hospício moinho dos ventos

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Um pedaço de poesia no bolso – e nos lábios

Em “Olhos de Barro”, José Geraldo Neres associa imediatamente o corpo à terra, como signos que contaminam o espaço. Pedaços que se juntam do mundo inteligível a outros – “esses que nos acenam da outra margem”, como diz Mia Couto na epígrafe de abertura –; uma vez que o livro logo se lança a variadas margens de enunciações, lugares e portos, e outros tantos anúncios de itinerários – música, sonho, noite, chuva, voz, espelho. Signos extraviados como o próprio livro se extravia a um encontro com o leitor, numa viagem entre parêntesis, sem acertos prévios. “Molhado caminho a costurar corpos”, a evocar as misturas que não podem esperar – uma à margem da outra, “ombro a ombro” expostas, abertas, a circular por uma tipografia de lugar nenhum onde só os “corpos se inclinam em resposta”, que pode ser mesmo a mais insignificante, corriqueira, modesta, (um aceno). Que mais se pode dizer? Se a poesia está nos lábios, também pode se enfiar no bolso, como um tipo especial de objeto de família. É por esse duplo movimento que José Geraldo Neres nos mostra a fotografia antiga (ainda que breve) de sua poesia. Sem arremedar ou traduzir paisagens. Antes, a esgarçar significativamente e de forma plural a vida. Lançado à terra, o corpo livra-se das barreiras do estereótipo. “As casas caem com o passar do tempo”. E a poesia (nomes, cheiros, sombras) põe o mundo num novo princípio, ainda que uma vez mais prevaleça caprichosamente as imagens fixas da fadiga. Sendo antiga, a poesia escapa da perspectiva do futuro, sem os danos colaterais das outras linguagens. E por isso mesmo ela é sempre o frescor irrefreável do novo, num momento: “corpos de terra, agora pó, parede, casa”.

os que acenam da outra margem II

Os pés crescem a brincar ladeira abaixo. Meu nome. Carrinho

de barro sem palavras. As marcas da chuva na terra sequer acompanham

nossas sombras. A rua deságua nas raízes das casas.

Espreitado por portas e janelas, o céu se arrepia. Molhado caminho

a costurar corpos. Ladeira abaixo, fome não existe. O tempo, língua de

outra língua, desenha outros carrinhos. Corpos se inclinam, verdes olhos

acenam em silêncio. A força do vento causa inveja aos anjos.

Ney Ferraz Paiva

Olhos de Barro, José Geraldo Neres, Editora Multifoco, Orpheu poesia, 2010

imagem: Sigmar Polke, primavera

3 comentários:

josé geraldo neres11 de fevereiro de 2011 às 02:38
Olá Ney Paiva.

Agradeço as palavras do amigo; rescindimos o contrato deste livro. Espero que um dia este livro volte a circular (mesmo, é claro: com alguns outros textos acrescidos), vamos no que dá. Abraços poéticos.
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Edson Bueno de Camargo11 de fevereiro de 2011 às 08:26
Cada livro uma história, a deste livro vai virar lenda.
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Ney Ferraz Paiva12 de fevereiro de 2011 às 08:37
edson, também gostei muito do seu livro. sei dos incidentes. mas tanto o seu quanto o de geraldo fazem passar intensidade, vibração, força. vivo pelos grandes livros!!!
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CLARICE LISPECTOR: escrever é comer o interior da barata

uma Clarice nasce na Ucrânia outra em Alagoas outra mais no Recife outra no Rio pelo mundo & fora do tempo quantas vezes nasce a mulher negociada num antiquário despida de antigas memórias desaparecida dentro de um livro junto com uma velha gravura ou num quarto em Belém como quem não quer nada nem pode desmunida de correto destino ou em Nápoles sob bombardeio virtuose do silêncio & do medo tanto que exímia mãe do abismo outra migrou despistada de si arrancada ao coração da noite selvagem embaralhada pelo azar outra registrada com nome falso outra que soa como uma ameaça quantas vezes nasce a mulher? (Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d'água)

.

um quarto no Central Hotel você morou ali suas entranhas bem mais do que mobília fervedouro de signos você lavou ouro ali tramou experimentou deprimiu-se gatos são a melhor companhia já a poesia por mais exangue que seja é uma assinatura uma rubrica indecifrável pálida discutível você não renunciou ao risco debateu-se com a sua carga do que resta da escrita no mundo madeira taquara barro isso que da escrita resta dobrada sob o fardo petrificada menos do que você mesma & tanto (Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d'água)

ANA CRISTINA CESAR: estas são as faces da minha fúria

toquei minha mão justo na mão de Ana portas nos separam ou nos mudam de lugar? agora pergunto se a presença do corpo é mesmo indispensável não saber estilhaça meus sentidos giro em torno do vazio feito um cão atrás da cauda quando criança costumava encher o rosto de creme sempre foi de longe a mais vaidosa musa transviva do amanhecer depois namoro na praia & na montanha a dor de pegar o avião pra ir embora a mãe Amélia disfarçada em Luiza luz é símbolo da beleza absoluta vivo sem saber como vai ser o dia uma escritora está sempre atrelada a seu personagem ensaio palavras em francês pra ela ouvir recados luminosos espalhados pelos quatro cantos do mundo (Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva)

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SYLVIA PLATH: Metamorfose encenada

o frio o gás os barbitúricos falharam a arte de morrer é interminável esse mar onde naufragas de novo transpondo a terra entre Boston & Londres águas antigas que envenenam como um amplo pomar ou a lua o mal chega ao fim já recomeça um aborto uma apendicite torrente cada vez mais profunda nada que te fizesse adoecer mais do que todos claro a dor o dom era teu a maior parte esse negócio de viver a irracionalidade chega-se lá estanca & se está de volta uma mulher que morre – abelha rígida outrora rápida sarcástica imprevisível (Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d'água)

BERNA REALE: A LOUCURA SEM REPOUSO

aqui sobre a mesa à nossa frente está Berna Reale a paisagem de uma cidade enfermaria a céu aberto é feita de carne deteriora despedaça separa arrasa como uma sombra no pulmão tosses suores asfixias em busca de ar fresco pessoas descem ruas mercados rios praças uma musculatura louca também isso a arte faz traz cadáveres à rua pra revoar os pássaros do horror deixar falar os balbucios do medo os braços da morte não estão mais cruzados diante do espectador aonde essa doença vai dar sem penicilina & cânfora a um sem-número de nãos? a uma dor mais intensa? aqui sobre a mesa à nossa frente está Berna Reale o corpo nu sem respiração ligado à loucura & à morte ainda assim quer viver absorto em seu mal quer seguir respirando aspirar o ar necessário pra nunca mais precisar voltar à superfície (Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d'água)

MAURA LOPES CANSADA DE DEUS

tenho uma última palavra guardada na minha mala que nem mesmo as etiquetas revelam espalho por muitos lugares meus pesares espelhos sem conserto da memória água & fogo misturados penetram minha garganta não me fecho no meu medo não sou mulher o dia inteiro nada espero de mim nem de deus o que me pode dar parece pouco hesito sim entre uma palavra & outra como dizê-la sem malogro a asa da loucura à minha volta – essa palavra última (Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva)

CAROLINA MARIA DE JESUS: escrever como um soco no estômago da fome

Carolina Maria de Jesus indisfarçavelmente era a ralé - tão destituída de predicados refinados que mesmo o eufemismo "escritora", arranjado depois do célebre livro que ela jamais escreveu, não a poupou de nada. Numa sociedade criminosamente injusta e racista, não seria exatamente a literatura que lhe abriria um lugar para respirar. Entre os ilustres letrados, Carolina não teve a menor chance. A ela o abandono e o esquecimento. Do livro brasileiro mais traduzido no exterior e que no Brasil esgotou sucessivas edições - pouco resta além da lenda. E todas as mazelas da cena cultural de ontem e de hoje podem se dar num contexto ainda mais fechado à mulher pobre, negra, desfavorecida. Vivemos numa sociedade onde o "azar" de nascer na família e na classe social "erradas" determina toda a vida da metade da população. Carolina não encontrou lugar, um canto na casa grande da literatura chapa branca, dos intelectuais que caem de quatro pelo poder - foi devidamente despejada de volta à senzala. (Ney Ferraz Paiva)

EÇA EM HAVANA

metido no hotel como no museu intocado intato o quarto funciona como uma máquina do tempo velho cômodo da literatura não inclui privacidade livros como tesouros saqueados pela crítica e a bela reconstituição autêntica de Havana ressoam pela praia fraca tênue truncada por andares alas quartos claustrofóbicos sombras do vento carcomidas nos olhos se entrecruzam se espalham & inundam que fizeste ali trancado? que sugaste pelas fendas? o quarto funciona como uma máquina fotográfica (Ney Ferraz Paiva, Arrastar um landau debaixo d’água)

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

três anos de paris sitiado & sitiante sob a força de um destino cego um vago amor duas ou três paixões nem deuses nem cantos nem a beleza das mulheres dispersar-se foi a forma que achou pra habitar a terra ou ainda: certa zona louca de seu mundo interior até o ponto extremo de não mais se distinguir nem se saber mostrar a imagem nada além de imagens obter cinqüenta & um poemas – eis tudo nem mito nem ciência nem razão nenhum outro indício houve ainda duas ou três cartas enviadas a Fernando [trancara-se & selara-se pro amigo] véu negro da palavra o silêncio última intuição que talvez seja a verdadeira (Ney Ferraz Paiva, Nave do Nada)

FERNANDO PESSOA

fui ontem a enterrar Fernando Pessoa num jazigo banal do cemitério dos prazeres surpreendeu-o a morte a doença que não lhe pertencia anterior modesta hospitaleira acertou-o em cheio a bala da misericórdia a liquidá-lo de um susto toda Lisboa a contragosto [estética moral metafísica todo esse comércio sem escrúpulo inclusive ciência fé amor] desce com ele à cova está-se indefeso ante esse tipo de coisa mesmo um morto esquivo à companhia sobre quem sempre se quis soltar os cachorros sem casa sem título sem dinheiro detido agora no abismo & no silêncio ferve a ausência & o mistério que sempre soube (Ney Ferraz Paiva, Nave do Nada)

JORGE LUIS BORGES

nunca fui Jorge Luis Borges sobrevivi a esse nome por acidente dissolvido num verbete da Enciclopédia Sudamericana [Santiago do Chile 2074] o som j em castelhano como José Francisco Isidoro Luis Borges autor & autodidata último trapaceiro da linguagem olhos danificados pela aridez das palavras deixado a mim mesmo & a meus duplos morto em la verde ante as balas tentei esboçar o mundo povoá-lo com imagens um labirinto de reinos astros naves desfizeram a linha do meu rosto ave desfigurada até os ossos a noite selvagem trovoando em meu crânio em que parte em que tarde o fechado sol de Buenos Aires? no elevador/na sala/nas flores/no cadáver de Leonor? filho desfavorecido equilibrado sobre o mar o nome o renome o rumor dois ou três amigos – desses pelo menos dois me odiaram talvez Sábato ou quem sabe Cortázar a literatura é o ardil favorito dos deuses etc. (Ney Ferraz Paiva, Nave do Nada)

LÁGRIMAS AMARGAS DE RAINER WERNER FASSBINDER

fazer alguma outra coisa próximo às estrelas [mas eu não quero que vocês me amem] fazer alguma outra coisa sob águas profundas [mas eu não quero que vocês me lembrem] fazer alguma outra coisa contra o sofrimento [mas eu não quero que vocês me perdoem] fazer alguma outra coisa entre o amanhecer & o fim [mas eu não quero que vocês me tirem das profundezas do silêncio] o amor mesmo o mais forte é mais frio do que a morte estou a ponto de vomitá-lo da minha boca (ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva)

Paulo Plínio Abreu: o uivo aterrador da destruição

a nave louca do poema te surrupiou da literatura que te surrupiou da história [de ti nem um modesto retrato de funcionário público pendurado na parede da caverna da chamada literatura brasileira talvez porque nunca tenhas feito literatura brasileira – ainda assim como não notar tua presença?] a nave louca do poema te reconduziu ao inferno ou seja à palavra infinita à linguagem luminosa num tempo acanhado sombrio inabitável tratava-se de um discurso público [ainda que não publicado] & não da voz lírica do sujeito a emoldurar sonhos esperanças nem da sociedade nem do povo o carregamento de tua nave não era de rosas & sim de piolhos tinhas o que dizer mas aos decentes a esses nada disseste queriam arrancar de ti as palavras amor fé liberdade teu poema se dizia de uma maneira difícil de perscrutar tais mensagens – a facilidade tu empurravas despejavas eliminavas não edificaste uma cidade um livro uma doutrina – pra isto basta ter nascido filho bastardo da memória vestias os mortos com o que cai do coração dos vivos não eras de um único lugar nem de um mesmo tempo almejavas a ruína o fragmento a dispersão tua voz era uma aventura suicida – onde ela pode ser ouvida hoje? uma poética estranha uma literatura estrangeira um dia a encontrei [dez exemplares] numa estante metálica [assim é o som da morte] na biblioteca da universidade nenhum professor havia mencionado mestres medianos enfurnados em suas lavanderias secando a roupa de gala dos canonizados mas ela estava ali suja insubmissa bela intratável interditando o trânsito das coisas conhecidas disponíveis & de graça a nave louca do poema atravessa intromete-se – não se exila viaja para o oco das coisas só aparentemente está à distância torna sempre a aparecer insubornável (Ney Ferraz Paiva, Nave do Nada)

MÁRIO FAUSTINO: um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva

você não é nada-/-,-,-,-,-,-, -,-,-,-,-/noturno & sem volta /velho caim/ perdido/eu diria para sempre /-/-/-/ morcego sobre rios podres /-a inveja /dentro de nós/-/-/-/- /-/-/-/ correnteza sem direção/você está cego/-/ eu me visto com as suas cinzas/desferrolhadas cicatrizes/-/-/sua ausência é uma caixa de surpresa/-/-/- prepara o homem para o pior /-/a nave da morte reverbera silêncio/-/-/--você finda essa colheita/mão esquerda farta & vazia/-/-,-,-,-,-,-,-,-,-,-,/rara metamorfose alada;-/-/-/ plena do que vai ser/-/-/-/-/- (Ney Ferraz Paiva, Nave do nada)

N. F. P. AMANTE DE MÁRIO FAUSTINO

ANTI-RETRATO DE MAX MARTINS

O poeta Max Martins deu uma verdade nova para a poesia. Ele operou uma distribuição outra do poético, e provocou a dissipação. O nome de Max permanece ligado ao novo desde a publicação do primeiro livro “O Estranho”, 1952. Foram 50 anos de duração, memória, impulso vital, imaginação. Sua influência é geral, está por todos os lados, ultrapassa os limites do literário e vai às artes visuais, teatro, cinema, música, escultura, fotografia etc. Gerações sem “mestres” são uma tristeza, nos diz Deleuze. E os primeiros mestres, é certo, são os professores, a eles devemos sempre muito, mas os poetas são os mestres de toda a vida de um povo. E Max é, entre os mestres, para nós no Pará, o grande mestre, pela novidade radical da poesia que realizou até o fim. (Ney Ferraz Paiva)

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sentado na cadeira do poeta eu vi o mar o mar & sua serpente sépia o fervor a pronúncia áspera das águas de uma palavra que conduza os mortos para o outro mundo boca que a loucura gostaria de ter mar em que o último irmão se removeu até o fundo arrastado pelos pássaros cansado de nada encontrar tudo que não fala tem uma segunda morte a noite a chuva o cachorro vesgo as más notícias que chegam com as águas as más notícias tudo com o que não é possível se conciliar deito com a palavra meu sonho fúnebre que me fará atravessar & sucumbir como a carcaça do afogado em sua mudez tagarela o poeta unge o acaso com a taça vazia a dor é a noiva das alegrias! [atravessar oceanos enfrentar exércitos descer aos infernos] (Ney Ferraz Paiva, Nave do Nada)

TORQUATO NETO: AFINADOR DE TEMPESTADES

a literatura é minha irmã siamesa ela tenta me destruir ela existe em mim como vício & loucura deve ter um poema que se possa ler para essa inimiga escrito em Londres Paris ou Teresina dizendo que a morte não é a minha que meu coração não aguenta ficar sentado em contagem regressiva não sei me punir nem estou em condições de explicar nada meu problema inclusive o de cama estilhaça como célula sem vida não sei onde encontrar minha coragem não conheço deus nem sei onde procurá-lo apenas o que posso ir sendo são meus bens (Ney Ferraz Paiva, Não era suicídio sobre a relva)