o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 2 de fevereiro de 2013


Na noite em que Edgar Poe falhou ao ler o Corvo

Por Charles Baudelaire

Nessa última visita a Richmond ele fez duas leituras públicas. É preciso dizer uma palavra a respeito dessas leituras que representam um grande papel na vida literária dos Estados Unidos. Nenhuma lei opõe-se a que um escritor, um filósofo, um poeta, alguém que saiba falar, anuncie uma leitura, uma dissertação pública sobre um objeto literário ou filosófico. Ele aluga uma sala. Cada um paga uma contribuição pelo prazer de ouvir emitir ideias e compor frases tais quais. O público comparece ou não. Neste último caso, é uma especulação fracassada como qualquer outra especulação comercial aventurosa. Apenas quando a leitura é feita por um escritor célebre há fluência, e é uma espécie de solenidade literária. Vê-se que essas são as cátedras do Collège de France postas à disposição de todo mundo. Isso faz pensar em Andrieux, em La Harpe, em Baour-Lormian, e lembra essa espécie de restauração literária, que se fez após o apaziguamento da Revolução Francesa nos liceus, ateneus e cassinos.

Edgar Poe escolhe como objeto de seu discurso um tema que é sempre interessante e que foi muito debatido entre nós. Ele anunciou que falaria do princípio da poesia. Existe há muito tempo, nos Estados Unidos, um movimento utilitário que quer arrastar a poesia como o resto. Há poetas humanitários, poetas do sufrágio universal, poetas abolicionistas das leis sobre os cereais, e poetas que querem que se construam work-houses. Juro que não faço nenhuma alusão a pessoas deste país. Não é culpa minha se as mesmas disputas e as mesmas teorias agitam diferentes nações. Em suas leituras, Poe declara-lhes guerra. Ele não defendia, como alguns sectários fanáticos insensatos de Goethe e outros poetas marmóreos e anti-humanos, que toda coisa bela é essencialmente inútil; mas ele se propunha sobretudo como objeto e refutação do que ele chamava espirituosamente a grande heresia poética dos tempos modernos. Essa heresia é a ideia de utilidade direta. Vê-se que, de um certo ponto de vista, Edgar Poe dava razão ao movimento romântico francês. Ele dizia: nosso espírito possui faculdades elementares cujo objetivo é diferente. Umas aplicam-se a satisfazer a racionalidade, as outras preenchem um objetivo de construção. A lógica, a pintura e a mecânica são os produtos dessas faculdades. E como temos nervos para aspirar os bons odores, nervos para sentir as belas cores, e para nos deleitar ao contato dos corpos lisos, possuímos uma faculdade elementar para perceber o belo; ela tem seu próprio objetivo e seus próprios meios. A poesia é o produto dessa faculdade; ela se dirige ao sentido do belo e não a um outro. É fazer-lhe injúria submetê-la ao critério das outras faculdades, e ela nunca se aplica a outras matérias senão àquelas que são necessariamente o alimento do órgão intelectual ao qual ela deve seu nascimento. Que a poesia seja posterior e consequentemente útil isso está fora de dúvida, mas não é esse seu objetivo; isso vem a mais! Ninguém se surpreende que um mercado, um embarcadouro ou qualquer outra construção industrial satisfaça às condições do belo, embora não seja esse o objetivo principal e a ambição primeira do engenheiro ou do arquiteto. Poe ilustrou sua tese através de diferentes trechos de crítica aplicados aos poetas, seus compatriotas, e por recitações de poetas ingleses. Foi-lhe pedido a leitura do seu Corvo. É um poema do qual os críticos americanos falam muito. Falam dele como de uma notável peça de versificação, de ritmo vasto e complicado, um sábio entrelaçamento de rimas que satisfaz seu orgulho nacional um pouco invejoso das proezas européias. Mas parece que o auditório ficou desapontado com a declaração do seu autor, que não sabia fazer brilhar sua obra. Uma dicção pura, mas uma voz surda, uma melopeia monótona, uma negligência muito grande dos efeitos musicais que sua pena sábia tinha de certo modo indicado, satisfizeram pouco aqueles que tinham pensado como uma festa a oportunidade de comparar o leitor com o autor. Isso não me surpreende de modo algum. Com frequência notei que poetas admiráveis eram execráveis atores. Isso acontece muito com os espíritos sérios e concentrados. Os escritores profundos não são oradores, e infelizmente é assim.

Obras Estéticas, Filosofia da imaginação criadora. Editora Vozes, 1993.
Tradução de Edison Darci Heldt

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