o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 30 de julho de 2011




AMY MORTA POR WILLIAM BURROUGHS?
Amy Winehouse a vítima de um jogo entre bêbados que acabou mal

O esforço de explicar um vício, conferir-lhe um lugar na economia do ego, talvez seja sempre uma empresa voltada ao fracasso.
J. M. Coetzee sobre William Faulkner


Amy Winehouse poderia ter sido personagem de Beckett, diga-se: uma personagem bem mais decidida, até mesmo para a morte. "Logo ela estará bem morta, apesar de tudo". Mil sinaizinhos indicam. O que Malone (Malone morre, Beckett) tenta prorrogar de uma data a outra, Amy sabe de antemão que muitas festas vão ter que passar sem ela. E não exatamente as festas de são João Batista, do 14 de julho ou da liberdade. Sequer as da transfiguração e assunção. Amy fez todo esforço para ausentar-se. Amy não tava nem aí pra coisas como sucesso e fama. Fez gato-sapato, desdenhou do fato de a terem reduzido a uma celebridade, quando queria ter feito muito, muito mais com a música. Porém tudo foi truncado, deixado distante da personagem que poderia ser – não a que foi assomada pelo pitoresco que a mídia se põe a exibir. É foda, mas é sempre isso. Poderia morrer hoje, ontem ou amanhã. Nenhum espanto mais seria cabível. O serviço sujo está feito. E Amy, por seu turno, se esforçou, precipitou as coisas. Tudo a ver com Basquiat, pensei de imediato quando soube. Ter que decidir por si mesmo. Não ficar neutro e inerte num ambiente de irradiações falsas, negativas, de incompleta atrofia do sensível. Não se pode dizer que ainda role segredos sobre os primeiros e os últimos passos no universo pop. Tudo acontece em um terreno comum, onde a escória circula livremente: traficantes, prostitutas, bajuladores, proxenetas, falastrões, jornalistas de aluguel e similares. De fora e por fora, o grande público espectador assiste, consome e comunga. Pode durar anos e render muito. Como Willian Faulkner, a vida inteira um alcoólatra agudo e crônico. Pode durar pouco e render muito mais ainda. Num ímpeto de impaciência antecipar o fim. Nos dois casos, a saída como de uma regra alternativa: exagerar, extravasar, passar da conta em tudo. Ser o primeiro a se livrar de entusiasmo e motivação. Todos olhando o astro se desintegrar. decidir por si mesmo... a menos que um outro William, o Burroughs resolva a parada a seu modo: entre na história e aperte o gatilho.


Ney Ferraz Paiva
Imagem: "The Only Good Rock Star is a Dead Rock Star"
Amy Winehouse "shot" by William Burroughs instalation, by Marco Perego. Half Gallery, New York City.

quinta-feira, 28 de julho de 2011


ESTA MINHA LETRA...   

A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões de minha inteligência. Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque, sob a minha responsabilidade, tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. Não há folhetim em que não venham coisas extraordinárias. Se, às vezes, não me põe mal com a gramática, põe-me em hostilidade com o bom senso e arrasta-me a dizer coisas descabidas. Ainda no último folhetim, além de um ou dois períodos completamente truncados e outras coisas, ela levou à compreensão dos meus raros leitores – grandeza – quando se tratava de pândega; num artigo que publiquei há dias na Estação Teatral, este então totalmente empastelado, havia coisas do arco-da-velha.
Aqui já saiu um folhetim meu, aquele que eu mais estimo, “Os galeões do México”, tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício...
Que ela me levasse a incorrer na crítica gramatical da terra, vá; mas que me leve a dizer coisas contra a clara inteligência das coisas, contra o bom senso e o pensar honesto e com plena consciência do que estou fazendo! e não sei a razão porque a minha letra me trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever – a exposição de palavras sinistras – quando se tratava de exposição de projetos sinistros. Não, não são eles. Nem eu. É a minha letra.
Estou nesta posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e asnática. Que hei de fazer?
Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.
Não quero aqui fazer minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por essas letras; e o fiz conscientemente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição; e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!
Abandonar o propósito; deixar a estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos que de que esses Brasis e os políticos nos abarrotam?
É duro fazê-lo, depois de quase dez anos de trabalho, de esforço contínuo e – por que não dizer? – de estudo, sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém.
É curioso. Como se eu pudesse ficar bonito, só pelo fato de querer.
Ora, esse meu conselheiro é um dos homens mais simples que eu conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu isso? Com certeza ele não disse isso a Senhor Alcindo Guanabara, cuja letra é famosa nos jornais, que o fizesse; com certeza, ele não diria ao Senhor Machado de Assis também. O motivo é simples: O Senhor Alcindo é o chefe, é príncipe do jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras, homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história – eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra.
Outro conselheiro (são sempre pessoas a que faço reclamações sobre os erros) disse-me: escreva em máquina. Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui aos senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever à pena e passar a limpo em máquina.
O mais interessante é que a minha letra, além de me ter emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar inimigos. Não tenho a indiferença que toda a gente tem pelos inimigos; se não tenho medo, não sou neutro diante deles; mas isso de ter inimigos só por causa da letra, é de espantar, é de modificar.
Já não posso entrar na revisão e nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra mim e me apavoro. Se fosse no cenáculo do Garnier ou em outro qualquer, seria bom; se fosse mesmo no salão literário do Coelho Neto, eu ficaria contente; entre aqueles homens simples, porém, com os quais eu não compito em nada, é para a gente julgar-se um monstro, um peste, um flagelo. E tudo isso por quê? Por causa da minha letra. Desespero decididamente.
De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja coisas minhas , eu me encho de medo, e é com medo que começo a ler o artigo que firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno.
Eu não sei se no jornal todos têm boa caligrafia. Certamente, hão de ter e os seus originais devem chegar à tipografia quase impressos. Nas letras, porém, não é assim.
Eu não cito autores, porque citar autores só se pode fazer aos ilustres, e seria demasia eu me pôr em paralelo com eles, mesmo sendo em negócio de caligrafia. Deixo-os de parte e só quero lembrar os que escrevem grandes obras, belas, corretas, até ao ponto em que as coisas humanas podem ser perfeitas. Como conseguiram isso?
Não sei; mas há de haver quem o saiba e espero encontrar esse alguém para explicar-me.
De tal modo essa questão de letra está implicando com o meu futuro que eu já penso em casar-me. Hão de surpreender-se em ver estas duas coisas misturadas: boa letra e casamento. O motivo é muito simples e vou explicar a gênese da associação com toda a clareza de detalhes.
Foi um dia destes. Eu vinha de trem muito aborrecido porque saíra o meu folhetim todo errado. O aspecto todo desordenado dos nossos subúrbios ia se desenrolando aos meus olhos; o trem se enchia da mais fina flor da aristocracia dos subúrbios. Os senhores com certeza não sabiam que os subúrbios têm uma aristocracia.
Pois tem. É uma aristocracia curiosa, em cuja composição entrou em grande parte dos elementos médios da cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos militares, médicos de fracos rendimentos, advogados sem causa etc.
Iam entrando com a morgue que caracteriza uma aristocracia de tal antiguidade e tão fortes rendimentos, quando uma moça, carregada de lápis, penas, réguas, cadernos, livros, entrou também e veio sentar-se a meu lado.
Não era feia, mas não era bela. Tinha umas feições miúdas, um triste olhar pardo de fraco brilho, uns cabelos pouco abundantes, um colo deprimido e pouco cheio. Tudo nela era pequenino, modesto; mas era, afinal, bonitinha, como lá dizem os namorados.
Olhei-a com o temor com o que sempre olho as damas e continuei a mastigar as minhas mágoas.
Num dado momento, ela puxou um dos muitos cadernos que trazia, abriu-o, dobrou-o e pôs-se a ler. Que não me levem a mal o Binóculo, e a Nota Chic e não deitem por isso excomunhão sobre mim! Sei bem que não é de boa educação ler o que os outros estão lendo ao nosso lado; mas não me contive e deitei uma olhadela, tanto mais (notem bem os senhores do Binóculo e da Nota Chic) que, me pareceu, a moça o fazia para ralar-me de inveja ou de encher-me de admiração por ela.
Tratava-me de álgebra e as mulheres têm pela matemática uma fascinação de ídolo inacessível. Foi, portanto, para mostrar-me que ela o ia atingindo que desdobrou o caderno; ou então para dizer-me sem palavras: Veja, você, seu homem! Você anda de calças, mas não sabe isso... Ela se enganava um pouco.
Mas... como dizia: olhei o caderno e o que vi, meu Deus! Uma letra, um cursivo irrepreensível, com todos os tracinhos, com todas as filigranas. Os “tt” muito bem traçados – uma maravilha!
Ah! pensei eu. Se essa moça se quisesse casar comigo, como eu não seria feliz? Como diminuiriam os meus inimigos e as tolices que são escritas por minha conta? Copiava-me os artigos e...
Quis namorá-la, mas, não sei namorar, não só porque não sei, como também porque tenho consciência da minha fealdade. Fui, pois, tão canhestro, tão tolo, tão inábil, que ela nem percebeu. Um namoro de... caboclo.
Seria, casar-me com ela, a solução para esse meu problema da letra, mas nem este mesmo eu posso encontrar e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos, esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação a apoucada inteligência.


LIMA BARRETO
Título original. in: Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 28-06-1911. Integra Feiras e Mafuás.
Imagem: Max Martins

domingo, 24 de julho de 2011


O SOFREDOR DO VER

O Espelho Morto


Ando deveras muito preocupada com o que se passa ao meu redor. Não que tema morrer; em vez disso, sinto medo de me ver eternizada em bloco de pedra, ou mesmo continuar como estou: esperando, esperando, apenas esperando salvar-me dos rostos quadrados, fugir e encontrar pessoas com as quais possa falar, sem que minhas palavras se percam no vácuo, inúteis. Porque vivo sozinha num mundo cada vez mais estranho, fantástico, monstruoso. Não que as coisas tenham se modificado tanto. Desde menina este encarceramento me sufoca, minha coragem foi sempre formada do desejo de evasão, o desespero de fuga deu-me forças até hoje. Ignoro mesmo se existe um lugar onde se movam pessoas e esta dúvida pode ser a causa da crescente inquietação que me domina, pois ameaça ruir minha única esperança. Não: tudo se agravou mesmo depois da morte do espelho. 
o costumo sair de casa. Os dias são distantes, depressa, e quase nunca há sol. Habito um apartamento de andar térreo, um pouco escuro, ainda durante o dia, luxuoso e antigo, onde moram três outras criaturas. Ignoro porque moramos juntas. Conheço-as há pouco tempo. São mais ou menos parecidas com as que tenho visto, apesar de sabê-las mais perigosas - decerto pela proximidade. (Na verdade, gostaria de me mudar. Conheço, porém, a inutilidade das mudanças.) Falam demais, andam constantemente armadas, usam com ferocidade os dentes. Estão sempre gordas de razão. Esqueci-me de dizer que são mulheres, estas tremendas criaturas. Apesar deste detalhes, uma delas deixou crescer vasto bigode, que a tornou um pouco mais simpática, ocultando-lhe as presas, fortes, ameaçadoras. Ao levantar-me de manhã, para ir à cozinha fazer meu café, encontro-a, articulando a possante mandíbula, no trabalho pertinaz da primeira refeição. Cumprimento-a delicadamente, esforçando-me em parecer afável. Tenho por resposta o rosnar ameaçador de como se protege a caça. Nem sempre consigo tomar até o fim o meu café. A criatura rosna impaciente, às vezes uiva, dançando pela cozinha, dando-me a impressão de grande exagero na sua manifestação, creio, de alegria.
Volto ao quarto e me deito sob os cobertores, enquanto outra se veste rápida, precisa, para chegar na hora exata à primeira aula do Curso de Geologia. (Ocupamos as duas o mesmo quarto.) Antes de sair, faz ginástica. Conseguiu desenvolver de tal modo os músculos das pernas que, por várias vezes, julguei entrar um edifício inteiro pelo quarto, em sua construção exótica: pilares gigantescos sustentando pequeno tronco, enquanto a cabeça rodava, bola, distante e pequena como a cabeça de um alfinete. Após a ginástica arruma, sempre rápida, precisa, a metade do aposento que lhe pertence, jogando, debaixo e mesmo sobre minha cama, grandes pedras, por ela colhidas diariamente nas praias. Pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, atiradas pela intrépida criatura: mecânica-rápida-organizada. Gostaria de impedir que meu corpo se expusesse diariamente a estas pedradas. Não vejo solução, já que deitar-me sob os cobertores é a maior proteção por mim encontrada. Se abandonar o quarto, enfrentando olhares antropófagos nas ruas, corro o risco de, ao voltar, achar toda a cama tomada. E me sentiria impossível argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa.
Não que me ache conformada. Tentei protestar uma vez mas a estudante continuou, solene, limpando os móveis. Depois, sem pressa, meteu-me uma grande pedra na boca, deixando tranquila o quarto. Mais tarde, escutei-a relinchando na sala para as outras, que eu cacarejo demais e não sei marchar. Não a compreendi. Ainda assim fui possuída de grande raiva, tomei de uma arma esquecida por uma delas na cadeira, tentei atingi-la nas costas. Não consegui e terminei amarrada em trouxa dentro de meu próprio cobertor, onde passei dois dias. Ao libertar-me, grunhiu qualquer coisa, como sentir pena dos meus compromissos. Que ignoro quais sejam. 
A terceira criatura é tirana – e muito boa pessoa. Proibiu-me mover rápido a cabeça para os lados, temendo que o ar sinta-se demais agredido. Assim, ando pelo apartamento buscando ver sempre o que está à minha frente. Se me viro, faço-o com delicadeza. Esse cuidado me traz em constante tensão. É uma mulher pequena, rosto quadrado, cabelos duros de torre; vai sempre ao cabelereiro. Costumo confundi-la com os objetos da casa.
Como já disse, evito sair à rua. Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam. Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam ruidosas pela cidade, conduzindo dentro delas outras pessoas. Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres.
Não prefiro coisa alguma. No entanto, saio às vezes, principalmente à noite. Vem buscar-me um ser que desconheço – embora venha buscar-me. Mostra-me os dentes, parece quase sempre irritado, joga-me porta a fora como se eu fosse um saco de abóboras. Costuma também relinchar, mostrando toda ferocidade nos dentes brancos. Nas ruas, busca proteger-me. Apesar de já me haver deixado sozinha, entregue às feras, habitantes de um certo subúrbio. Este ser talvez me quisesse dizer algo. Vejo-o luzente, vestido de alumínio, brilhando de noite à minha frente. Não seria sua maneira de rir? Indago-me se essa lata possui um coração.
Além dele, visita-me, não sei para quê, outra criatura, um pedaço de tronco fino de árvore. Sentado à minha frente, discorre longamente sobre pulgas, galinhas e percevejos. Depois do quê, sai sem se despedir, encolhido em sua própria casca, morena, rugosa.
Ruas fervilham. Duelos se dão e todo instante. Mulheres se odeiam, beijando faces umas das outras. Muitas enxertam carne de vaca nas nádegas. Nem por isso perdem o jeito mau e duro de andar. Mostram as presas, se as olhamos dão constantes coices. Homens comem ávidos, o hálito podre provocando náusea. Mas é então que as fêmeas se agitam de todo, coiceam e relincham, movendo caudas e crinas. O asfalto queima.
Encolho-me no apartamento, sofrendo a presença das três horrendas criaturas. Gostaria de viver sozinha, ou pelo menos possuir um quarto, onde não me atormentassem tanto. Móveis animados passeiam o dia todo pelo aposento. Ouço ruídos esquisitos.
Tudo se tornou demais difícil depois do crime da futura geóloga, assassinando o espelho com uma pedrada. Considero esse crime a maior desgraça em minha vida, inútil, calada, vazia. Foi o espelho a única criatura humana que conheci. Desde a infância habituara-me a ele e não havia como temê-lo. Vê-lo diariamente, minha grande aventura. Contemplava-lhe a figura trêmula, hesitante, de olhos escuros, amáveis. O espelho possuía de medo o rosto branco. Tinha de medo o rosto. Aquele belo rosto quase sempre triste levou-me a admitir, em algum lugar, outros rostos, outras pessoas, outros medos, outras lágrimas. Esqueci-me de dizer que, se nenhuma dessas criaturas parece alegre, nenhuma também se mostrou ainda triste. É deveras sombrio. Existe em tudo grande ordem. Jamais vi alguém subir correndo uma escada, saltar dois ou mais degraus. Fazem-no um por um, meticulosos. Sou obrigada a seguir o que se estabeleceu ou desperto cólera. Começo a perder a noção do tempo. Acompanhando o crescimento do espelho acompanhei meu próprio crescimento. Vendo-o se transformar, tive consciência de minha infância perdida. Cada vez mais o espelho se tornava adulto, o que me obrigava a admitir-me também assim. Já não sei, mas talvez eu esteja quase velha. Tenho chorado muito. As caras de cimento armado acusam meu rosto molhado de deterioração. Mas é que tenho chorado. Diariamente tomo entre as mãos a caixa onde estão os restos mortais do meu amigo. E sofro. Sozinha, sem outro rosto, outra esperança, é-me impossível voltar a acreditar.



MAURA LOPES CANÇADO
Imagem: André Masson

sexta-feira, 22 de julho de 2011


"Se não escrevo mais, é por estar farto de caluniar o universo. Sou vítima de uma espécie de desgaste. A lucidez e a fadiga venceram-me – falo de uma fadiga filosófica tanto quanto biológica , algo se rompeu em mim. Escreve-se por necessidade. Chega um tempo em que nada disso interessa mais. Em outras palavras, frequentei pessoas em demasia que escreveram em excesso, obstinadas pela produção, estimuladas pelo espetáculo da vida literária parisiense. Mas me parece que eu também escrevi demais. Um único livro teria bastado."

“Só tem essas convicções aquele que não aprofundou nada”. Esta frase de Emil Cioran praticamente resume o seu pensamento. Pertencente à grande tradição de despertadores de espíritos, da qual fazem parte Nietzsche, Pascal, Kierkegaard e Unamuno, o filósofo romeno foi, durante todo o século XX, uma espécie de posto avançado da oposição ao predomínio da técnica e da razão na sociedade moderna. Ferozmente independente, ele não admitiu mestres e, apesar de místico, nunca recorreu aos mestres da teologia para insurgir-se contra a progressiva coisificação do homem: “Um balbucio de Santa Teresa nos dá mais ideia de Deus do que toda a teologia de Santo Tomás de Aquino”.

Além de tudo, foi um dos maiores prosadores em língua francesa do século passado, apesar de ter adotado tardiamente o idioma. Em 1949 escreveu seu primeiro livro em francês: Breviário da Decomposição (Editora Rocco).

A crítica francesa da época se espantou. Afinal, quem era aquele jovem escritor, vindo de uma cultura periférica que arrogantemente atacava toda a filosofia contemporânea e, por tabela, toda a civilização ocidental? Pois é justamente isso o que Cioran faz nesse Breviário. As mitologias, as doutrinas, as linhas de pensamento, enfim, todas as certezas pedantes são submetidas à prova do fogo cioraniano, atiçado pela ironia e pelo sarcasmo amargo. Fazer com que seus leitores vivessem na dúvida e no assombro de encarar as falácias de quem quer tudo explicar pela razão: eis, em poucas palavras, a sofrida missão de Cioran.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A FERA NÃO DEIXAVA RASTROS




"não quero ficar com o que vivi"
"não confio no que me aconteceu"
"não quero me confirmar no que vivi"
"voltei a ser uma pessoa que nunca fui"
Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.

clarice lispector não conservou quase nenhum dos originais dos seus vinte e cinco livros. apagados do seu começo os livros de clarice são um ponto final. há os originais datilografados dos contos que ela reuniu, escritos de 1940 a 1941 – quando tinha entre 15 e 16 anos. organizados por olga borelli e editados postumamente em 1979, receberam o enigmático título a bela e a fera ou a ferida grande demais. a mulher que sequer dormia para poder escrever – como faria a estocagem das coisas que criava por surtos e espasmos? o que mais teria a deixar senão manuscritos incompletos, fragmentos e rascunhos anodatos em papéis diversos – como instantâneos de uma intensa rotina de dispersão. tanto da escrita ou da vida. sobrevivendo da insanidade da itinerância. clarice não armazenava nada que viesse a excitar  a curiosidade do público ou da crítica. não que se preocupasse em ser exatamente uma mulher discreta. desquitada e com dois filhos para criar, ela fazia as turbulências voarem aos pedaços frente às circunstâncias sociais e os bons costumes dos ambientes de cultura chique da zona sul do Rio de Janeiro. explicitamente se desligava da perspectiva de ser uma escritora com interioridade.  esfolada, abalroada, perturbada. questão é que não queria ter a irradiação própria de uma mulher com aquela intensidade numa literatura "brasileira" tão sem rupturas e desvios (vale dizer, careta, hipócrita, chata, muito chata). clarice erigiu-se em meio a todo tipo  de intriga e negação. entusiastas não se dispuseram a fazer de sua obra mais do que sociologia, mesmo no espaço teatral.  desafetos questionavam a eficiência pragmática do seu discurso. era como se  desbastassem a um só tempo a realidade  e a ordem do significante. ou algo ainda mais temerário: entender o imperceptível, o inominável. e como viver também escrever ultrapassa o entendimento, clarice livrava-se das pistas. escapava. desinflava-se. olga borelli diz ter visto já na primeira vez uma Clarice fadigada. a maior escritora da língua portuguesa e o pleno contraste do êxito, do lucro, do sucesso. seu extraordinário a paixão segundo g.h. levou olga a procurá-la incondicionalmente. desse encontro sem agitações radiantes virá o cuidado pelos primeiros e derradeiros escritos de clarice. o que para um escritor equivale a uma inestimável fortuna (já que vive, paga suas contas, pira com fortunas falidas, até mesmo as críticas). além de a bela e a fera, olga organiza água viva e um sopro de vida (pulsações). o intenso e repetitivo desvanecimento dos tantos instantes. contudo, ele não encerrará no silêncio toda uma obra. a obra subsiste do precário que é todo instante e da partilha altiva com os outros –, desse súbito alargamento de forças e energias, do que vem a ser a lenta interligação de todas as últimas coisas: ásperas, desgarradas, farfalhantes. os fluxos, eles vêm fazendo o serviço.


ney ferraz paiva

quarta-feira, 6 de julho de 2011



Primeiro tomo de um projeto de três. Todos sob o mesmo título: Imagens da biopolítica. Neste primeiro, tratamos de evocar quadros do horror no que se manifesta a condição do intolerável. Trata-se de pensar o século XX, e nele as experiências-limite. Condição na que se nos coloca de forma constante a questão que parece fundamental: como pensar as resistências face o poder absoluto? E por absoluto não indicamos qualquer transcendentalidade como princípio mesmo do que será, do que somos no que se nos faz. Por absoluto apostamos o limite, a experiência do pensar, do viver, do ser sob o regime do intolerável que é quando parece que nada mais resta senão o estar condenado ao que se é - nele se estando atado, nele se estando a claudicar. Um mapa do presente? Na certa que sim. Ainda que tomemos a este presente não propriamente como uma data na história, ou como um período que se iniciasse aqui e que estaria findado em tal ponto. Não se trata de uma factualidade registrada com a precisão do olhar cirúrgico do historiador. Preferimos tomar o presente como um modo, um ethos, como uma atitude - questão foucaulteana por excelência. Outros autores se entrelaçam a este diagnóstico - cada qual no seu termo, cada qual a dispor seu bloco de enunciados: Giorgio Agamben, Primo Levi, Marguerite Duras, Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy.


André Queiroz, Imagens da Biopolítica I - Cartografias do horror, recém lançado pela Multifoco.

sábado, 2 de julho de 2011

MALCOLM LOWRY - A DIVINA COMÉDIA EMBRIAGADA



1909-1957. Duas datas que cercam a vida de Malcolm Lowry, vida que está presente em sua obra, mas também obra que está presente em sua vida. Pois homem e escritor, o que foi vivido e o que foi escrito misturam-se, interagem, determinam-se.
A viagem que nunca termina. Assim Lowry intitulou uma trilogia que por sua vez nunca foi terminada: "o todo teria descrito a luta desesperada do homem por sua ascensão rumo a seus próprios fins". trilogia dantesca que teria em "Sob o Vulcão" o primeiro volume, abertura infernal do Lowry chamou de Divina Comédia embriagada. O segundo volume, “Lunar caustic”, seria o Purgatório. O Paraíso, “In Ballast to the White Sea”, iniciado em 1930, quando as primeiras notas foram tomadas, acabou sendo destruído pelo fogo, em 1944 – uma das fatalidades, das rotinas que sempre impressionaram Lowry.
“Sob o Vulcão”, o fogo infernal, foi escrito em nove anos, de 1936 a 1945. Sexta versão de um romance profundamente trabalhado – se a palavra profundamente é utilizada aqui, é também para mostrar a existência de planos diversos ou, na expressão de Lowry, de profundidades. Romance que merece não somente uma, mas várias leituras, para que toda sua riqueza, todas as relações nele contidas possam tornar-se visíveis.
Mas, neste prefácio, não daremos, não tentaremos interpretar. A palavra será a do próprio autor:em 1946, Lowry escreveu uma longa carta sobre este livro que, como os outros, é também parte de sua vida. Endereçada ao editor inglês que aceitara publicar seu livro, mas não integralmente, Lowry através dela tentou mostrar a necessidade de manter cada parágrafo, cada personagem, cada capítulo. “Se houvesse um só detalhe que parece realmente muito insignificante, eu teria prazer em suprimi-lo, mas como ter certeza de que, fazendo cortes sérios, destes que mudam radicalmente a forma, não estão sendo alterados os fundamentos do livro, a base de dua estrutura...?” Esta é a questão que guiará toda a carta; e a ela segui-se a publicação integral do livro.
Optamos então por introduzi-lo com um discurso de Lowry, no qual chaves são fornecidas para a penetração, para o mergulho que ultrapassará a superfície do livro. Mas desta vez, a publicação não será integral: foram privilegiados os trechos em que são explicitados, capítulo por capítulo, alguns dos símbolos que percorrem o texto. Este prefácio, no entanto, deveria ser um “post facio”: sua leitura só deveria vir depois da última página do livro ter sido virada.

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A Jonathan Cape

24, Calle de Humboldt
Cuernavaca, Morelos, México
2 de janeiro de 1946

Caro Senhor,

Agradeço de 29 de novembro, que só recebi nas vésperas do Ano Novo, e aqui, em Cuernavaca, onde vivo. Moro, por acaso, exatamente na torre que foi o modelo da casa de Laruelle, e que na época eu só havia visto do exterior – isto há dez anos; o mesmo lugar onde, coincidência das coincidências, o Cônsul do “Vulcão” teve também alguns aborrecimentos com um correio em atraso.
Passando rapidamente sobre meus sentimentos de triunfo mitigado, (...) apresso-me em pegar a caneta e responder, com medo de ficar no estágio de uma total impossibilidade de escrever.

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Arrisco-me a sugerir que este livro tem muito mais densidade, profundidade, qualidades e que ele foi composto com muito mais cuidado do que seu leitor possa pensar (...) Peço uma releitura de “Sob o Vulcão”, de onde decorrem todos os outros, provém de um mal irremediável: o material do autor é de ordem mais subjetiva que objetiva, mais adaptada a uma certa forma de poesia que à arte do romancista. Por outro lado, assim como o alfaiate tenta dissimular as deformidades de seu cliente, procurei, consciente deste defeito, dissimular o mais possível no “Vulcão” as deformidades do meu espírito, encorajado pelo fato de que talvez, já que a concepção do todo era essencialmente poética, estas deformidades não importariam, mesmo onde apareciam mais! Além disso, os poemas devem ser lidos muitas vezes antes do seu significado profundo se velar com toda clareza; é precisamente esta concepção poética do “todo” que (...) não foi percebida (...).

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Eu gostaria de fazer, nas páginas seguintes, um tipo de sinopse do “Vulcão”, capítulo por capítulo; mas como meu próprio manuscrito não chegou do Canadá, vou somente fazer algumas sugestões, as mais claras possíveis, sobre seus significados profundos, sobre sua forma e as intenções do autor em relação a tudo que deveria ser levado em conta no caso de mudanças serem necessárias. Os doze capítulos deveriam ser considerados como doze entidades; a cada um deles, consagrei um número considerável de anos de trabalho. Espero convencê-lo da necessidade absoluta dos doze capítulos (...); cada capítulo constitui em si mesmo uma unidade, e, entre eles, existem ligações, correlações. O número doze tem uma significação universal. Sem falar dos doze trabalhos de Hércules, existem doze horas no dia e o livro tem por objeto o desenrolar de um dia; são também doze os meses do ano, e o romance está contido no espaço de um ano; enquanto as camadas secretas do romance ou poema que dizem respeito ao mito ligam-se também á Cabala, onde o número doze é da maior importância simbólica. A Cabala foi utilizada com fins poéticos, por representar a aspiração espiritual do homem. A Árvore da Vida, que é meu emblema, é um tipo de escada complicada com o Kether, ou Luz, bem no alto, e um abismo dos mais horríveis um pouco acima do meio. O dpmínio espiritual do Cônsul é o Qliphoth, o mundo das cascas e dos demônios, representado pela Árvore da Vida invertida. Tudo isto não tem importância para a compreensão do livro; faço uma rápida menção para insinuar que, usando a expressão de Henry James, “há alguma profundidade”. Mas também porque apego-me ao número doze: é como se eu ouvisse um relógio bater lentamente meia-noite para Fausto; pensando na teoria dos capítulos, estou certo que os doze capítulos fatalmente são necessários; não poderia me contentar nem com mais, nem com menos.

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Portanto, este romance tem por objeto essencial, retomando a expressão de Edmund Wilson ao se referir a Gogol, as forças interiores do homem que o obrigam a ter medo de si mesmo. Trata-se também da culpa do homem, do seu remorso, de sua luta incessante em direção à luz, sob o peso do passado e contra seu destino. A alegoria é a do Jardim do Éden, o jardim representando o mundo, de onde nos arriscamos a ser expulsos hoje mais do que quando escrevi o livro... A embriaguez do Cônsul foi utilizada para simbolizar, num dos planos, a embriaguez universal da humanidade durante a guerra ou durante os anos que a precederam, o que dá no mesmo. E a profundidade e significação últimas da sorte do Cônsul deveriam ser articuladas, no plano universal, ao último destino da humanidade.

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Sob o Vulcão





(Nota: a história começa no Casino de La Selva. A palavra selva já estabelece a primeira ligação com o “inferno” de Dante. O livro foi concebido como um tipo de inferno, o que continua sendo, com um Purgatório e um Paraíso que a ele se seguirão, e cujo herói trágico, como Tchitchikov nas “Almas Mortas”, melhora aos poucos – “no meio de nossa vida”... “numa sombria floresta” etc., ligação que repercute ainda no capítulo VI, centro e coração do livro onde Hugh, no meio de sua vida, cita as palavras de Dante; a ligação é retomada como um eco mais ou menos no fim do capítulo VII, quando o Cônsul entra numa “cantina” obscura chamada “El Bosque” – novamente a palavra bosque. Os dois lugares, diga-se de passagem, são reais, um fica aqui, e o outro em Oaxaca. A ligação é materializada no capítulo XI, o da morte de Yvonne, onde a floresta é uma verdadeira floresta, tomada pelas trevas).

I
O cenário é o México, encruzilhada da própria humanidade, pira de Bierce e trampolim de Hart Crane, arena imemorial de lutas raciais e políticas de todo tipo, berço colorido de um povo genial e possuidor de uma religião que se pode definir a grosso modo como religião da morte – o que constitui um quadro perfeito (tanto quanto o Lancashire ou o Yorkshire) para nossa ação: a luta de um homem assolado pelas forças das trevas e da luz. Sua posição geográfica longínqua, assim como a semelhança de seus problemas e dos nossos, terão seu papel na sustentação da tragédia. É sem dúvida o próprio mundo, ou o Éden, a Torre de Babel, e tudo que quisermos. Cenário paradisíaco; sem contestação, infernal. É o México, com seus pulques e chinches – e é importante lembrar que a história começa no Dia Dos Mortos, novembro de 1939 e não 1938, precisamente um ano após a queda do Cônsul na “barranca”, a ravina, o abismo, para cujo fundo o homem de hoje olha (citando o arcebispo de York), o abismo ainda pior da Cabala, o abismo de Qliphoth, incomensuravelmente pior, ou simplesmente o esgoto.
(...) Acho que este capítulo deve ser mantido na sua forma atual, devido ao clima, ao ambiente, á tristeza do México etc; mas, antes de prosseguir, confesso que não vejo o que criticar nesta abertura onde M. Laruelle, no último dia de sua estada no México, conversa sobre o Cônsul com o Dr. Vigil. A exposição, depois que eles se separam, talvez seja difícil de ser seguida, e poder-se-á objetar que é cair no melodrama criar suspense através de meios especiais como velar a realidade sobre a morte de Yvonne e do Cônsul. Para mim, este véu é de ordem estrutural; mas, mesmo se não fosse, o critério que permite à maioria dos críticos de condenar tais mecanismos me parece ligar-se à reportagem; eu me insurjo ao mesmo tempo como revolucionário e como reacionário contra o tipo de romance que eles admiram. Poder-se-ia também objetar que começar o livro pelo fim é um jogo bem desgastado. Isto é verdade, mas no caso me agrada, além disso, tem sua razão de ser (...). Enquanto Laruelle passeia, o autor deve dar algumas explicações sobre o personagem; ele as dá o mais claramente possível, e se isto pudesse ser feito mais rapidamente e com maior brilho, eu estaria muito inclinado a aceitar conselhos; uma releitura, entretanto, mostrará quais problemas temáticos nós resolvemos nesta mesma ocasião (...). Enquanto isso, a história desenrola-se no momento em que o crepúsculo começa a transformar-se em noite: o leitor percebe o amor de Laruelle por Yvonne; os acordes de um amor trágico ressoam durante sua visita de adeus, sol se pondo no Palácio de Maximiliano onde Hugh e Yvonne virão (ou vieram) em pleno dia, no capítulo IV; enquanto Laruelle se inclina sob a ravina funesta, o episódio dos Taskerson neste primeiro capítulo – implicitamente condenado pelo seu leitor – pode aparecer um como um erro, se o considerarmos seriamente à luz das causas psicológicas que explicam o alcoolismo e a degradação do Cônsul. Mas tenho a convicção sincera e justificada de que é exatamente cômico e válido musical e esteticamente neste momento da narrativa, como relaxamento da tensão dramática. (...) Se o senhor não estiver convencido da comicidade do episódio dos Taskerson, tente lê-lo em voz alta. Creio que numa segunda leitura este episódio parecerá um pouco melhor.
O bêbado em seu cavalo, que aparentemente interrompe a recordação de Laruelle, ziguezagueando sobre a encosta da Calle Nicarágua, também adquiriria uma significação mais profunda numa terceira leitura. Este bêbado a cavalo é certamente a primeira aparição do próprio Cônsul como símbolo da humanidade. De novo toca-se o acorde que anuncia a morte de Yvonne no capítulo XI, mas como em eco, mesmo seu leitor só viu aqui uma mancha de cor local: o cavalo está sempre com seu cavaleiro; mas talvez este logo lhe falte; aqui, o homem e as forças que ele liberará mais tarde são um só. (...) Yvonne é finalmente morta no capítulo XII, durante uma tempestade (os dois capítulos se invertem no tempo neste aspecto preciso), com a ideia errada e confusa, ainda que digna, ou quase, de elogio, de que agindo assim ele prestaria serviço a alguém.
Laruelle então, evitando a casa onde estou agora escrevendo esta carta (...), caminha, tomado por pensamentos negros, em direção ao cinema do bairro. As pessoas abrigam-se da tempestade no cinema e no bar, como em outras partes do mundo elas rastejam para os abrigos; as luzes apagam-se como apagaram-se pelo mundo. O filme programado chama-se “Las Manos de Orlac”; é o mesmo que fora passado exatamente um ano antes, no momento da morte do Cônsul; mas o homem de mãos ensanguentadas no cartaz simboliza, pela origem alemã da imagem, a culpabilidade da humanidade, o que o liga de novo a Laruelle e ao Cônsul, sendo também uma prefiguração do ladrão que no capítulo VIII despojará o agonizante na beira da estrada de seu dinheiro, e cujas mãos estão também cobertas de sangue. No interior da “cantina” do cinema, aprendemos muito sobre o Cônsul graças a Bustamante, diretor da sala (...). Seria bom não esquecer que é Dia dos Mortos e que neste dia, no México, diz-se que os mortos comunicam-se com os vivos. Mas a vida está onipresente, pois, enquanto isso, existem no plano de fundo ressonâncias políticas (a atriz do filme Maria Landrok, é alemã) e históricas (Cortez e Montezuma). À medida que se desenrola o filme, os temas do livro e seus contrapontos são anunciados. Finalmente, Bustamante volta com o volume de peças elizabetanas que Laruelle ali esquecera dezoito meses antes; o tema é Fausto. Laruelle planejara fazer um filme moderno sobre Fausto, mas, por um momento, o Cônsul lhe aparece como o seu Fausto que vendeu a alma ao diabo. Aprendemos então muito sobre o Cônsul, seu passado de soldado, e sobre um crime de guerra que ele teria cometido contra os oficiais de um submarino alemão (...). Aprendemos também que se suspeita ser o Cônsul um espião ou um “escorpião” inglês e, apesar dele sofrer ao máximo a loucura de perseguição e de que se tenha a impressão objetiva de que ele está de fato sendo perseguido através do livro, tudo se passa como se o próprio Cônsul não tivesse consciência disso, mas percebesse algo de diferente. Sem razão precisa, o autor ousou esperar impregnar até a obsessão o espírito do leitor com uma impressão de perseguição. Mas, por enquanto, a simpatia que Bustamante tem pelo Cônsul deveria despertar também a nossa. Esta simpatia poderia crescer consideravelmente após a leitura feita por Laruelle da carta do Cônsul, que nunca foi enviada, e que considero muito importante, seu grito de angústia não encontra resposta antes do último capítulo, onde o Cônsul, no Farolito, alguns instantes antes da sua morte, reencontra as cartas de Yvonne que perdera sem tê-las lido. Laruelle queima a carta do Cônsul, ato que encontra sua réplica poética no vôo dos abutres (“como papéis queimados flutuando ao escapar de uma fogueira”) no fim do capítulo III, e também no sonho final de Yvonne, no capítulo XI, onde os manuscritos do Cônsul se queimam. A tempestade se acalma e...
Lá fora, na escura noite tempestuosa, para trás girava a luminosa roda.
Esta roda é certamente a Roda Gigante na praça, mas é também uma outra coisa: é a roda da lei de Buda (veja o capítulo VII), é a eternidade, o instrumento do eterno ciclo, do eterno retorno, e também a forma estética do livro ou, mais superficialmente, num plano eminentemente cinematográfico, a roda do Tempo que nos leva até o ano anterior e ao capítulo II; neste sentido, se quisermos, poderemos ver o resto do livro através dos olhos de Laruelle, como se ele fosse sua própria criação.

(Observação: na Cabala, o abuso dos poderes mágicos compara-se à embriaguez ou abuso do vinho – em hebreu “sod”, se tenho boa memória – o que nos permite a analogia. Um dos atributos da palavra “sod” diz respeito também á ideia de jardim ou de jardim abandonado, pois a Cabala é às vezes considerada como jardim que possui em seu centro a Árvore da Vida, certamente aparentada a esta outra árvore cujo fruto proibido deu ao homem o conhecimento do Bem e do Mal, e a nós a lenda de Adão e Eva. De qualquer modo – e esta é a fonte evidente de quase todo o nosso conhecimento, da sabedoria do nosso pensamento religioso e de quase todas as nossas superstições sobre a origem do homem – William James e mesmo Freud estariam certamente de acordo comigo em dizer que as angústias do bêbado encontram seus paralelos poéticos nas angústias do místico que abusou dos seus poderes. É claro que o Cônsul, nesta passagem, mistura tudo na sua embriaguez, e de modo magnífico: o mescal é, no México, uma bebida dos diabos, mas continua sendo uma bebida que se pode achar em qualquer “cantina” (...). E o mescal é também uma droga que se toma sob a forma de “botões”; ultrapassar seus efeitos é um dos ritos iniciáticos bem conhecidos, pelo qual todo ocultista deve passar).

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II
Volta-se exatamente para um ano antes – Dia dos Mortos, 1938. A história do último dia na terra de Yvonne e do Cônsul começa às sete horas da manhã, no momento em que Yvonne chega. Eu não vejo o que poderia incomodar aqui. A misteriosa conversa em contraponto no bar do Bella Vista é sustentada – o que será percebido mais tarde se se observar e escutar atentamente – por Weber, o contrabandista, o mesmo que levou Hugh até o México e que é cúmplice (...) dos “synarquistas” do Farolito de Parián que fuzilarão o Cônsul. O leitmotiv “No se puede vivir sin amar”, inscrito em letras douradas na fachada da casa de Laruelle (...), repete-se de modo irônico nos “absolutamente necessário” do barman. Os inúmeros cartazes da luta de boxe simbolizam o conflito que opõe Yvonne ao Cônsul. Este capítulo é uma espécie de passarela, e eu o escrevi com extremo cuidado – ele também é “absolutamente necessário”. Uma releitura o convencerá, estou certo. Forma um todo, uma unidade, como todos os outros capítulos. Afirmo que é dramático, engraçado, e nos seus próprios limites bom. Não vejo onde fazer cortes.

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III
(...) o retorno no tempo, verdadeira acrobacia verbal, quando o Cônsul está estendido, nariz na poeira, na Calle Nicarágua, representa na verdade uma exposição muito cuidada. Este capítulo foi escrito originalmente em 1940 e terminado 1942 (...).
A cena do Cônsul com Yvonne, onde ele se mostra impotente, encontra seu contraponto na cena Cônsul-Maria do último capítulo. Esta impotência tem praticamente uma infinidade de implicações.
O morto, com o chapéu no rosto, visto no jardim pelo Cônsul, é o homem da beira da estrada do capitulo VIII. Este fenômeno acontece numa supercrise de delírio, e Paracelso não me contradirá.

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IV
É necessário, creio, tal como está, sobretudo se pensado em relação à minha última frase do capítulo III, referente a uma ação do espírito. Aqui, trata-se de um outro tipo de ação. Há movimento, rapidez; o capítulo faz contraste, fornece o ozônio necessário. Dá também simpatia e compreensão bem necessária a respeito do México – seus problemas, seu povo – no plano material. Se as primeiras linhas lhe parecem ligeiramente ridículas, tome-as por uma sátira; mas uma segunda leitura melhorará muito o todo. Agora temos um movimento contrário: a perda da batalha do Ebro, no meio da inação geral, que tem seu paralelo na cena da beira da estrada do capítulo VIII, cuja vítima faz sua primeira aparição diante da “cantina” La Sepultura, seu cavalo amarrado do lado de fora – o mesmo cavalo que matará Yvonne. A oposição das aspirações políticas e espirituais do homem se revela aqui, e o sentimento de culpabilidade que Hugh sente faz contrapeso ao do Cônsul (...).
Quase tudo no capítulo tem sua razão de ser, mesmo os cavalos, os cães, o rio e as banalidades sobre o filme que está passando. E o que é fora de propósito fornece um ozônio necessário. Quanto a mim, penso que este cavalo na luz matinal do México é um dos melhores momentos do livro, e se Hugh parece ligeiramente absurdo no fim do capítulo, seu desejo apaixonado de fazer o bem não é destituído de importância para o tema nesta passagem.

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V
Forma um contraste simétrico, as palavras iniciais dando um sentido irônico às últimas palavras do IV. O livro, a partir daí, envolve-se rapidamente na ação do espírito, em contraste com uma ação tradicional (...). É aqui que aparece, em todo caso, o tema mais importante do livro: “Le gusta este jardin?”, na placa. O Cônsul enganara-se ligeiramente ao traduzi-lo (...): “você gosta deste jardim? Porque é seu? Expulsamos aqueles que destroem!” (mais adiante, faremos notar que a tradução exata pode ter um sentido ainda muito mais horrível). O jardim é o jardim do Èden, aquele mesmo que ele discute com Mr. Quincey. É também o mundo. Tem igualmente todos os atributos cabalísticos do Jardim (...).
Parián é também a morte. O delírio verbal em algum lugar da primeira parte, é necessário.Seria preciso notar que o Cônsul tem um branco de memória e que a segunda parte no banheiro relata aquilo de que ele, num semidelírio se lembra. Quase tudo de que ele se recorda representa uma exposição disfarçada e um drama que conduz a narrativa ao problema: irão eles a Guanajuato (= vida) ou a Tomalín, o que os faz passar por Parián (= morte). Quanto ao resto, o Cônsul identifica-se num dado momento a Hórus-criança, de quem (objeto ou pessoa) é melhor não falar. Certos místicos o tomam por responsável pela última guerra, mas eu sem dúvida teria necessidade de uma outra linguagem para explicar meu pensamento. (...).
Comecei este capítulo em 1937, e a última versão data de março de 1943. É também uma entidade em si. È possível levantar-se objeções sobre a técnica da segunda parte, mas estou convencido de que é uma maneira sutil de tornar uma cena difícil. (...)

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Editaremos num outro post os próximos capítulos – a partir do VI chegamos “ao coração do livro”


Artículo de Manuel Poppe
Sobre Malcolm Lowry (1909-1957)


1.
Julien Gracq, escritor francês cujo destino se cumpriu honestamente – à margem da bolsa das vaidades  denunciou a doença da literatura: “nivelamento por baixo, subserviência progressiva do espírito, desorientação do público, que identifica o autor-vedete com as marcas comerciais. O mediático inventa e impõe o zero cultural”. Assim é: transformada em “produto” a obra literária vale o dinheiro que rende. Os críticos transmudaram-se em fiéis de armazém. Acabaram os escritores, triunfam os escribas. É a época do mercado e da aparência. Quando a editora Relógio de Água publica Lowry, alegram-se os que não ignoram tratar-se de um autor extraordinário e ser “Debaixo do Vulcão” uma obra-prima. Festeja-se um acto de coragem: livros desses não cabem no comércio reinante: o da pseudo-arte.

2.
Clarence Malcolm Lowry nasceu em 1909 (New Brighton, Liverpool) e morreu em 1957, em Ripe, na costa sul de Inglaterra, vítima de um cocktail de whisky e sedativos, na véspera de fazer 48 anos. Um alcoólico, desde a adolescência (desde os 14 anos, nota Gordon Bowker, na biografia, “Pursued by the furies”, St. Martins Press, N-Y, 1997). A primeira mulher, Janine van der Heim (jovem aprendiz de escritora de 22 anos, que assinava Jan Gabrial) descreve-o tal qual o conheceu em Granada (1933): “uma estranha mistura de idealismo e bicho da terra”. O sonho e o insaciável amor às coisas deste mundo e o desejo de as possuir e compreender levá-lo-iam à paixão e ao desastre – a um destino de nómada: todos os lugares lhe foram passageiros. Cedo saiu de casa dos seus pais. Viajou, obstinada e inevitavelmente. A China, o México, Nova-Iorque, o Canadá representaram etapas indispensáveis à feitura de um dos mais ricos, profundos, trágicos, poéticos romances do século XX. O seu alcoolismo visionário, a insatisfação, a inconsciência (inocência?), a busca desesperada do sentido da vida tornaram-no insuportável. Jan aguentou quatro anos. A segunda mulher, Margerie Bonner, ex-actriz divorciada e mais velha do que ele, conseguiu acompanhá-lo de 1939 até à morte. A que preço? Lowry conheceu a prisão, a deportação, os hospitais, a miséria. Não era um amante fácil.

3.
Deixou escassa bibliografia. A sua obra será, talvez, uma só: “Debaixo do Vulcão”, escrito e rescrito quatro vezes, pago com suor e ressacas, fabulosa epopeia d’alma, condenada ao silêncio. Não se trata da autobiografia de um bêbedo; representa, genialmente, o grito do Homem, que interpela os deuses emboscados.

4.
Geoffrey Firmin – o Cônsul de “Debaixo do Vulcão”–, numa das passagens dolorosas e intensas, reconhece que “ele próprio está no Inferno”; que o Inferno está dentro dele e o possui. Em casa de Laruelle (ex-amante da sua mulher), entre os desenhos de Orozco, pintor do patético e do trágico”, e as telas violentas de Diego Rivera, evocativas da gorada epopeia revolucionária mexicana, pressente, além do fio da navalha, “o instante de Deus”: o momento em que o perdão salvará o mundo. Mas é demasiado tarde. Perdoar a quem? A Yvonne (“o meu perdão nunca será suficientemente profundo”)? À absurdeza da vida? Ao consentimento de Deus, que não impede ao demônio desvairar os homens? Coração ferido não tem perdão, e ele irá continuar a procurar, na tequilla e no mescal, a fuga – ou a lucidez reveladora. “De que serve fugirmos de nós próprios?” E, sozinho, sofre o delírio do mundo. E cita Baudelaire: “Os deuses existem: são o diabo”. Pesa-lhe “a obscura região morta” e busca a saída, no calvário redentor.

5.
Lowry fala de Hitler, da Guerra de Espanha, do drama mexicano, de Orozco e Rivera, artistas que denunciam o escândalo social. Fala de Yvonne. “Debaixo do Vulcão” é o romance do amor traído? Sim, mas dum amor total: à vida, ao universo indecifrável e arrebatador. Yvonne foi o mensageiro que falhou. O que aguilhoa e sangra o Cônsul é a traição de todos a tudo e de cada um a si próprio. Haverá, ainda, nesse martirizado, alguma esperança? Do fundo do poço, o Cônsul clama: “luto pela sobrevivência da sensibilidade humana”. No seu livro, reencontramos Dostoiévski: a complexidade e a religiosidade torturada. Geoffrey Firmin aponta iniquidades, perversidades e monstruosidades sociais – e a misteriosa (muda) harmonia do infinito. Nenhuma contradição: o sentido religioso é o sentido da justiça social.

6.
“Meu Deus!, se a nossa civilização saísse da bebedeira e, durante dois dias, abrisse olhos, ao terceiro morria de remorsos”, diz Hugh, irmão de Geoffrey e outro alter-ego de Lowry. O Cônsul, a viver as suas últimas doze horas, pensava o mesmo. O alucinado (o nigromante), o decadente (o imaculado) tinha os pés bem assentes na terra, onde lia sinais de um mítico Éden e lhe acontecia partilhar o quotidiano prostituído. A alma ardia-lhe. Lowry escolheu o limite do risco. Mas, se tudo aponta para o suicídio, a verdade é que as razões da sua morte permanecem obscuras. Margerie Bonner, última companheira, disse tratar-se de um descuido. Essa versão oficiosa não convenceu ninguém.

Manuel Poppe
Publicado na Página de Cultura de Jornal de Notícias, de 10 e 17 de Feveriero de 2008
malcolmlowry.blogspot.com/2011/05/articulo-de-manuel-poppe.html