o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011


ADORNO

A tua cabeça ainda vai ser um enfeite lá em casa.
A tua cabeça ainda vai ser o jarro da minha mesa;
e encherei de lápis e canetas que escreverão flores:
cabelos rosa em tua cabeça decepada.
E as oito cadeiras de pinho - sóbrias, sérias -
sorrirão de ti; sorrirão tanto até que as lágrimas
brotem aos borbotões e inundem toda a casa.
E aí o peixe que existe em tua cabeça
vai sair pelo ermo do mar procurando, procurando,
pois os peixes também estão perdidos.

José Inácio Vieira de Melo, poema dedicado a Jorge de Lima, in: 50 Poemas Escolhidos pelo Autor, edições galo branco, 2011
imagem: fotomontagem de Jorge de Lima

sexta-feira, 14 de outubro de 2011


Chianti no parque. Uma canção


A Poesia sou eu.
A Poesia é Altair.
A Poesia somos todos.
Murilo Mendes




                             Sol & Sombra
                             Sob o arvoredo

Beijo teus pés em Nova York. A poesia és tu
Que esmagas cerejas na boca. É tempo de cerejas na rua
do gato que pesca
Foste a Toscana? Irás a Arles?
Teu buquê de girassóis e a rosa amarela Tua intimação do sangue
Tua intimação do sangue no poema
Tenho saudades de saber de mim
Também tenho saudades de saber de ti


Beijo teu ventre,
                         a bolha
que cresce e flutua
                             dança
                                       tua esperança


Sou um eco de ti. Respiro de ti
falas por mim
                     que falo de ti


És a que une as coisas em mim


Beijo, caótico,
                      o concerto de tudo
                      a orquestra de tudo
                                        e o violoncelo
                      nosso eco de tudo, fundo, fundo


Oh Nina, Nina
                Todas as formas te procuram,
                                            querem saber de ti.


                                            Ver mais
                                                   poeticamente
                                                                o sentido da vida
                            
                            Buscar as coisas escondidas nas coisas


O amor que me une a ti: ver dor, rubor
Ou a cabana, suas entranhas
Marahu        tu        coisa de sorver
           porto-nuvem         toque
                                                 não sei de que


Beijo teu beijo, bebo
teu vinho tinto-encorpado
a ferrugem de tudo, senhora
de tua boca e teus lábios


Oh redondezas, Sônia, Sônia
meretriz imaginária


             é isto comum a todos?
A costura de tudo?
                                poesia?


MAX MARTINS, poema inédito com que Márcia Huber me presenteou, enviado de Munique, de onde vinha de férias, sem nunca deixar de visitar o Max. Ela escreve, generosa: "Segue aqui o arquivo com o poema transcrito. Envio-te também uma foto do poeta no Parque da Residência, que era onde bebíamos, em goles rasos para render, a garrafa de Chianti que eu costumava levar de presente em minhas viagens. Várias garrafas, vários goles, várias manhãs e tardes nesse parque. Voltamos lá várias vezes também, depois do poema, com a Nina." 

sábado, 8 de outubro de 2011


EU E O CÍRIO


A virgem na manhã com cinzas ainda da madrugada
Ou a ginástica, isto é, o poema da infância e da juventude
(anotações de lirismo e romantismo)
Depois veio o sol do meio-dia. A santa caminha em
chamas e calor movido a esplendor. Caminhava em
silêncio, Santa e musa e nuvem. Um caminhar opaco e
lento. As pedras em brasa.


O poema, este meu ofício do verso, com um desenho de
Maria Leontina. As páginas se enchiam sem conta e canto.


No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra.
Eu via a procissão passar na esquina da Avenida
Nazaré com a Doutor Moraes. Muitos e muitos anos seguidos.
O poema indo e vindo, suando. Apertado num terno
branco e gravata. A virgem também usava um vestido branco,
dominical. Mas sem seu corpo dentro e seu rosto me olhando,
uma pedra no meio do caminho.


E eu procurando, procurando, contemplava as imagens
com as minhas retinas tão fatigadas.


Era um branco absoluto na minha memória. Não me
lembrando de nada. Só o rosto faltando, o corpo
faltando no vestido branco.


Maria da Graça. Maria de Nazaré. Não me via
menino sem Marieta.


O Círio sou eu, erótico, sensual, demoníaco, sedento.
A virgem passava entre nuvens, em silêncio.
Seu manto fazia um calor danado. Depois eu esquecia.
Havia o rumor da multidão. Eu via a banda dos bombeiros
passar. Velhas rezavam, se revezavam. Balões, sorveteiros,
brinquedos de Meriti, a roda gigante no arraial da Santa.
Eu esqueço tudo em minhas trevas da catarata,
Da minha isquemia cerebral. Não me lembrava do rosto
de meu amore.


Então quero pedir apenas um pequeno milagre
a vocês de lá de cima: deuses, arcanjos eleitos, fadas, pajés,
filósofos, farmacêuticos, Moodipina, Sinergen, coisas
artesanais, Azopt, colírios. Um pequeno
milagre para não esquecer, fumar menos
para oxigenar o cérebro. Não esquecer o rosto,
o nome da virgem ou musa de vestido branco.

Pois o Círio sou eu. E eu ainda a amo!


Max Martins, O Cadafalso, Belém, Cão-guia, 2001.
Imagem: Flavya Mutran, Ondina, da série Pretérito imperfeito, 2004.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011


4 de junho de 1977. O que me impele a lhe escrever o tempo todo?



Escrever é retirar-se. Não para sua tenda para escrever, mas da sua própria escritura. Cair longe da sua linguagem, emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a palavra. Jacques Derrida

Continuei este vaivém. Depois saí para comprar selos, e ao subir por estas escadas de pedra, perguntava-me como teríamos feito para nos amarmos em 1930 em Berlim, quando era preciso carretas de marcos para comprar, como se diz, um selo.

O que me impele a lhe escrever o tempo todo? Antes mesmo que eu possa voltar-me para ver, do único destino, único, entende, inominável e invisível, que traz seu nome e não tem outro rosto senão o seu, antes mesmo que eu possa voltar-me para uma questão, me é dada a ordem, a cada instante, de lhe escrever, qualquer coisa, mas de lhe escrever, e amo, e nisso reconheço que amo. Não, não apenas isso, também.

Sua voz ainda há pouco (pequena cabine vermelha envidraçada na rua, sob uma árvore, um bêbado olhava-me o tempo todo e queria falar comigo; ele rodava em torno da jaula de vidro, parava de tempos e tempos, um pouco assustador, com um ar solene, como que para pronunciar um julgamento), sua voz mais próxima que nunca. A chance do telefone - nunca perder uma ocasião -, ele nos devolve a voz, em algumas noites, sobretudo de madrugada, melhor ainda quando ela está só e o aparelho nos cega de tudo (não sei se já lhe disse que, ademais, frequentemente fecho os olhos ao falar contigo), quando ela passa bem e o timbre reencontra uma espécie de pureza "filtrada" (é um pouco neste elemento que imagino o retorno das assombrações, pelo efeito ou pela graça de uma triagem sutil e sublime, essencial entre os parasitas, pois só há parasitas, você sabe, portanto as assombrações não têm nenhuma chance, a menos que haja apenas, desde os primeiros "vem", assombrações. Percebi outro dia, durante um pequeno trabalho, que esta palavra "parasita" havia se imposto a mim um número incalculável de vezes, durante anos, de "capítulo" em "capitulo". Ora, eis que parasitas podem se amar. Nós

É este timbre que você me envia então, sem nenhuma mensagem, nenhuma outra que conte, e eu bebo e afogo-me no que bebo. E contudo me reúno a isso cada vez, e de uma vez à outra. Sou todo este timbre, esta série, esta consequência de todas as vezes...

Contudo, enquanto falava comigo com este sentimento de proximidade alucinada (mas separada e mesmo a separação era boa), eu fixava o bêbado inglês, não tirava os olhos dele (ele vestia uma espécie de uniforme), olhávamos-nos, perdão, com uma atenção que minha infinita distração não perturbava em nada.

Estava certo de que ele se parecia com alguém (como ainda acredito, não?) mas impossível saber com quem, ainda agora. Perdão mais uma vez (terei passado minha vida lhe pedindo perdão), não havia pensado no fuso horário.

Mas escrevo-lhe amanhã, digo isto sempre no presente.



Jacques Derrida, Cartão-Postal, 1979, tradução Simone Perelson e Ana Valéria Lessa.