o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

POESIA DE AMOR – AMOR PELA POESIA: E NÃO HÁ PROVAS DE QUE EROS NOS PERDOA


Os poetas brasileiros não morrem em revoluções.
Quando elas acontecem, os bardos nacionais
preferem segurar os empregos.
Na Revolução de 30 não morreu um só Dante
de Cascadura para contar como é descer ao inferno.
Fernando Monteiro, Vi uma foto de Anna Akhmátova


UM GRANDE PROBLEMA talvez não mais da Poesia e sim dos poetas no Brasil, dos poetas que vão aparecendo cada vez mais cedo com novos livrinhos gestados na toxidade noturna da internet ou do mercado editorial – esse que principalmente anuncia a baixo custo e sob demanda a um país que não lê, que não lê sobretudo poesia, o Grande e Desmesurado Poeta do Dia para uso compulsório do leitor incauto, pois bem, talvez o grande problema, que também muito contribua para que essa maquinaria opere observando leis, editais, prêmios, festas e etiquetas próprias, deixando à parte a divulgação, circulação, ampliação e discussão da Poesia, seja o fato de que os poetas, entregues a seus transes festivos, amem cada vez mais não a Poesia (substância maior que o Estado parece querer banir com as suas instituições desestabilizadoras da cultura), mas apenas a “sua” diluída e hibridizada poesia, conectada a seu próprio umbigo e revestida de desimportância exemplar. Poetas amantes de si mesmos. Jovens e não velhos sem idade, que bem ao contrário do vinho, não melhoram com o passar dos anos, apenas envelhecem, pioram a safra e reprisam o ciclo decadente. Atados a uma mesma teia cada vez mais estranha à Poesia e a seu desenvolvimento como organismo relevante. E de igual modo que falar inglês não resulta no estabelecimento de uma comunicação global, o declínio da Poesia também nos ambientes de cultura aparentemente cultos não se reverte pelo anúncio e acúmulo sucessivo dos nomes e dos respectivos “livros à mão cheia”. O mercado, neste caso também, não de amor, mas de amplo negócio, não é a melhor reação. Ele não tem como fecundar, renovar e ampliar as possibilidades de acesso e circulação, incendiando corações e mentes dos novos leitores com a Poesia, este Amor que quando se revela é sempre uma descoberta revolucionária – “crescer, criar, subir”. Amor pela Poesia. Nele e através dele, diz Mário Faustino, não há a imprecisão do “etc”. Com o surgimento da internet e da tecnologia digital esse Amor não prosperou. Ampliaram-se às escâncaras os egos invioláveis. Os tributos ao “eu” e ao “meu”. Território de livre circulação de toda sorte de investidas, a Poesia perde espaço. Apequenada, energia reduzida à baixa intensidade, o mercado a colocou sob sua cúpula como objeto estático, dependente e isolado. E apenas pelo efeito ilusório das vitrines a Poesia aparenta ter sido prolongada em redes como os outros segmentos. Resulta disso que raros livros quase imperceptivelmente como este Vi uma foto de Anna Akhmátova, Fernando Monteiro, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2009, a prorrogam com força e intensidade próprias desde uma ida banal à padaria na esquina, ao bar ou à praia até uma viagem incomensurável para o outro lado do mundo, com o qual os grandes mercados turísticos das Festas, Feiras e Bienais estão de passos firmados e não trocados e por isso não têm como enlaçar as mãos num mesmo momento de afeto. Inverossímil Viagem de Amor. Não apenas por um deslocamento subjetivo entre Brasil, Ucrânia e Rússia, é o que esta escrita promove, sem medir nem desmentir a distância entre uma Akhmátova e uma Clarice (lado a lado a outras articulações: Hilda Hilst, Adélia Prado, Olga Savary, Marize Castro) – não mais uma viagem pelo “Mesmo” como tantas histórias a contar ou a representar os dias adversos, aqui e alhures; não mais um “poema-clichê de sofrimentos/de poetas perseguidos”. Antes, uma poesia de deslocamentos, que reflete inclusive as condições de leitura de duas grandes escritoras em variados e revezados trânsitos de importância, tentando escapar sobretudo ao intimismo a que sempre são lançadas. Fernando Monteiro não ilustra quem tenha sido Anna ou Clarice. Ele relaciona. Parte de uma imagem a outra, sobrepondo-as, sem atá-las uma à outra. De uma Anna correlata a uma Clarice. Do Recife intercambiável a Tchechelnik Moscou Maceió Paris Pequim ou a que não lugar mais seja – ali onde somem. Na foto como no poema o que se quer abordar são terras desconhecidas. Conectar o que está por vir. Não a paisagem e sim a vida como uma estranha jornada. “Você pode ver numa foto o que não está nela”. Variações e revezamentos do olhar. O conciso. A nuance. O espelho. “Se eu errei ao nascer,/ela errou ao dar a luz./Se eu estou ainda aqui,/ela não está mais”. Ver Anna Akhmátova implica ver o impreciso que se é: episódios imperfeitos, evanescentes de calmaria e indiferença. Ainda que Clarice tenha flertado como jornalista com o mundo insípido da moda, não posou nunca como a mulher de um futuro ideal, utópico, lunar (“Princesa da Lua, por que você voltou?”), senão como a sobrevivente desfavorecida num ambiente de cultura que nem mesmo ainda hoje pode admitir uma “Esparta moderna”. A imagem de uma se conecta a outra, duas (quantas?) replicadas mulheres desmunidas de afeto, proteção, luxo, lançadas ao jogo de se prender e se soltar antes de se esgotarem os prazos. Embaralhadas e sempre dispostas ao combate. Escapar às ratoeiras domésticas da casa (apanhar depois de cozinhar bolos etc.) ou às ratoeiras das vitrines da vida cultural moderna. “Clarice não podia ter saudade/ de dois meses de vida em Tchechelnik,/ na Ucrânia de árvores nacaradas”. De que poderia ter saudade Clarice? “da casa entre movelarias e sebos/vinda da Ucrânia para o coração/deste bairro de esquecidos”, “do centro da cidade onde viveu/a descoberta do mundo no Recife”, “de imigrantes deslocados”? Clarice-criança não tinha como saber que moveria esse mundo morro acima para o lado da modernidade. Essa Clarice de quem temos que ter saudade. Da adolescente que deu a ver a linguagem daí há pouco definida mundo afora como “clariceana”, a que de cara soube escapar ao modo burocrático de lidar com a escrita no espaço público (jornalismo, universidade, diplomacia), onde a mulher ainda ocupa funções anônimas, e ela nos chega muito mais como singularidade a se prorrogar do que como originalidade pueril. Quantas Clarices aí? (“ainda que vivas outra vida, não há saída”). A casa, o sobrado dos Lispector ficou só. Como tende a desaparecer uma outra casa habitada por fantasmas (Volódia, Nikolai, Elena...), onde Akhmátova reforma aqueles versos: “Esta mulher está só” vira: “Esta mulher está no fim”. De que vida Akhmátova poderia ter saudade se perdeu todas de antemão? "A minha vida foi uma roda de enganos". Na roda de azar ela perde tudo e todos. Lev, o filho, que vieram buscar como o pai e o amante sem acusação formal, sem julgamento, para ser morto? Ela própria uma mulher com vontade de morrer, encadeada a tantos outros finais, a coisas que se partem sem conserto algum. Mas não tem escolhas: terá que engendrar a si mesma como poeta e ocupar um lugar nunca antes reservado à mulher na literatura russa. Desenfreada, irreverente, desconcertante – em posição de permanente ataque e afrontamentos, ativa, que, portanto, prejudicou a si própria. Nos espaços codificados da guerra o êxito da mulher se duplica em um fracasso ainda mais profundo. (“tantos poetas mortos,/tudo fazia crer/que algo andou errado/muito errado). A Poesia é um esgotamento que se reveza e ramifica desde o corpo até o poema. Fernando Monteiro o inventa a seu modo – o modo do grande poeta que se põe a desfalecer, ele mesmo, no que escreve. A fadiga de um poema longo, como almejava Mário Faustino e que Monteiro acata, realiza e sai de cena, pois agora que vai escrever sequer pode escovar os dentes. Quede o poeta? Irreconhecível no fedor intenso do livro. Pouco dele resta aí como autor, mas um pedaço generoso como escritor, no livro de uma editora não comercial, de Fundação sem fundos (leia-se: grana), mas de gente atenta e sensível. Não entra nem a gravata, sequer a foto de orelha. Nada se vê como figurações; tudo é Poesia. Amor precipitado que Fernando Monteiro nutre pelo livro que resolveu fazer para ver de perto uma vez mais Anna Akhmátova e mirar a seu lado ("Você pode ver numa foto o que não está nela") Clarice Lispector, os olhos atentos a todos os grandes livros que amou, entre eles um “muito velho”, “de capas vermelhas”, PÉROLAS DA POESIA RUSSA escrito “na lombada desbotada”  nunca deixado para trás.

Anna Akhmátova e Clarice Lispector

NEY FERRAZ PAIVA 

Um comentário:

  1. Poeta Ney Ferraz Paiva, quero saber de vc. O q anda fazendo e escrevendo. Lembra de "Os cavalos de Dom Ruffato"? e da noite ébria q bebemos em Recife? Tanto tempo, não sei qdo, mas aconteceu. Teus dois livros de Recife tenho comigo para releituras. Vou atrás do seu "Arrastar um Landau debaixo d'água" da Patuá do meu amigo Eduardo lacerda. Deixei a distranter-e-sina, e estou há sete anos em Sampa. Envia, por favor, seu endereço. Quero encaminhar meu livro premiado e editado em Portugal, recentemente "De Dentro de Mim Partiu a Última Caravela". Pode encaminhar ao meu e-mail: rube.rv2@hotmail.com

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