o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

TODOS SÃO POETAS, EXCETO OS QUE NÃO SÃO

                                aqui onde o escuro chegou rente
então aqui deve ser onde se encerra o escuro
doris lessing

chegamos a mais um dezembro e convém não só puxar conversa, mas também avaliar e fazer prognósticos. e aproveitem, eu estou otimista. penso que a poesia está em excelente forma. dá sinais de uma exuberância surpreendente. ainda que outro dia, ou melhor, há um ano, por aí, fiquei mesmo impressionado, e talvez um pouco perturbado... a posse de ferreira gullar à academia brasileira de letras. eu, que sou perfeitamente mortal, esperava morrer sem ver isso. e não sei se realmente vi, ou se estava, como aquele acadêmico na plateia, com os olhos fechados e parecendo dormir. gullar ainda é capaz dessa ironia. mas, de dentro daquele fardão asséptico ao novo, o que mais terá a dar à poesia? mudar-se para a casa de machado, para um gullar muito à vontade lendo ali o seu discurso, faz parecer o “destino” natural do poeta (de todo poeta; o que não consegue fracassa). ao mesmo tempo não se pode ficar sem perceber a verdadeira força do que gullar vive. ele não deixa dúvidas de que é capaz de continuar. de ir adiante. ainda que sobre isso ele não tenha dito nada, e eu tenha a mente tomada por essas fantasias. me concentrei nos sintomas. a posse, a festa, a pose. já as fraturas, as lesões, os cortes me escaparam. o modo lento e cauteloso. as frases breves. a fadiga. o poeta em seu triunfo ameaçado pela pacata pungência. tudo tão pequeno e tão grandioso ronda o poeta para fechar a sua obra. seu destino verdadeiro. o que inclui rastrear os próprios insucessos e colapsos até o êxito e a ascensão. a poesia está em excelente forma porque pode estar em forma. bem como a minha contínua incapacidade de prever – e, pior, avaliar – está aí porque está aí. tão certo como não ocorre mais a ninguém ir a uma banca de jornal comprar uma revista de mulher nua, e ter que disfarçar a compra “imoral” tendo que ao mesmo tempo adquirir outras publicações “sérias”. coube à revista playboy vestir as “coelhinhas” para termos outra vez que imaginar a silhueta do mistério. por sua vez a literatura terá que vir com toda a carga de variadas, revezadas e diversas pirações. em 2015 a editora autêntica extraordinariamente republicou numa só caixa  por amor ao deus dos hospícios  a esgotadíssima maura lopes cançado. o anúncio infernal, perturbador, amargo da vida. e para além da loucura, venha a nós, leitores do abismo, o erotismo da grande poesia, do romance, do teatro a partir das ruas, das noites, dos precipícios – e não da insuportável modelagem comercial da obra, desde a capa, como ainda se faz impunemente à clarice, a machado e a outros tantos. puxar esse pesado véu para revelar o imprevisto, o inesperado, de uma só vez, como faz com a fotografia a mexicana graciela iturbide: vestir uma mulher (a obra) de iguana em vez de um prosaico chapéu. estranho & bonito, terno & perverso. que na arte os extremos se encontrem; os extremos se transformem em seus opostos.

Ferreira Gullar toma posse na Academia. Foto: Fábio Mota/Estadão Conteúdo

Hospício é Deus e O Sofredor do Ver, de Maura
Lopes Cançado, pela Editora Autêntica.

 
Nossa Senhora das Iguanas, Graciela Iturbide.


ney ferraz paiva

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