequidos cepos de tempo
Eram narrados nas paredes; formas de olhares fixos
Assomavam, inclinavam-se, e emudeciam a sala que cercavam.
Vinham passos arrastados pela escada.
Sob a luz do fogo, sob a escova, o cabelo dela
Espraiado em pontos faiscantes
Cintilava em palavras, depois ficava ferozmente calmo.

«Esta noite os meus nervos estão mal. Sim, mal. Fica comigo.
Fala comigo. Por que é que nunca falas? Fala.
Em que estás a pensar? A pensar o quê? O quê?
Nunca sei o que estás a pensar. Pensa.»

Penso que estamos no beco das ratazanas
Onde os homens mortos perderam os seus ossos.

«Que barulho é esse?»
                     O vento debaixo da porta.
«Que barulho é esse agora? Que está a fazer o vento?»
                     Nada outra vez nada.
                                                                                  «Tu
Não sabes n ada? Não vês nada? Não te lembras de
«Nada?»

Lembro-me
Aquilo são pérolas que eram os olhos dele.
«Tu estás vivo, ou não? Não há nada na tua cabeça?»
                                                                                 Mas
Oh Oh Oh Oh aquele ritmo de rag Shakespeheriano
É tão elegante,
Tão inteligente
«Que hei-de fazer agora? Que hei-de fazer?
Vou sair tal como estou, e andar pela rua
Com o cabelo solto, assim. Que havemos de fazer amanhã?
Que havemos de fazer alguma vez?»
                                                           A água quente às dez.
E se chover, um carro coberto às quatro.
E jogaremos uma partida de xadrez,
A apertar olhos sem pálpebras e à espera que batam à porta.


Quando o marido da Lil saiu da tropa, eu disse
Não tive papas na língua, fui eu mesma que lhe disse,
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Agora que o Albert vem aí, vê lá se te pões jeitosa.
Há-de querer saber o que fizeste ao dinheiro que te deu
Para te pores uns dentes. Deu-te, sim, eu estava lá.
Trata de tirá-los todos, Lil, arranja uma dentadura bonita,
Disse ele, juro, nem sequer aguento olhar para ti.
E já nem eu aguento, disse eu, e pensa no pobre do Albert,
Quatro anos de tropa, agora há-de querer desforra,
E se tu não lha dás, há outras que sim, disse eu.
Ai há, disse ela. Olha o que te digo, disse eu.
Então já sei a quem agradecer, disse ela, e olhou-me nos olhos.
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Se não gostas, olha, o mal é teu, disse eu.
O que não souberes colher outras hão-de saber.
Mas se o Albert se for, não digas que não te avisaram.
Devias ter vergonha, disse eu, de parecer um caco velho.
(E ela só com trinta e um.)
Não sei que fazer, disse ela, a pôr cara de caso,
É dos remédios que tomei, para o desmancho, disse ela.
(Ela já teve cinco, e quase morreu do George, do pequenito.)
O da farmácia disse que não fazia mal, mas nunca mais fui a
   mesma.
Tu és mesmo parva, disse eu.
Então, se o Albert não te deixa em paz, lá está, disse eu,
Para que te casaste se não queres ter filhos?
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Então, nesse domingo o Albert estava em casa, tinham cozinhado
   presunto,
E convidaram-me para jantar, para o apreciar quentinho
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
VAMOS EMBORA POR FAVOR ESTÁ NA HORA
Banoite Bill . Banoite Lou. Banoite May. Banoite
'Deuzinho. Banoite. Banoite.
Boa noite, senhoras, boa noite, gentis senhoras, boa noite, boa
   noite.


III. O Sermão do Fogo

A tenda do rio rompeu-se: os derradeiros dedos de folhas
Agarram-se e enterram-se na margem úmida. O vento
Atravessa a terra parda, sem se ouvir. As ninfas partiram.
Gentil Tamisa, corre lento, até eu findar meu canto.
O rio não leva garrafas vazias, papéis de sanduíche,
Lenços de seda, caixas de cartão, pontas de cigarro,
Ou outros testemunhos de noites de verão. As ninfas partiram.
E os amigos delas, os vadios herdeiros dos diretores da City
Partiram, não deixaram endereços.
Junto às águas do Leman assentado eu chorei...
Gentil Tamisa, corre lento, até eu findar meu canto,
Gentil Tamisa, corre lento, que eu não falo nem alto nem muito.
Mas por detrás de mim num estrondo frio eu ouço
O restolhar dos ossos, e a risada aberta de uma orelha à outra.


Uma ratazana deslizou lenta pela vegetação
A arrastar a barriga viscosa pela margem
Enquanto cu pescava no turvo canal
Num entardecer de inverno nas traseiras da central do gás
A cismar no naufrágio do rei meu irmão
E na morte antes dele do rei meu pai.
Corpos brancos nus no chão baixo e úmido
E ossos lançados num exíguo sótão baixo e seco,
Só restolhados pela pata da ratazana, de um ano ao outro.
Mas por detrás de mim de vez em quando eu ouço
Buzinas e automóveis, que hão-de trazer
Swecney à Sra. Porter quando for Primavera.
Oh estava a Sra. Porter pela lua iluminada
Assim como a filha estava
Ambas lavam os pés em água com soda
Et O ces voix d'enfants, chantant dans la coupole!

Tuít tuít tuít
Chac chac chac chac chac chac
Tão brutamente violentada.
Tereu

Cidade irreal
Sob o nevoeiro pardo de um meio-dia de Inverno
O Sr. Eugenides, o mercador de Esmima
De barba por fazer, um bolso cheio de passas
C.i .f. Londres: documentos à vista,
Convidou-me em francês demótico
Para um almoço no Cannon Street Hotel
Seguido de um fim-de-semana no Metropole.


À hora violeta, quando os olhos e as costas
Se elevam da secretária, quando a máquina humana aguarda
Como um táxi latejante à espera,
Eu Tirésias, embora cego, latejante entre duas vidas,
Um velho com seios mirrados de mulher, consigo ver
À hora violeta, a hora do entardecer que se arrasta cansada
De caminho a casa, e traz o marinheiro de regresso do mar,
A datilógrafa em casa à hora do chá, levanta o pequeno-almoço,
   acende
O fogão, e põe na mesa comida de conserva.
Perigosamente estendidas por fora da janela,
Secam as combinações, que o sol toca com os derradeiros raios,
Em monte no divã (à noite a cama dela)
Meias, chinelas, corpetes e espartilhos.
Eu Tirésias, um velho de tetas mirradas
Entendi a cena e antecipei o resto
Também eu aguardava o visitante previsto.
Ele chega, o jovem carbuncular, um funcionário
Numa modesta agência predial, de feição atrevida,
Um pobre diabo em quem assenta o brio
Como em ricaço de Bradford cartola de seda.
A altura é, ele prevê, propícia,
A refeição acabou, ela indolente e cansada,
Procura convencê-la por carícias
Não repelidas, se é que indesejadas.
Afogueado e decidido, passa à ação;
As mãos intrometidas têm licença;
Não pede contrapartida a presunção
E até lhe é bem-vinda a indiferença.
(E eu Tirésias já de antemão penei
Tudo neste divã ou cama representado;
Eu que junto aos muros de Tebas me sentei
E entre os mortos mais rasteiros tenho andado.)
Pespega para acabar u m beijo complacente,
E sai às apalpadelas, sem ter luz na escada...


Ela volta-se e vê-se ao espelho por um momento,
Mal se dando conta de que o amante partiu;
Deixa um pensamento inacabado vir-lhe à mente:
«Bem, agora está feito: e ainda bem que passou.»
Quando mulher amável se toma inconstante
E de novo só pelo seu quarto deambula,
Amacia o cabelo com mão inconsciente
E vai pôr um disco na grafonola.


«Esta música deslizou junto de mim por sobre as águas»
E ao longo do Strand, e por Queen Victoria Street.
Oh Cidade cidade, por vezes consigo ouvir
Quando passo por um bar em Lowcr Thames Street,
O suave lamento de um bandolim
E um alarido e uma vozearia lá de dentro
Onde homens do peixe se encontram ao meio-dia: onde as paredes
De Magnus Martyr guardam
Inexplicável esplendor de branco e ouro jônio.


O rio sua
Ó Jeo e alcatrão
As barcas flutuam
Com a maré que muda
Velas vermelhas
Abertas
Para sotavento, agitam-se no forte mastro.
A s barcas vogam
Lenhos à deriva
Ao largo de Greenwich
Para lá da Isle of Dogs.
                    Weialala leia
                    Wallala leialala


Elizabeth e Leicester
O bater dos remos
A popa tinha a forma
De uma concha dourada
Vermelho e ouro
A ondulação viva
Encrespava nas margens
Vento sudoeste
Levava rio abaixo
O repicar dos sinos
Torres brancas
                    Weialala leia
                    Wallala leialala


«Elétricos e árvores cheias de poeira.
Highbury criou-me. Richmond e Kew
Despedaçaram-me. Junto a Richmond levantei os
   joelhos
De costas no chão de uma estreita canoa.»


«Os meus pés estão em Moorgate, e o meu coração
Debaixo dos meus pés. Depois do que aconteceu
Ele chorou. Prometeu "um recomeço".
Não lhe dei seguimento. De que havia de ter
   ressentimento?»


«Em Margate Sands.
Não consigo ligar
Nada com nada.
As unhas quebradas de mãos imundas.
Minha gente humilde gente que não aguarda
Nada.»
                    la la


E então cheguei a Cartago


A arder a arder a arder a arder
Oh Senhor Tu agarras-me
Oh Senhor Tu agarras


a arder


IV. Morte pela Água

Phlebas, o Fenício, morto há duas semanas,
Esqueceu o grito das gaivotas, e a ondulação das profundidades
E os lucros e as perdas.
                                          Uma corrente submarina
Apanhou em sussurro os ossos dele. Ao subir e descer
Passou os estádios da sua idade e da sua juventude
Enquanto entrava no redemoinho.
                                          Gentio ou Judeu
Oh tu que rodas o leme e olhas a barlavento,
Lembra-te de Phlebas, que foi em tempos belo e alto como tu.


V. O Que Disse o Trovão

Após o rubor do archote no suor dos rostos
Após o silêncio gelado nos jardins
Após a agonia em terras pedregosas
Os brados e os gritos
Da prisão e do palácio e da ressonância
Do trovão primaveril em montanhas distantes
Ele que era vivo agora está morto
Nós que éramos vivos agora vamos morrendo
Com alguma paciência


Não há água aqui mas apenas pedras
Só pedras sem água e a estrada arenosa
Serpeante no alto por entre as montanhas
Que são montanhas de pedras e sem água
Se houvesse água íamos parar e beber
Não se pode entre as pedras parar ou pensar
O suor seco e os pés na areia
Se ao menos houvesse água entre as pedras
Boca cariada de montanha morta incapaz de cuspir
Ninguém se pode aqui erguer nem sentar nem deitar
Nem sequer há silêncio nas montanhas
Só o trovão seco e estéril e sem chuva
Nem sequer há solidão nas montanhas
Mas rostos vermelhos e ruins zombam e rosnam
Às portas de casas de lama ressequida
                                            Se houvesse água


E nenhumas pedras
Se houvesse pedras
E água também
E água
Se houvesse água
Uma nascente
Uma poça entre as pedras
Se ao menos houvesse o som da água
Não o canto da cigarra
E da erva seca
Mas o som da água numa pedra
Onde o tordo-eremita canta nos pinheiros
Drip drop drip drop drop drop drop
Mas não há água


Quem é o terceiro que sempre caminha a teu l ado?
Quando conto, só estamos tu e eu
Mas quando olho pela estrada branca acima
Há sempre alguém a caminhar junto de ti
Envolto em manto castanho, e embuçado
Não sei se será homem ou mulher
Mas quem é esse do outro lado de ti?


Que som é esse a elevar-se no ar
Murmúrio de lamento maternal
Quem são essas hordas embuçadas a alastrar
Em plainos infindos, a tropeçar na terra ressequida
Apenas circundada pelo horizonte raso
Que cidade é essa por cima das montanhas
Que estala e se refaz e estoira no ar violeta
Torres cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria
Viena Londres
Irreais


Uma mulher esticou os seus cabelos negros
E tocou música de suspiros nessas cordas
E morcegos com rostos de criança à luz violeta
Assobiaram e bateram as asas
E de cabeça para baixo rastejaram num muro enegrecido
E voltadas ao contrário no ar havia torres
A soar reminiscentes sinos, que davam as horas
E vozes a cantar de dentro de cisternas vazias e poços esgotados.
Neste arruinado buraco entre as montanhas
À tênue luz da lua, a erva canta
Sobre os túmulos derrubados, em volta da capela
Há a capela vazia, onde só mora o vento.
Não tem janelas, e a porta vai e vem,
Ossos secos são inofensivos.
Só um galo se elevava na viga mestra
Cô cô ricô cô cô ricô
Num clarão de relâmpago. Logo uma rajada úmida
A trazer chuva


O Ganga ia baixo, e as folhas frouxas
Esperavam a chuva, enquanto as nuvens negras
Se acumulavam longe, sobre o Himavant.
A selva encolhia-se, curvada em silêncio.
Então falou o trovão
DA
Datta: que foi que nós demos?
Meu amigo, sangue a agitar-me o coração
A tremenda ousadia de um instante de entrega
Que tempos de prudência jamais revogarão
Foi por isto, e só por isto, que existimos
O que não aparecerá nos nossos necrológios
Ou em memórias vestidas pela caridosa aranha
Ou sob lacres quebrados pelo seco procurador
Nos nossos quartos vazios
DA
Dayadhvam: Eu ouvi a chave
Por uma vez na porta e por uma só vez
Nós pensamos na chave, cada um na sua prisão
A pensar na chave, cada um confirma uma prisão
Só ao cair da noite, rumores etéreos
Revi vem por um instante um destroçado Coriolano
DA
Damyata: O barco respondeu
Ágil, à mão experiente na vela e no remo
O mar estava calmo, o teu coração teria respondido
Ágil, se convidado, batendo obediente
A mãos conhecedoras
Sentei-me na margem
A pescar, com o plaino árido atrás de mim
Hei-de eu ao menos pôr ordem nas minhas terras?
London Bridge está a cair está a cai r está a cair
Poi s 'ascose nel foco che gli affina
Quando fiam uti chelidon Ó andorinha andorinha
Le Prince d 'Aquitaine à la tour abolie
Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas
Pois então estais arranjados comigo. O Hieronymo ensandeceu
   de novo.
Datta. Dayadhvam. Damyata.
                    Shantih shantih shantih




Notas do autor sobre a Terra Devastada



Não só o título, mas também o plano e uma grande parte do simbolismo incidental do poema foram sugeridos pelo livro da Sra. Jessie L. Weston sobre a lenda do Graal: From Ritual to Romance (Cambridge). A minha dívida é tão profunda que na verdade o livro da Sra. Weston deverá elucidar as dificuldades do poema muito melhor do que as minhas notas o podem fazer; e recomendo-o (para além do grande interesse do livro em si próprio) a quem quer que considere que vale a pena uma tal elucidação do poema. Em termos gerais as minhas dívidas vão também para outra obra de antropologia que influenciou profundamente a nossa geração; refiro-me a The Golden Bouglz, do qual usei em especial os dois volumes Adonis, Attis, Osiris. Qualquer leitor familiarizado com estas obras reconhecerá imediatamente no poema certas referências a    cerimoniais da vegetação.


I. O ENTERRO DOS MORTOS


Verso 20. Cf. Ezequiel 2, 1.
23. Cf. Eclesiastes 12:5.
31. V. Tristan und I solde, I, versos 5-8.
42. Id., III, verso 24.
46. Não conheço bem a constituição exata do baralho de cartas Tarô, do qual obviamente me distanciei de acordo com as minhas conveniências. O Enforcado, um membro do baralho tradicional, adequa-se aos meus objetivos por duas vias: porque se associa no meu espírito ao Deus Enforcado de Prazer, e
porque eu o associo à figura embuçada na viagem dos discípulos para Emaús na Parte V. O Marinheiro Fenício e o Mercador aparecem depois, assim como as «multidões de gente», e a Morte pela Água tem lugar na Parte IV. O Homem dos Três Bordões (um membro autêntico do baralho Tarô) é associado por mim, de modo inteiramente arbitrário, com o próprio Rei Pescador.
60. Cf. Baudelaire:
«Fourmillante cité, cité pleine de rêves,
le spectre en plein jour raccroche le passant.»
63. Cf. Inferno, III, 55-57:
                                                  si lunga tratta
                  di gente, ch'io non averei creduto
                  che morte tanta n'avesse disfatta.
64. Cf. Inferno, IV, 25-27:
                  Quivi, secando che per ascoltare,
                  non avea piante mai che di sospiri
                  che l'aura eterna facevan tremare.
68. Um fenômeno em que reparei frequentemente.
74. Cf. a Endccha em White Devil, de Webster.
76. V. Baudelaire, Prefácio a Fleurs du Mal.


II. UMA PARTIDA DE XADREZ


77. Cf. Antony and Cleopatra, II, 2, v. 190.
92. Laqueari a. V. Eneida, I, 726:
        dependent lychni laquearibus aureís
incensi, et noctem flammis funalia vincunt.
98. Cena rústica. V. Milton, Paradise Lost, IV, 140.
99. V. Ovídio, Metamorfoses, VI, Filomela.
100. Cf. Parte III, v. 204.
115 . Cf. Parte III, v. 195.
118. Cf. Webster: «O vento ainda vem dessa porta?»
126. Cf. Parte I, vv. 37, 48.
138. Cf. o jogo de xadrez em Women beware Women, de Middleton.


III. O SERMÃO DO FOGO


176. V. Spenser, Prothalamion.
192. Cf. The Tempest, I, 2.
196. Cf. Marvell, To His Coy Mistress.
197. Cf. Day, Parliament of Bees:
«Quando de repente, atento, ouvirás,
«Um ruído de trompas e de caça, que há-de trazer
«Ateão a Diana na nascente,
«Onde todos verão a sua pele nua...»
199. Não conheço a origem da balada da qual estes versos são retirados: foi-me comunicada de Sydney, na Austrália.
202. V. Verlaine, Parsifal.
210. As passas eram cotadas a um preço «custo seguro e frete para Londres»; e a Ordem de Carga, etc., deveriam ser entregues ao comprador após liquidação da ordem de pagamento à vista.
218. Tirésias, embora seja um simples espectador e não propriamente uma «personagem», é, contudo, a mais importante figura no poema, unindo todo o resto. Assim como o mercador zarolho, vendedor de passas, se funde com o Marinheiro Fenício, e este último não é inteiramente distinto de Ferdinand, Príncipe de Nápoles, também todas as mulheres são uma mulher, e os dois sexos reúnem-se em Tirésias. O que Tirésias , de fato, é a substância do poema. O passo completo de Ovídio é de grande interesse antropológico:
 ...Cum Iunone iocos et «maior vestra profecto est
Quam quae contingit maribus», dixisse, «voluptas.»
Ill a negat; placuit quae sit sententia docti
Quaerere Tiresiae: venus huic erat utraque nota.
Nam duo magnorum viridi coeuntia silva
Corpora serpentum baculi violaverat ictu
Deque viro factus, mirabile, femina septem
Egerat autumnos; octavo rursus eosdem
Vidit et «est vestrae si tanta potenti a plagae»,
Dixit «ut auctoris sortem in contrari a mutet,
Nunc quoque vos feriam!» percussis anguibus isdem
Forma prior rediit genetivaque venit imago.
Arbiter hic igitur sumptus de lite iocosa
Dieta Iovis firmat; gravius Saturnia iusto
Nec pro materia fertur doluisse suique
ludicis aeterna damnavit lumina nocte,
At pater omnipotens (neque enim licet inrita cuiquam
Facta dei fecisse deo) pro lumine adempto
Scire futura dedit poenamque levavit honore.
221. Isto pode não aparecer tão exato como os versos de Safo, mas eu tinha em mente o pescador «costeiro» ou «de chata», que regressa ao cair da noite.
253. V. Goldsmith, a canção em The Vicar of Wakefield.
257. V. The Tempest, como acima.
264. O interior de St. Magnus Martyr é a meu ver um dos melhores de entre os interiores de Wren. Ver The Proposed Demolition of Nineteen City Clwrches (P. S. King Son, Ltd.).
266. A Canção das (três) filhas-do-Tamisa começa aqui. Do verso 292 até ao verso 306 inclusive elas falam à vez. V. Gotterdämmenrung, III, 1: as filhas-do-Reno.
279. V. Froude, Elizabeth, vol. I, cap. 4, carta de De Quadra para Filipe de Espanha:
«Pela tarde estávamos numa barca, a observar os jogos no rio. (A Rainha) estava só com Lord Robert e comigo na popa, quando os dois começaram a dizer tolices, e de tal maneira que Lord Robert acabou por dizer, estando eu presente não havia razão para não casarem se tal fosse do agrado da rainha.»
293. Cf. Purgatorio, V. 133:
            «Ricorditi di me, che son la Pia;
            "Siena mi fe", disfecemi Meremma.»
307. V. Confissões de Santo Agostinho: «cheguei então a Cartago, onde um caldeirão de amores ímpios cantou em redor de meus ouvidos.»
308. O texto completo do Sermão do Fogo de Buda (que corresponde em importância ao Sermão da Montanha) de onde estas palavras são retiradas encontra-se traduzido em Buddlrism in Translation (Harvard Oriental Series), do falecido Henry Clarke Warren. O Sr. Warren foi um dos grandes pioneiros dos estudos budistas no Ocidente.
309. De novo das Confissões de Santo Agostinho. A colocação destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental como culminação desta parte do poema não é um acidente.


V. O QUE DISSE O TROVÃO


Na primeira parte da Parte V são usados três temas: a jornada para Emaús, a aproximação à Capela Perigosa (ver livro da Sra. Weston) e a atual decadência da Europa Oriental.
357. Este é o Turdus aonalasclrkae pallasii, o tordo-eremita que ouvi na província do Quebec. Chapman afirma (Handbook of Birds of Eastern Nortlz America) que «onde ele se sente melhor é em bosques isolados e em esconderijos de vegetação espessa... As suas notas não são notáveis pela variedade ou pelo volume, mas são inigualáveis na pureza e na doçura do tom e na delicada modulação». A sua «canção de água-gotejante» é apropriadamente célebre.
360. Os versos seguintes foram suscitados pelo relato de uma das expedições ao Antártico (não me lembro de qual, mas penso que foi uma das expedições de Shackleton): dizia-se que o grupo de exploradores, no limite das suas forças, tinha a constante ilusão de que havia mais um membro para além dos que realmente conseguiam contar.
366-76. Cf. Hermann Hcsse, Blick ins Chaos: «Schon ist halb Europa, schon ist zumi ndcst der halbe Osten Europas auf dem Wcge zum Chaos, fährt bctrunkcn im hciligen Wahn am Abgrund entlang und singt dazu, singt bctrunkcn und hymnisch wie Dmitri Karamasoff sang. Ucbcr diese Lieder l acht der Bürger bcleidigt, der Hei lige und Seher hört sie mit Tränen.»
401. «Datta, dayadhvam, damyata» (Dar, simpatizar, dominar). A fábula sobre o significado do Trovão encontra-se em Brihadaranyaka-Upanislwd, 5, 1. Encontra-se uma tradução em Deussen, Sechzig Upanislzads des Veda, p. 489.
407. Cf. Webster, The White Devil, V, 6:
                                                         «...hão-de voltar a casar
Antes de o verme furar a vossa mortalha, antes de a aranha
Vos tecer nos epitáfios uma tênue cortina.»
411. Cf. Inferno, XXXIII, 46:
                «edio senti chi avar l' uscio di sotto
                all' orribile torre.»
Também F. H. Bradley, Appearance mui Reality, p. 306:
«As minhas sensações externas não são menos privadas para mim do que os meus pensamentos ou os meus sentimentos. Em qualquer dos casos a minha experiência confina-se ao meu próprio círculo, um círculo fechado ao exterior; e, de modo igual para o que respeita a todos os seus elementos, cada esfera é opaca para as outras que a rodeiam. [...] Em suma, considerado como uma existência que se manifesta numa alma, a totalidade do mundo é para cada um privada e peculiar a essa alma.»
424. V. Weston, From Ritual to Romance; capítulo sobre o Rei Pescador.
427. V. Purgatorio, XXVI, 148.
«"Ara vos prec per aquella valor
"que vos condus ai som de l'escalina,
"sovenha vos a temps de ma dolor."
"Poi s' ascose nel foco che li affina.»
428. V. Pervigilium Veneris. Cf. Filomela nas Partes II e III.
429. V. Gérard de Nerval, soneto El Desdichado.
431. V. Spanish Tragedy, de Kyd.
433. Shantih. Repetido como aqui , um encerramento formal de um Upanishad. «A Paz que vai além do entendimento» é o nosso equivalente para esta palavra.

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