o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 19 de agosto de 2012


"E QUANTO A VOCÊ? QUE SÃO SUAS 
      'MÁQUINAS DESEJANTES’?" 

Os leitores da revista Temps Modernes encontrarão aqui um estranho dossiê. Pierre Bénichou expõe alguns resultados de sua pesquisa sobre os masoquistas (os "verdadeiros" masoquistas, aqueles que se infligem tratamentos muitas vezes graves e sanguinários). Mas, para essa pesquisa, ele não se dirige aos masoquistas, não os leva a falar. E, todavia, eles falariam de bom grado. Mas, ao falar, eles entrariam num circuito pré-formado, pré-fabricado: o circuito de seus mitos e fantasmas, e até mesmo o circuito de uma psicanálise sobre a qual, atualmente, todo mundo tem uma ideia mais ou menos precisa, de modo que, de antemão, cada um sabe vagamente aquilo que dele se espera, e responde Édipo ou papai-mamãe logo que é interrogado. Enfim, todo esse mundo de interioridade do qual já estamos profundamente enfadados.
            Pierre Bénichou substitui a trindade psicanalítica pai-mãe-eu por uma trindade bem diferente, tira-prostituta-cliente. Seria precipitado dizer que ambas são a mesma trindade. Em vez do sujeito que fala e do psicanalista que eventualmente escreve para publicações científicas, tem-se o sujeito que não fala, que não tem o direito de falar; ele apenas escreve, escreve as suas aspirações e seus pedidos, passa um pequeno bilhete no qual emite críticas sobre a última sessão e expõe os seus projetos para a próxima. Em contrapartida, a prostituta e o tira falam. A pesquisa de Pierre Bénichou acrescenta à psicanálise aquilo que atualmente lhe faz tanta falta: uma nova relação com o Fora.
            É tudo o que se quer esperar no que concerne à relação psicanalítica: uma inversão, uma caricatura, um extraordinário  retraimento. O masoquismo é a perversão por excelência que passa pela forma de um contrato, mesmo que seja próprio desse contrato ser a cada vez transbordado, desviado pelo capricho ou pela autoridade superior da toda poderosa "Dona da casa". (Pierre Bénichou faz referência ao pagamento mensal que dá direito a um número determinado de sessões.) É que, como na psicanálise, o contrato toma aqui uma dimensão que não encontra equivalente alhures: não há mais distinção possível entre as partes contratantes e o objeto sobre o qual o contrato incide. Como diz Pierre Bénichou," o desvio sexual propriamente dito é o único domínio no qual instaura-se uma relação direta. A prostituta faz mais que fornecer um objeto, ela é esse objeto. Matéria viva que escuta, grava, responde, questiona, decide; droga que fixa a sua própria dose, bola da roleta que escolhe a casa na qual vai parar, obviamente, sempre a errada. Ela tudo viu, tudo ouviu … E nada entendeu ? Pouco importa, ela conta, ela sabe do que está falando, ela "conhece". Das duas relações, a perversa e a psicanalítica, qual delas desfigura a outra?
            Durante muito tempo a psiquiatria foi uma disciplina normativa, falando em nome da razão, da autoridade e do direito, numa dupla relação com os asilos e os tribunais. Depois veio a psicanálise como disciplina interpretativa: loucura, perversão, neurose; procurava-se descobrir o que isso "queria dizer", por dentro. Hoje, reclamamos os direitos de um novo funcionalismo: não mais o que quer dizer, mas como isso marcha, como isso funciona. É como se o desejo não quisesse dizer mais nada e fosse um agenciamento de pequenas máquinas, máquinas desejantes, sempre numa relação particular com as grandes máquinas sociais e as máquinas técnicas. E quanto a você? Que são suas máquinas desejantes? Num difícil e belo texto, Marx invocava a necessidade de pensar a sexualidade humana não apenas como uma relação entre dois sexos humanos, masculino e feminino, mas como uma relação "entre o sexo humano e o sexo não humano". Ele, evidentemente, não se referia aos animais, mas ao que há de não-humano na sexualidade humana: as máquinas  do desejo. Talvez a psicanálise tenha permanecido numa idéia antropomórfica da sexualidade, e isso até na sua concepção do fantasma e do sonho. Um estudo exemplar, como o de Pierre Bénichou, apresentando máquinas masoquistas reais (também existem máquinas paranóicas, máquinas esquizofrênicas reais etc.), abre o caminho para tal funcionalismo ou para uma análise, no homem, do "sexo não humano".
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Gilles Deleuze
Tradução de Fabien Lins



Introdução ao texto de Pierre Bénichou, "Sainte Jackie, Comédienne et Bourreau", Les Temps Modernes, nº 316, novembro de1972,  pp. 854-856.
K.Marx, Critique d e la philosophie de l'Etat d e Hegel, in Œuvres complètes, IV, Paris, Gallimard, coll. "Bibliothèque de la Pléiade", pp. 182-184.

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