o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Destruir o  mistério é com efeito a maior das infâmias - 
destruí-lo puramente claro. E como é arrepiadora e
genial, por isso mesmo,a concepção do seu Fausto!...
de uma carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa em 5-2-1916 


Não leio já; queria abrir um livro
E ver, de chofre, ali, a ciência toda...
Queria ao menos poder crer que, lendo,
E em prolongadas horas lendo e lendo,
No fim alguma cousa me ficava
Do essencial do mundo, que eu subia
Até ao menos cada vez mais perto
Do mistério... Que ele, inda que inatingido,
Ao menos dele que eu [me] aproximava...
Não fosse tudo um (...)
Como uma criança que a fingir sobre
Uns degraus que pintou no chão...

Não leio. Horas intérminas, perdido
De tudo, salvo de uma dolorosa
Consciência vazia de mim próprio,
Como um frio numa noite intensa,
Em frente ao livro aberto /vivo e  morro/...
Nada... E a impaciência fria e dolorosa
De ler p’ra não sonhar, e ter perdido
O sonho! Assim como um (...) engenho
Que, abandonado, em vão trabalha ainda,
Sem nexo, sem propósito, eu môo
E remôo a ilusão do pensamento...
E hora a hora na minha estéril alma
Mais fundo o abismo entre meu ser e mim

Ditoso o tempo em que eu sonhava, e às vezes
Eu parava de ler para seguir
Os cortejos em mim... Amor, orgulho,
 – Crenças inda! – pintavam os meus sonhos...
E com muita insistência [?], eu era (...)
O amante de belezas (...)
E o rei de povos vagos e submissos;
E quer em braços que eu sonhava, ou entre
As filas (...) prostradas, eu vivia
Sublimes nadas, alegrias sem cor.

Mas
Hoje nenhuma imagem, nenhum vulto
Evoco em mim... Só um deserto aonde
Não a cor dum areal, nem um ar morto
Posso sonhar... Mas tendo só a ideia,
Tendo da cor o pensamento apenas,
Vazio, oco, sem calor nem frio,
Sem posição, nem direção , nem (...)
Só o vazio lugar do pensamento...





Fernando Pessoa, FAUSTO, Tragédia Subjetiva
imagem: Yeong Deok

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