o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011






CANTADA


Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça d’água
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar de Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
que o mar azul-safira da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
é quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana


Ferreira Gullar, Dentro da noite veloz

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011


Tudo parado, odeio

O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma. Todo mundo virou uma espécie de Capinam (esse é o único de quem eu não gosto mesmo: é muito burro e mesquinho), e o que eu chamo de conformismo geral é isso mesmo, a burrice, a queimação de fumo o dia inteiro, como se isso fosse curtição, aqui é escapismo, vanguardismo de Capinam que é o geral, enfim, poesia sem poesia, papo furado, ninguém está em jogo, uma droga. Tudo parado, odeio.


Carta de Torquato para Hélio Oiticica.
Torquato se mata um dia depois de seu 28º aniversário, em 1972.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Conheci um cara que era marginal, e um dia lhe perguntei: "Mas o que vocês fazem de suas mulheres?" Ele me dizia: "Elas nos esperam, somos duríssimos com elas." Então eu lhe disse: "Mas onde?" Ele me diz: "Nos bares, enquanto jogamos pôquer elas nos esperam." Eu disse: "Mas lá às vezes elas caem no sono, de noite, vocês jogam a noite toda nos bares." E ele: "Bom, elas são obrigadas a esperar, senão, apanham." Bem, ele achava isso incrível, mas afinal, o quê? Você já viu recepções sociais, em que há mulheres que ficam caladas três horas seguidas?... Elas esperam. Estão fantasiadas, cabelos arrumados, foram ao cabeleireiro, estão com um vestido bonito de flores... Mas não têm coragem de falar.


Marguerite Duras, Boas Falas
imagem: performance Dopada, de Laura Lima      

domingo, 11 de dezembro de 2011


É admirável, está no livro La Sorcière. Aliás, há pouco eu queria lhe dizer que foi ele... você se lembra do livro sobre as mulheres quando eu falava dos mênstruos, mas para ele era um... uma fonte de erotismo. Sim, ele dizia que, na alta Idade Média, as mulheres ficavam sozinhas nas fazendas, nas florestas, enquanto o senhor estava na guerra... cito essa história sempre que posso, acho-a sublime... e que se entediavam profundamente em suas fazendas, sozinhas; e que sentiam fome, ele estava nas cruzadas ou na guerra do Senhor, e que foi assim que elas começaram a falar, sozinhas, com as raposas ou com os esquilos, os pássaros, as árvores e que, quando o marido retornava, elas continuavam, isto eu acrescento, do contrário ninguém teria percebido nada, mas foram os homens que as encontraram falando sozinhas na floresta... Pois é, e as queimaram. Para sustar, barrar a loucura, barrar a palavra feminina.


Marguerite Duras, Boas Falas
Imagem: Francesca Woodman

terça-feira, 6 de dezembro de 2011



Após a orgia


Se você caracterizar o atual estado de coisas, eu diria que é o da pós-orgia. A orgia é o momento explosivo da modernidade, o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, liberação da arte. Assunção de todos os modelos de representação e de todos os modelos de representação e de todos os modelos de anti-representação. Total orgia de real, de racional, de sexual, de crítica e de anticrítica, de crescimento e de crise de crescimento. Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. Hoje, tudo está liberado, o jogo já está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER APÓS A ORGIA?

Só podemos agora simular a orgia e a liberação, fingir que prosseguimos acelerando, mas na realidade aceleramos no vácuo, porque todas as finalidades da liberação já ficaram para trás, e o que nos preocupa, o que nos atormenta é essa antecipação de todos os resultados, a disponibilidade de todos os signos, de todas as formas, de todos os desejos. O que fazer então? Isso é o estado de simulação, aquele em que só podemos repetir todas as cenas porque elas já aconteceram – real ou virtualmente. É o estado da utopia realizada, em que é preciso paradoxalmente continuar a viver como se elas não o estivessem. Mas, já que o estão e já que não podemos ter a esperança de realizá-las, só nos resta hiper-realizá-las numa simulação indefinida. Vivemos na reprodução infinita de ideias, de fantasmas, de imagens, de sonhos que doravante ficaram para trás e que, no entanto, devemos reproduzir numa espécie de indiferença fatal.



Jean Baudrillard, A Transparência do Mal – Ensaio sobre os fenômenos extremos, Papirus Editora, 2004

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

É ISTO UM HOMEM?
Vocês que vivem seguros

em suas cálidas casas,

vocês que, voltando à noite,

encontram comida quente e rostos amigos,

pensem bem se isto é um homem

que trabalha no meio do barro,

que não conhece paz,

que luta por um pedaço de pão,

que morre por um sim ou por um não.

Pensem bem se isto é uma mulher,

sem cabelos e sem nome,

sem mais força para lembrar,

vazios os olhos, frio o ventre,

como um sapo no inverno.

Pensem se isto aconteceu:

eu lhes mando estas palavras.

Gravem-nas em seus corações,

estando em casa, andando na rua,

ao deitar, ao levantar;

repitam-nas a seus filhos.

Ou, senão, desmorone-se a sua casa,

a doença os torne inválidos,

os seus filhos virem o rosto para não vê-los.



Primo Levi
imagem: Franncesca Woodman

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

NÃO ENTRES NESSA NOITE ACOLHEDORA COM DOÇURA

Dylan Thomas


Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os bons que, após o último aceno, choram pela alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.


Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.



Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.


E a ti,meu pai, te imploro agora, lá na cúpula obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


Tradução: Ivan Junqueira