o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 23 de maio de 2011






assinado o abaixo assinado


fazer-se um signatário, ali uma política possível, ou não? Fazer que se lembra da função um tanto deixada de lado a do intelectual - aquele que se expressa sobre questões que assaltam o espaço público e os rumores do tempo histórico-mundial. Está-se a pensar em Zola, Sartre, Camus, Semprum, Merleau-Ponty, Escobar, Marcuse, Duras, Glauber Rocha, e tantos, tantos. Nomes, são nomes à história - nomes, outros nomes - mas nomes não nos seriam intensidades, formas-modos da à história ali quem sabe ela a encontrar uma parede que a resgatasse do seu livre curso à reatividade, o famoso devir reativo da história que parece sempre e sempre dar as margens de que se nos volte, de que se nos retorne o pior, o que haja de pior (visão de horror de Zaratustra), os fascismos todos tomados desde a algibeira até que se nos forje o rosto sisudo da conformidade? Nomes, nomes, mas por vezes não seria o que a emperra a este devir reativo, o que o faz estancar de sua monótona cadeia da existência - como que na grita de um Kafka, quem sabe um outro do mundo?! Ou nas recusas de um Barthleby, ele já o engastado do tanto o que se lhe exigem, e então não mais? Quisera o tempo da crise lançar as discussões ao tanto delas. Quisera o tempo às crises nos lançarem para bem mais além dos seus efeitos de superfície - onde nos deliciamos tantas vezes com as marolas, as línguas de areia e seus castelos, os nomes escritos rápidos rapidíssimos até que as ondas. Quisera o tempo às crises deflagrar violentas insubordinações - será se se lembra os dias em que se esteve a pensar isto, creio que não faz tanto tempo assim? A leitura dos textos de ainda há pouco nos aproxima o imediato daquelas horas, daquelas urgências. Penso no Foucault a dizer do movimento de um só homem a dizer 'não obedeço mais' face a um poder que o amesquinha. Penso na voltade de transcender (não uma transcendência, um transcendental) às agruras do 'estar aí' do personagem Jorge de Vergílio Ferreira em seu romance Nítido Nulo. É que ele estava à morte, condenado que estava, e o tempo que lhe restava era a totalidade do tempo de sua vida como sendo a de um tempo que resta. E então, o que fazer? Pergunta magnífica, e urgente. Pergunta ela toda depositada ao tanto do intolerável. Está-se à crise, não? Sempre então a recordar o Negri a dizer da crise a condição ontológica à criação. Se trata de repensarmos a ingerência ubíqua, a condição transcendental das agências - sua hipertrofia, os desmandos não como algo um algo do agora - por conta desta ou daquela exigência, mas a condição na que se nos plantou o 'exigir' contínuo que se calca no quê? No suposto ideário da qualidade? Mas onde a qualidade - será que apenas ali, e por estes meios? Será que apenas 'no quando' ao conforme aos supostos meios que se nos planta em injunções descabidas a laminar o que, tantas e tantas vezes, é o que temos de melhor - mais pontente e intenso? Da laminação do capital na fabricação do normatizado - falas que ecoam a um Guattari dos 70', e mesmo o dos 80'. Das regrinhas ao mediano, medíocre - um Foucault à cabeceira. Do assalariamento como o que avilta o trabalhar do trabalho, lembranças a um velho Marx, e das fabulosas leituras de um Carlos Henrique Escobar. Da crítica radical e aos martelos ao apequenamento em que se está ao depósito quando se está apenas e tão somente a cumprir as funções de funcionário público, o intelectual às migalhas uma vez as razões de estado a dizer a ele todo os dias o seu dia que se repete (o beijo na boca corrido que já são às horas... o abraço contido que já é o tempo, o rasgo na arte de que ele pode porque se trata do 'sério'), um Nietzsche aí a dizer de si que ele nada que seria capaz não fosse uma aposentadoria a Basiléia? São tantas as letras que se nos retornam em auxílio, tantas as palavras, a escritura que nos arranja um lugar ao sol quando parece que é do inverno que não se dobra os ares gris do tempo. Mas o presente não nos é amarra, não nos é o que nos acerca ao seu dentro enfarpado, os carretéis de arame no entorno dos hectares, os grileiros ali a ver se se evita o levante, o capitão do mato a arfar o peito como quem toma a si o sonho dos senhores, e estes os senhores a gozar o gozo perfeito dos que não se misturam ao mundo. Parece-me o presente é o que estamos em vias do não mais. Deleuze, Foucault. Seria o caso solicitar aos bons e aos amigos que perdoassem se eu os uso, ou se eu os cito. É que deu-se-me o hábito ao tanto do que estive a fazer. Ensinar em espaço público. Desde há tanto. E mais do que isto, o estar a ler, a tomar o tempo os modos do inútil - o homem parado, estancado diante de um corpo de letras agarrado a um suporte, um livro ali. O homem que lê, esta inutilidade. Mas é que se deu o hábito. Bourdieu andou dizendo o quanto é que custa a que um hábito ele se nos descole. Joga-se, outro modo, com isto aos mercados do simbólico, e então segue-se citando a ver se se consegue algum crédito ao dizer do que se diz. Mesmo que não fosse necessário o citar estando já tudo ali sob a planura da escrita - que é rasgo e corrupção. Tempos de crise. Espera-se espero junto que os olhos ganhem a dimensão do mundo e que não se esteja apenas e tão somente a pleitear por um 'ok' que nos faça retomar o prumo das coisas, do estado de coisas, e que se nos faça crer que tudo é belo e bom, que o azul é toda hora, e que a metafísica é uma boa casa ao que não a têm. Espera-se espero e no meu chamado busco quem sabe arrancar-me a solidão dos que não creem. Mas se se escreve é por um qualquer motivo que não o do silenciar. Silêncio que tantas vezes (nem sempre), mas silêncio que tantas vezes é o dos vencedores, o do coro afônico dos contentes, o dos ganhadores que acertam em cheio o milhar do que avilta aos muitos. Silêncio que é um modo aos fascismos. Lembro-me de um personagem de Primo Levi em seu maravilhoso "É isto o homem?", se trata do personagem Elias Lindzin. Dele - Primo Levi conta que era como um cavalo em força, sua tração era inaudita entre os corpos extenuados do Lager. Elias era aquele que carregava sem grandes esforços três, quatro sacos de cimento, tijolos aos montes sobre o peito de aço, enquanto os outros lutavam com a sua fragilíssima condição: levantar um saco, levar aqui e ali o desconjuntado das pernas braços e o quê fazer. Elias se ria dos outros, os desafiava, os desdenhava. Elias era aquele que, vez ou outra, se recolhia aos cantos onde ninguém podia ir, e de lá voltava com os bolsos cheios, e a pança satisfeita. Não demorou para que Elias - que era quem melhor trabalhava - deixasse de trabalhar. Não demorou. Tornou-se fiscal do trabalho dos outros - espécie de consultor dos SS, fazedor de delação, um ótimo candidato às batatas de que um Machado de Assis disse estar reservada aos vencedores. Encerro este longo email com as palavras de Primo Levi sobre Elias Lindzin: "A questão é séria, mas vamos parar por aqui. Nossas histórias são histórias do Campo de Concentração; já se escreveu muito quanto ao homem fora do Campo. Desejaríamos acrescentar só uma coisa. Elias, até onde nos foi possível julgar e até onde a frase possa ter um significado, era, provavelmente, um homem feliz".


André Queiroz
imagem: gravura ney ferraz paiva

sexta-feira, 20 de maio de 2011


A RESPEITO DO SUICÍDIO DO FUGITIVO W. B.


Disseram-me que você levantou a mão contra si próprio,
Antecipando-se ao magarefe.
Oito anos exilado, observando a ascensão do inimigo,
Por último levado a uma fronteira intransponível,
Consta que você transpôs uma transponível.
Reinos desmoronam-se. Os chefes dos bandos
Comportam-se como estadistas. Os povos
já não se veem mais, debaixo dos armamentos.
Assim, o futuro encontra-se nas trevas, e as boa forças
São fracas. Você viu tudo isto.
Quando destruiu o corpo atormentável.


Bertolt Brecht
imagem: ney ferraz paiva

terça-feira, 17 de maio de 2011



ALEGRIA BREVE, de Vergílio Ferreira


Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele pátio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quanto estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o retângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho-a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe. Um diálogo interrompido como tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar, saldar de uma vez. Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchado – sou o Homem! Do desastre universal, ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante, lá longe, trêmulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha, donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros, e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida surgisse fora da vida. Mas agora o ar é puro, transparente, como um sino na manhã. Só as sombras se erguem desde o fundo. Com a neve acumulada tomam um tom violáceo. Mas é um tom nítido como o espectro solar. Os dois picos, de arestas limpas, vibram imperceptivelmente no céu úmido e já escuro.

Trago o corpo de minha mulher embrulhado num lençol. É estranho como pesa. Dir-se-ia que a terra o exige com violência. Gostaria de a olhar pela última vez, e no entanto não é fácil. O lençol branco confunde-se com a neve. Assim é como se o corpo se confundisse também. A toda a borda da cova, a neve ficou suja da terra acumulada. Será a fundura bastante? Metro e meio, talvez. De comprimento, está bem. Encosto-me ao cabo da enxada e é estranho que não reconheça em mim um sentimento distinto. Cansaço, decerto, e o orgulho e o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho. Talvez seja assim a velhice: um esgotamento longo de tudo. E no centro, breve, uma verdade final. Como um objecto precioso que se tira da terra e se limpa – qual a tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e puro. E nu. Mas quando vou a erguer o corpo, não resisto: subtilmente afasto as dobras do lençol. Então Águeda aparece-me à última luz da tarde de Inverno. Magra, sisuda, indignada com a vida. Pus-lhe o terço nas mãos, um pouco talvez para a reconciliar consigo, para ter um sono mais fácil. Mas a face agreste de boca cerzida, as mãos quase enclavinhadas fixaram para sempre a imagem de um desespero.

– Dorme.

Cubro-a de novo, suspendo-a a custo. Afinal a cova ficou curta: os joelhos soerguem-se-lhe um pouco. Uma das dobras do lençol deslizou e tenho de me debruçar para a compor. Baixo-me, tremente, uma onda de suor vem bater-me em todo o corpo – que é que me assusta? Onde é que? É tudo tão grande. A noite cresce no céu, é necessário acabar tudo de pressa. Sobre nós, os ramos nus da figueira começam a apagar-se na sombra. A terra cai na cova com um rumor fofo. Vou à loja buscar estacas para fazer uma cercadura. Um dia ponho-lhe uma lápida, talvez, ou alinho à volta lascas de pedra com se faz nos canteiros. Possivelmente cairá neve de noite e apagará aquelas manchas de terra. Mas é preferível cobri-la já com neve limpa do quintal. Com a pá vou apanhando pequenos blocos brancos que espalho sobre a sepultura. Depois aliso a superfície para que tudo fique perfeito. Entro enfim em casa e estiro-me num sofá, voltado para a janela de postadas abertas. Para lá do grande vazio, os dois morros sobem pelo céu com uma alvura pálida. Ligeiramente parece-me que se movem quando os fito intensamente.


Editora Portugália, Lisboa, 1965
imagem: ney ferraz paiva

quarta-feira, 11 de maio de 2011



Ernesto Sabato: o delirante morreu enterra-se o estrangeiro


Ney Ferraz Paiva


Está sentado num dos últimos cafés de ar verdadeiramente portenho, com uma camisa azul escura que reforça o seu ar de monge e de anarquista ao mesmo tempo. Sabato é o último dos moicanos da retidão que não nega encarar os dilemas. Ele os vê com os olhos ziguezagueantes atrás dos óculos, num rosto que mescla traços de Chestov e Kierkegaard. E diz: ‘Se o homem é mortal em qualquer parte do mundo, aqui é muito mais mortal’. Tira os óculos e sorri meio de lado, acentuando as linhas do rosto sofrido. Vê-se, então, que é um homem só. O último dos moicanos.Franco Mogni, entrevista Sabato, Revista Che, anos 1970.
Arisco é o destinoesta é a lição de etimologia que se pode arrancar à obra de Ernesto Sabato e a ele mesmoescapar tanto na vida quanto na escrita. Ele que duelou com Borges e sobreviveu, jamais como adulador, a fazer concessões nem fingimentos, ainda que ferido mortalmente por um diálogo de alta voltagem entre rivais. Ele que sempre recambiou a escrita aos lugares de túneis e sombras entre homens feridos, quase sempre abatidos. Mais do que queimar livros há quem mande trucidar homens. Livros valem menos do que sentenças de morte. O grande-cão da morte ronda a América Latina. O Anjo Exterminador e seus incontáveis discípulos cegos. A escrita de Sabato não foi menor que o contexto adverso a que ele resistiu e devemos continuar resistindo. Escrita que incitou um contato intensivo com a população oprimida da Argentina. Com a juventude e as mães dos desaparecidos políticos. Mas escrever é menor que tudo isso, Sabato compreendia, e por isso soube manter-se também como um homem à parte, um outsiderdistante, talvez, ou tímido, com um problema visual a bloqueá-lo cada vez mais num ambiente retrospectivo, silencioso, mas que não paralisou a sua escrita nas reminiscências e autoexílios da emoção em um tempo turvo. Sabato o protagonizou. Ora nas ruas, ora pintando, ora escrevendo. Fez a Argentina falar ao mundo. Uma Argentina eminentemente política. Se nunca ninguém viu o Estado, é talvez porque de fato ele não exista, no entanto, as ditaduras latino-americanas não foram regimes de idealismo transcendental, o que inclusive certos espíritos altivos que caem de quatro pelo poder chegam a considerar. Às ditaduras se juntaram o capitalismo, o tribunal, a igreja, a imprensa. Todo ardil dos farsantes. Sucessivos governos dos Estados Unidos, não menos totalitários e espúrios, sobretudo porque tratavam de executar ações que visavam impor “padrões mais elevados de Estado” como forma de desmobilizar os males do marxismo pela América Latina e alhures. E todos esses vestígios de realismo não poderiam ser simplesmente descartados como se Sabato abrisse mão de apenas um entre tantos temas artísticosum estilo, uma inspiração fugazantes, Sabato teve que captar o momento expressivo da escrita e não sucumbir. O que não é pouco, é certo. Por essa época os escritores latino-americanos foram lançados a essa escolha, mas nem todos perceberam claramente do que se tratava. Foi através de Sabato que, pela primeira vez, muitos se deram conta. Sabato ousou dizer o que se passava à frente; e imaginou o tempo que se viviaisso de fato, não é pouco. E atentou chamar-se constantemente de homem cético. O ceticismo é um efeito que a literatura recolhe de suas entranhas e que se desdobra em vastas operações de escala entre ritmo e sentido. O ceticismo da escrita sem metáforas. De conceito, julgamento e conclusão. Talvez, por isso mesmo, se possa aproximar Sabato de um certo Walter Benjamin. Ambos aliados num mesmo risco de singularidade a que nem todo grande escritor adere. Talvez ao longo do vasto percurso da indiferença muitos fracassem. Mas como não deixar o sofrimento atravessar o vale estreito entre a vida e a escrita? Seguir sem enfrentar os efeitos de desvalorização do homem? Não cumular nenhum recalque? Sabato teve por todas essas razões (e mais algumas) uma trajetória difícil, de embates e combates imprescindíveis para continuar vivendo, gravados em suas feições. E que hoje se faça outro comércio de fronteira entre os governos latino-americanos, os Estados Unidos e a Europa, como se os dois íltimos estivessem em seu próprio território, impondo o que venha a ser o desalentado valor dos termos “democracia”, “liberdade”, “legalidade”, repisando instantaneamente alguns sinais de paródia, algumas variações de rótulos, abertas combinações de incerteza e medo, consignados os erros, evidenciados os equívocos e anunciado o terror, com os quais talvez não se quisesse mais ver negociadas e desistimuladas as possibilidades de variação, diversidade e revezamento da justiça. Sabato e todos os seus leitores talvez tenham, numa certa medida, subestimado que a história é reativa. Que estão impugnados os finais felizes. Que não se pode pretender deter o tempo em seu túneis e tumbas. Mesmo se nessa operação um dos maiores escritores e críticos do século XX esteja envolvido. E que tenha morrido num lugarejo de Buenos Aires, aos 99 anos. Um delirante e extenso ritual de “carpe diem”.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       




Ernesto Sabato faleceu em 30 de abril de 2011, em Santos Lugares, Argentina. Autor dos memoráveis e atualíssimos O Túnel (1948) Sobre Heróis e Tumbas (1961). Como Borges, Sabato não ganhou o prêmio Nobel.