o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Em louvor do Espanto

Nada nos espanta porque nada é novo. Não estamos jogados no meio das coisas, mas no meio de instrumentos. Esses instrumentos são, no fundo, prolongamentos e projeções do nosso próprio eu. As máquinas são nosso braço prolongado, os veículos nossas pernas prolongadas, e o mundo em geral é uma projeção do nosso eu sobre a superfície calma e abismal do nada. As feras que ainda aparecem são cachorros projetados por nós para guardar nossas casas. Os trovões que ainda trovejam são movimentos de ar projetados por nós para carregar nossos aviões em voo fútil. As árvores que ainda brotam são matéria-prima projetada por nós para ser transformada em instrumento. E o “outro” que compartilha conosco esse mundo instrumental é, ele próprio, instrumento, sendo fornecedor ou consumidor, parceiro ou concorrente. Nossa atitude diante desse mundo dos instrumentos é a atitude do déjà vu, a atitude do “já vi tudo”. Os instrumentos não nos advêm da penumbra misteriosa, não são venturosos. Pelo contrário, estão aqui, diante da nossa mão para servir-nos. Tomados de nojo dessa servilidade somos nós que saímos em busca desesperada da aventura, desautenticando, por esse nosso movimento deliberado, a própria essência da natureza, que é um “advir”, e não um “ser buscado”. Essa nossa busca inautêntica de aventura, que é no fundo uma fuga do tédio, e que caracteriza tão bem a situação atual, é já uma tentativa fracassada de responder à pergunta “por que não me mato?”. A transformação do mundo espantoso das coisas milagrosas no mundo nojento dos instrumentos tediosos é uma transformação lenta. Levou milênios para realizar-se e ainda não está completa. Ainda restam, na situação atual, grandes províncias “subdesenvolvidas”, grandes ilhas do maravilhoso a flutuar no oceano dos instrumentos. Mas, protegidos como somos pela muralha dos instrumentos, não nos ameaçam esses restos de um mundo ultrapassado. E embora continuemos avançando contra essas regiões mal exploradas com rapidez impiedosamente acelerada, não nos seduz esse avanço, já lhe conhecemos o resultado: transformação do maravilhoso em tedioso. Nesse sentido, sim, podemos dizer que o processo de transformação do espanto em tédio está completado, por assim dizer por antecipação do resultado. Ainda resta muito a fazer, mas já não vale a pena fazê-lo. É nesse clima que Camus formula a sua pergunta, e é nesse clima que grande parte da nova geração vegeta.

[...].

Creio que somos uma geração em transição, e que assistimos ao fim de uma época e ao surgir de outra. A Idade Moderna transformou a natureza em parque industrial e tornou-a tediosa. Esse tédio de fin de siècle nos faz perguntar: “por que não me mato?”. Mas sentimos as dores de parto de uma Idade nova. A natureza esvaziada, e os métodos de sua investigação, como ciência e tecnologia, tornaram-se desinteressantes existencialmente, mas surge um fascínio novo, ainda não articulável, mas existencialmente sorvível. O perigo desse novo fascínio reside no seu possível antiintelectualismmo, e a tarefa da nossa geração é intelectualizá-lo. É uma tarefa nobre, e nela reside, ao meu ver, a resposta à pergunta: “por que eu não me mato?”. É uma tarefa espantosa. Aristóteles diz: Propter admirationem enim et nunc et primo homines principiabant philosophari (É pelo espanto que os homens começaram a filosofar antigamente e hoje em dia). Enquanto esse espanto da filosofia persistir, não há motivo para matar-se.




Vilém Flusser – Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 25 de abril de 1964.
Colagem Ney Ferraz Paiva