o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 14 de dezembro de 2014

Para Um Retrato de Cauby Cruz Considerações Sobre Um Retrato



Este trabalho retoma a poesia de Cauby Cruz, atravessa-a, faz ecoá-la – mas também lida com o embargo e o silêncio em torno dela. O próprio poeta surpreendido e desconfortável na sua mudez. Ofuscado pelos notáveis concorrentes, tão opostos a seu pequeno fracasso. Engessado em seu único livro, abriu-se um programa póstumo para ele. Em todo caso, procuro uma fala outra que daí se desprenda, e consiga tecer (ou destecer) o idioma de dias ainda tomados por tantas derivas artísticas, os anos 1940 e meados de 1950 em Belém. Um período notável prefigurativo de grandes obras literárias: Chove nos Campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir, 1941, A Linha Imaginária, de Ruy Barata, 1951, O Estranho, de Max Martins, 1952, O Homem e Sua Hora, de Mário Faustino, 1955. Tempo de companheirismos e aproximações, mas também de distanciamentos e rivalidades literárias entre jovens colegas – Ruy Barata, Max Martins, Jurandir Bezerra, Mário Faustino, Benedito Nunes, Alonso Rocha, Cauby Cruz. O liame de uma desconexão. Este o tênue mote deste trabalho, que pretende fazer um perfil biográfico com pitadas de ensaio, no qual se procura questionar as relações tradicionais entre poesia, imagem, fotografia, a partir dos termos críticos presentes no livro Filosofia da Caixa Preta – Ensaios Para uma Futura Filosofia da Fotografia, de Vilém Flusser. Uma espécie de reaparição no espaço de renovadas questões, como se algo se devolvesse, se mostrasse de volta no processo de aproximação e acolhimento entre literatura e fotografia e dos seus imprevisíveis desdobramentos. Um aparte talvez disperso no burburinho – um desvio no desvio, um desnível de fluidez do acontecimento. Mas que acontecimento? Tornar-se alguém que escreve... A paixão de juventude pela poesia... o quanto essa respiração amigável tende a expelir, somados os anos, o estático, estreito, asfixiante – para que se possa ir longe. Mas para Cauby, o que resultou disso, a única aparência que lhe restou, é a do escritor que passa toda uma vida sem escrever. Então não seria melhor dizer que o que daí se desprende são expectativas e ilusões deslocadas, recambiadas, transferidas? A passagem dos anos 1940-1950 e seus monstros legendários – o pós-guerra, as grandes incertezas existenciais, a crise aguda da modernidade. Há por aí indícios. Rastros. Sortilégios. Todo retorno é sempre um ponto de partida. O presente e o passado nos povoam. Ouçamos as vozes – o que elas não temem, falam, passam de suas cartas terríveis, suas fotografias perigosas... É com elas que pretendo compor um mosaico, sempre díspar, do ambiente simples e rudimentar, árido e ermo; dos tons de uma cultura e de uma época; e do aspecto das sombras que Oswaldo Goeldi extraiu da mesma paisagem onde Cauby Cruz viveu e pretendeu desenvolver seu projeto de escrita, e que inapelavelmente sucumbiu. Entre retomada e inacabamento. A obra sem trajetória e sem cronologia, corroída no tempo e no espaço do discurso, e que se coloca a falar de outro modo, a mostrar-se sem se manter o mesmo: viajante incondicional, boêmio, jogador, que escapou cada vez mais de ser poeta. Um contemporâneo que não contemporiza, não apazigua, não é entrega – é resistência, sobretudo aos modelos disponíveis de interpretação. Rompe com a acumulação de valores instrumentais e almeja outra memória – a do irracional, corporal e primitivo.


 


Ney Ferraz Paiva
* Projeto contemplado na 13ª edição da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística do Instituto de Artes do Pará – 2014.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

POR QUE ELE NÃO DIZ NADA NO RETRATO?


Adorno senta para se fotografar
(ele não está exatamente sentado
ele não está exatamente em pé)
acho engraçado ele parece um pato
encoberto por uma camada de piche
uma ave austera emplumada
a câmera capta o corpo falso
encapsulado fixo na moldura
uma ave que jamais vai voar –
senta-se no quadro em que
Dürer retratou a Melancolia



 

ney ferraz paiva