o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 24 de março de 2011


talvez com um vestido azul
com bolas brancas
chegaste enfeitiçada senhora
a esta estranha cidade
destinada a não ser porto nem metrópole
em sujas & desleixadas ruas numa tarde
[ou já seria noite] nos assombraram senhora teus lábios
entre as coabitações da lua ou numa tarde chuvosa
lábios tão secos velhos caminhos de pedras portuguesas
sem dizer palavra chegaste cidade de onde tudo levam as 
águas enfeitiçada senhora saltavas de teus livros
valise de cronópio ao lado

talvez com um vestido azul
com bolas brancas
passageira das estrelas chegaste
onde tudo as águas levam embora entre as coabitações da
lua ou numa tarde chuvosa saltavas de teus livros
lábios tão secos sem dizer palavra valise de cronópio ao lado
em sujas & desleixadas ruas numa tarde
[ou já seria noite?] partilhavas tua beleza
ferida que não fecha
precária & preciosa

ney ferraz paiva, do livro nave do nada, 2004.

quinta-feira, 17 de março de 2011


palavra é crueldade


ó vida triste vida
se eu casasse com a filha
da minha lavadeira
dava na mesma



ney ferraz paiva, do livro não era suicídio sobre a relva

quinta-feira, 10 de março de 2011



LÁGRIMAS AMARGAS DE RAINER WERNER FASSBINDER



fazer alguma outra coisa próximo às estrelas
[mas eu não quero que vocês me amem]
fazer alguma outra coisa sob águas profundas
[mas eu não quero que vocês me lembrem]
fazer alguma outra coisa contra o sofrimento
[mas eu não quero que vocês me perdoem]
fazer alguma outra coisa entre o amanhecer & o fim
[mas eu não quero que vocês me tirem das profundezas do silêncio]

o amor        
mesmo o mais forte
é mais frio do que a morte
estou a ponto de vomitá-lo da minha boca


ney ferraz paiva, não era suicídio sobre a relva

quinta-feira, 3 de março de 2011



UMA ARTE

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.


Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! e nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.


Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


— Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.



Elizabeth Bishop, The complete poems 1927-1979.
New York, Farar, Straus and Giroux, 1991.
Tradução: Paulo Henriques Britto
Iamgem: sequência final de Betty Blue

terça-feira, 1 de março de 2011

tempo glauber




poderás dizer fechado como estás
nesta amêndoa
relógio veloz & sem rédeas
oceano de memória com umbrais de sepulcro
noturna estação vista pela última vez
com certeza você meu inimigo
um tipo de milagre tirado da rocha
[você preferia a palavra terra
acrescentava a ela outras metáforas tortuosas
sol vento trovão]
você dirá [não vamos mais perder esta pista]
respiração submersa
triste amálgama de linfa & sangue
sem vagas expressões de conforto
mais uma crise de sufocação
você dirá ainda assim
das entranhas de um animal abatido
a terra é a última cicatriz






ney ferraz paiva, não era suicídio sobre a relva
imagem: graciela iturbide