o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

domingo, 28 de agosto de 2011




RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS 

Minha mãe viveu encalacrada entre sua arte poética, suas diminutas crias e marido, la paramour, a cruz, o terço e a memória... 

Ela trocou o mito de Sísifo, vivido na pia da cozinha, pela lavra de professora.
A ciência não salva, mas dá chaves. Para quem vive na prisão, uma chave é a toda-esperança.
No laboratório dessa vida, o fígado dos ratos, os cânceres dos ratos, o 
sexo dos ratos, os olhos e a noite-virada dos ratos refulgiam como nossos paradigmas mais caros.
Adicionamos ferro, vidro e madeira para pôr em pé esse edifício de ossos, músculos, nervos, artérias e veias.
A geometria nos transpassava revoltosos imaginários.
Passou pela nossa janela, na rua humilde, o circo Circe e seu elefante, meu primeiro irmão africano, quando a África era uma áfrica.
 



João Antonio Cajado Botelho
imagem: Alec Soth, a sra. Bonnie segura a fotografia que diz ser de um anjo

sexta-feira, 19 de agosto de 2011



DOS INCONVENIENTES DO LIVRO

impõe-se que os livros se envergonhem do fato de ainda serem livros e não filmes de desenhos animados ou vitrines iluminadas à luz de neon
T. W. Adorno

Aos oito anos de idade Thomas Bernhard monta numa velha Steyr rumo à casa de sua tia Fanny, em Salzburgo. Voltas de bicicleta pela literatura sem que isto se constitua um tema esportivo. Bem ao contrário quando o futebol veste seu surrado uniforme literário e deixa de ser formalmente crônica (por vezes policial) para não escapar aos clichês da autobiografia, restando ao jogo  enredo ou relato – as preliminares, os planos de fundo de uma partida secundária. Juntar à literatura as “cintilações” da vida banal talvez corresponda nos dias que correm a tornar cada vez mais o livro um enfeite do mundo industrializado. Ajustado à ideia de tomar parte do consumismo feliz. Um tanto da pergunta de Sartre, Qu’est-ce que la littérature expressa um certo desacordo com a maneira com que o livro já vinha sendo exposto como mercadoria. E que será cada vez mais difícil vender livro sem as boas intensões do mercado. Das livrarias para as bienais, “feiras” ou para os “salões”, outrora apenas de automóveis. O livro e as encarnações possíveis da escrita em face ao mercado de produtos aleatórios. Ele perde aí os sentidos estabelecidos e legitimados para torna-se apenas um produto. Não há mais o ritual da grande descoberta e seus desenlaces. O maior deles talvez: que o livro cura os ingênuos e os débeis mentais. Se Adorno se chocou ao entrar numa dessas “feiras” sem reconhecer ali os livros que amou e pelos quais sofreu, mundanamente transvestidos numa outra “fisionomia”, não haveria transcorrido tempo suficiente para que o livro se integrasse a esse renovado espaço de existência  e se injetasse no leitor o desejo pelas novas regras de seu uso? Operado a contagem regressiva para o e-book tornar-se o nova volta no parafuso da cultura. E como o livro ainda não se engaja adequadamente com a audiência digital, não raras vezes é sentenciado ao encalhe, à morte pelas traças. Agora cada vez mais confrontado a suas variantes tecnológicas. Toda publicidade se emula pelo contraste, não seria diferente neste caso. O livro esquivo a tudo isso, segue impedido de atuar em qualquer lugar fora do mundo do livro, e cai numa espécie de marginalia que tende a explicar os meios principais, os termos-chave da contraofensiva – o que abrangem, multiplicam, proliferam o seu desuso. O livro se torna cada vez mais um cosmético de segunda mão.

Ney Ferraz Paiva
Imagem: Alec Soth

segunda-feira, 15 de agosto de 2011



3 POEMAS: CAUBY CRUZ


OS ELEMNTOS DO VERBO


Quando digo água quero que entendas fogo
a palavra se estende e deflora
um novo entendimento uma nova
forma insuspeitada mas viva além
de viva constantemente transformada.

Dependo não só dela porém da aceitação
em ti: o céu é inferno e mais que inferno
é este termo amar com que labuto
o meu pretérito alcança meu avô
que morto mas firme em mim, galopando.
E através dele vou, através de seus pastos
e porquê digo pastos entenderás que é noite
e o ar me amansa diante de seus passos.

O que falo importa se alcançar a tua carne
pois flutuar não serve. E é mister que invadas
e descubras porquê foi que hesitei
e hesites comigo, sofras a mesma fome
a mesma água engulas, igual peixe
adores e meus cabelos te cubram.

Então, a primavera que invento poderá
ser tua e teu este mistério este cão
que à noite ladra coisas inteligíveis
e o galo , cujo canto acordará teu homem.


CONSIDERAÇÕES SOBRE UM RETRATO

Não sabemos quem foi
porém seus passos audíveis
surpreendem os estrangeiros
como eu, à tarde
no silêncio morto dos quartos.
Decerto, traria consigo
o látego para o escravo
porque severo foi: pode-se ver
no estilo das cartas violadas
na escrivaninha, por lembranças
que meu pai guardava de outros tempos
pelo quarto de correntes do pátio.
Olha da parede o seu retrato
porém esmaecido cores cinza-escuro
emergindo os olhos frios
mas sensíveis à dor
como no parto. A barba
em ponta o faz severo
e, todavia, marca seu rosto
de beleza triste, beleza
inda constante no tempo das máquinas.
Tudo foi seu. Até a cadeira
onde sento e seus os livros
das estantes. Conhecemos seu gosto
sua memória embora parcial
mostrada apenas do lado direito.
Certo, conheço agora amores seus furtivos
e o que salta do muro de suas cartas
enche sua vida e a minha de poesia.


DONATÁRIO

Donatário de terra imersa
procuro meus campos
meu boi que esqueci anos
mergulhado no mesmo gesto invicto
de mastigar, meu cão também
como também meus sapatos.

A terra desapareceu. Aqui ela ficava.
Rio de pedras várias cortava o terreno
mas eu não via as pedras. Amava a posse
de tudo, donatário que fui deste terreno.
Hoje, chão de peixes


CAUBY CRUZ, nasceu em Belém em 1928, contemporâneo
de Mario Faustino, Max Martins e Benedito Nunes.
Autor de Os Elementos do Verbo (1955).


domingo, 7 de agosto de 2011

por Pedro Correia | 

Na noite de 10 de Fevereiro de 1963, num dos invernos mais frios de que há memória no Reino Unido, uma americana bonita e talentosa, de 30 anos, deitou a filha de três anos incompletos e o filho com apenas 13 meses nas respectivas camas. Na cozinha, preparou-lhes copos de leite e um prato com biscoitos que lhes deixou no quarto quando ambos já dormiam. Depois voltou para a cozinha, fechou a porta, acendeu o fogão a gás e meteu a cabeça envolta numa toalha dentro do forno. Era Sylvia Plath, uma das melhores escritoras de sempre em língua inglesa, autora de poemas decorados por sucessivas gerações de leitores que a idolatram. Tinha aquilo a que hoje chamamos uma personalidade bipolar: alternava sem transição os momentos de intensa euforia com os mais dilacerantes estados de depressão. No ano anterior, logo após ter dado à luz o filho Nicholas, descobrira que o marido, Ted – um escritor quase tão talentoso como ela –, a enganava com a alemã Assia Wevill, mulher de um poeta amigo do casal. Há quem garanta que jamais se recompôs do choque.


O bebê que dormia inocentemente naquele quarto de uma casa vitoriana em Primrose Hill, com um copo de leite e um prato de biscoitos na mesa de cabeceira, era Nicholas Hughes – o circunspecto e reservado filho de Sylvia que se tornou biólogo marinho e um dia decidiu viver nos confins do Alasca, em comunhão com a natureza. Cansou-se de viver numa segunda-feira, 16 de Março de 2009: como se cumprisse um desígnio do destino, enforcou-se num aposento da casa onde vivia. Dir-se-ia que o fantasma da mãe jamais o abandonara desde aquela noite invernosa, uma das mais frias de que há registo no Reino Unido.

Há famílias tocadas pelo sopro da tragédia. Ted Hughes, o pai de Nicholas, bem poderia dizê-lo: passou a viver com Assia pouco após a morte de Sylvia, mas a 23 de Março de 1969 a segunda mulher seguiu os passos da primeira, suicidando-se também com gás. Com a diferença de que não partiu só: minutos antes, matara a própria filha, Shura Hughes, de quatro anos.

Pouco antes de morrer de cancro em 1998, aos 68 anos, Ted escreveu uma longa carta a Nicholas – que nunca casou nem teve filhos – em que mencionava as profundas feridas que o suicídio de Sylvia Plath deixara na família: “Em 1963, sofreste um golpe ainda mais duro do que eu sofri. Terás de lidar para sempre com isso, tal como aconteceu comigo.”

Só quando Nicholas e a irmã mais velha, Frieda, já eram adolescentes Ted Hughes decidiu enfim revelar-lhes como haviam perdido a mãe. Há quem considere que o suicídio constitui um acto de suprema liberdade. Mas nunca saberemos até que ponto existe uma predisposição genética para um tal desfecho, o que invalidaria por completo tal raciocínio: como escrevia há dias Christina Patterson no Independent, “o suicídio é um acto violento que ressoa através de gerações.” Tal como nunca saberemos o que verdadeiramente levou Nicholas a seguir as pisadas da mãe 46 anos depois, no inverno do Alasca. Talvez nos derradeiros instantes pensasse nestes versos de Sylvia Plath: “Dying / is an art, like everything else. / I do it exceptionally well.”

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

‎3 poemas: ALBERTO DA CUNHA MELO
– mirando o mar e altas distâncias
numa luneta de escoteiro –

POEMAS


Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Há tão somente o mesmo túnel
de brasas que antes percorri,
e que à medida que avançava
foi-se fechando atrás de mim.
É preciso ser companheiro
do Tempo e mergulhar na Terra,
e segurar a minha mão
e não ter medo de perder.
Nada será fácil: as escadas
não serão o fim da viagem:
mas darão o duro direito
de, subindo-as, permanecermos.


(Poetas da Rua do Imperador, 1986)


DESCOBERTAS


A floresta tem
todos os bichos,
todas as madeiras,
todas as borboletas,
rios gordos, rios magros,
igarapés
e índios tão santos
que não querem o céu;
tudo tem a floresta,
mas penso no teu corpo
e sua mata diminuta,
que uma só borboleta
poderia cobrir.


(Clau, 1992)


CASA VAZIA


Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,


para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,


uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.


(Meditação sob os Lajedos, 2002)
imagem: Nicholas Hughes

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A sala cheirava a maçã

Na sexta-feira, 15 de fevereiro, houve um inquérito
 judicial no insípido e úmido tribunal de investigação atrás de Camden Town: indícios sussurrados, longos silêncios. A moça australiana em prantos (a babá que Sylvia contratara). Antes, naquela mesma manhã, eu fora com Ted a uma agência funerária em Mornington Crescent. O caixão estava no final de uma longa sala vazia e encortinada. Sylvia jazia rígida, com uma absurda gola pregueada no pescoço. Somente seu rosto aparecia. Estava cinza e ligeiramente transparente, como cera. Eu nunca vira uma pessoa morta antes, e mal a reconheci; suas feições pareciam muito finas e agudas. A sala cheirava a maçã; era um cheiro vago e doce, mas de alguma forma sujo, como se as maçãs estivessem começando a apodrecer. Fiquei contente de sair dali e enfrentar o frio e o barulho das ruas esquálidas. Parecia impossível que ela estivesse morta.
Até hoje acho difícil acreditar. Havia muita vida em seu corpo comprido e sem curvas, de ossos fortes, em seu rosto longo, em seus belos olhos castanhos, tão cheios de astúcia e sentimento. Sylvia era prática e franca, passional e compassiva. Para mim foi um gênio. Às vezes me pego acalentando a ideia infantil de que um dia desses vou encontrar com ela andando em Primrose Hill ou no Heath, e que vamos retomar a conversa no ponto onde paramos. Mas talvez isso seja porque seus poema ainda reproduzem tão bem sua maneira de ser: rápidos, sarcásticos, imprevisíveis, naturalmente criativos, um pouco irados e sempre totalmente seus.   

A. ALVAREZ, O Deus Selvagem, Companhia das Letras, 1999.


vivissecção


li numa antologia de poetas norte-americanos
você foi a única a morrer
olhos vazados cor de fogo de jacinto & enxofre
ainda dispostos a se irar
coração arrancado bem na frente dos filhos
você nem teve tempo de gritar
ovelha na cerração
desorientada & com medo
trinta anos apenas já sacrificada
golpeada por machado
comida por ervas daninhas



Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva