o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011


HÁ UM FERNANDO PESSOA EM MIM QUE DEUS ME DISSE


tive sempre o mesmo pai a mesma mãe
eu que fui vário
nascemos como as pedras com todos os sexos
meu coração dá as ordens
cortejando mulheres
seres à deriva
indiagnosticáveis desejos
meu horóscopo é o mesmo de fernando pessoa
impostas certas cláusulas contratuais
o parentesco não me serve de nada
um a um eu os vi morrer todos eles
gagos de voz & de mãos
sem uma saída viva pra vida


ney ferraz paiva
imagem: fernando lemos

domingo, 20 de fevereiro de 2011





três anos de Paris
sitiado & sitiante
sob a força de um destino cego


um vago amor duas ou três paixões
nem deuses nem cantos
nem a beleza das mulheres


dispersar-se foi a forma que achou pra habitar a terra
ou ainda:certa zona louca de seu mundo interior
até o ponto extremo de não mais se distinguir nem se saber


mostrar a imagem nada além de imagens obter
cinquenta & um poemas – eis tudo
nem mito nem ciência nem razão
nenhum outro indício


houve ainda duas ou três cartas enviadas a Fernando
[trancara-se & sela-se pro amigo]
véu negro da palavra o silêncio
última intuição que talvez seja a verdadeira



ney ferraz paiva, do livro nave do nada
imagem: robert e shana parkeharrison

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011



m/m



vi teu novo livro
o velho rei ri uma outra vez
oracular & tipográfico
sol de mil línguas
sal do mar morto
palavras que se encaixam pra ser ouvidas longe
amalgamada infatigável enfurecida fonte
baforadas do velho credor
na rede em que lê-escreve ressoando
te roendo
bebe agora a primeira dose do dia -
à vossa saúde




ney ferraz paiva, do livro val-de-cães
imagem: marcia huber 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Os homens submersos voltarão?


Não sou um autor defunto, sou um defunto autor. 
Machado de Assis


Não há reencarnações literárias. À parte leitura e obra, o escritor é amorfo à ressurreição. Depois de sua morte temos que seguir em frente. Quando Carlos Drummond morreu, restava-nos ninguém menos do que João Cabral de Melo Neto, ainda que no Olimpo não tivesse havido nenhuma sucessão ou transição. Drummond e Cabral faziam parte do mesmo mundo incomensurável de todos os mortais. Nem mesmo nessa hora a literatura distingue seus filhos diletos. Toda passagem da morte para a glória literária é incerta. Os serviços pós morte de um escritor enfrentam o grave problema da invisibilidade que aniquila qualquer indivíduo. Há de se fazer seminários, simpósios e debates em torno de sua obra. Trocas de pensamentos com o além costumam imprimir certo vigor ao desaparecido. Documentários também costumam ajudar bastante. Mas nada é tão definitivo como publicar as cartas do falecido (ai do escritor que não escreve cartas!). É dessa forma que ele pode estar de volta, rompendo o silêncio que o quis aniquilar.



A edição de fevereiro da revista “Bravo!” publica matéria que praticamente ocupa toda a seção destinada à livros. É que Drummond está de volta. Cartas trocadas entre ele e Cyro dos Anjos serão publicadas este ano. Mas desde já podemos pressentir os sinais e as reviravoltas de sua aparição? Drummond foi um poeta que escolheu viver na República de Platão. Ao longo de meio século de lida com a palavra jamais se lançou a nenhum infortúnio. Acomodado, calmo e pouco dado à fala, foi acusado inúmeras vezes de exercer acriticamente e sem transparência o ofício. Mário Faustino chegou a assinalar que se tratava de um poeta que não manifestava “grande interesse pelo progresso da Poesia”, e que atravessou de forma opaca momentos cruciais da vida sócio-cultural de seu tempo. Desprendido do limbo, dessa vez as confidências do itabirano conseguirão abalar a inércia atual dos arraiais literários?



Uma primeira coisa a considerar, em se tratando de uma prática pessoal, é se as cartas superam aspectos como contexto e particularidade – e talvez a forma de se chegar a uma resposta seja avaliar os motivos que levaram Drummond a não escrever suas posições estéticas direto nos jornais. Se tudo era operado a partir de uma análise crítica rigorosa e não apenas como comentário subjetivo, destinado à confidência e ao desabafo sentimental. Pelo que se lê na revista, os excertos das cartas, tratados como “opiniões fortes” no título da matéria, se voltam preferencialmente contra dois grupos: os regionalistas Nordestinos e os escritores de formação católica. Drummond parece movido por certo modo de ver e não de interpretar uma crise que de fato existisse. Segredar opiniões fortes, confidenciá-las a um interlocutor amigo, sem, contudo se rivalizar esteticamente, de forma nítida, com nenhum dos autores. É o que acontece aqui. Drummond tinha parceiros tanto num grupo quanto no outro. Um extenso e variado acervo fotográfico o coloca repetidas vezes ao lado de um José Lins do Rego ou de um Vinicius de Moraes. Ao fomentar melhores traços para o romance brasileiro a partir de o “Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos, sua aposta não escapa de parecer hoje uma piada sinistra. E assim como os nordestinos seguem assegurando seus nomes e obras no espaço literário, é o caso citar Raimundo Carrero e Ronaldo Correia de Brito, as vãs simetrias de humor e estilo do missivista impiedoso acabariam por confirmar, em 1976, mais do que afinidades e entusiasmos com a escrita de Adélia Prado, poeta católica a que recomendou e incensou ao galardão – antecedida por Cecília Meireles e Lúcio Cardoso.




Drummond deveria duvidar um pouco mais das circunstâncias e do seu vasto coração. Isso vale para os célebres e os iniciantes. Ternas hipérboles ligavam o poeta sobretudo aos conterrâneos mineiros. O que de forma alguma o torna inferior a seus pares. Há uma face nebulosa da cena intelectual brasileira em que o infinito abismo só pode ser evitado com fisiologismo e fácil elogio. Muitos enigmas ainda a se decifrar no vasto, mas nem tão variado, cânone da literatura dita nacional. Crescentes e sórdidos labirintos separam do grande público a reimpressão literal dos fatos. É dessa maneira que se constroem reputações, carreiras bem sucedidas e se recebe rentáveis prêmios. Há sempre uma carta, bilhete, ou mais atual: um torpedo, um e-mail que intermedeie patrocínios relâmpagos e estratosféricos valores que a burocracia dos editais não têm como atender. Passos secretos e semidivinos. Afinidades na forma e no tom. Assim declaram as odes e os espelhos. A idiossincrasia kafikiana dos gabinetes e o sobrenatural que vez por outra nos espreita.

Excertos das cartas de Carlos Drummond para Cyro dos Anjos:

“O arraial das letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia de Raquel, onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance de Zé Lins. (...) O livro de Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe sequer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria talvez em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião.”
(11 de outubro de 1953)

“Ainda não pedi notícias de seu romance, que me interessa muito. É da maior importância que você o conclua, contribuindo para que se retifique o conceito atual do romance entre nós. A mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e anti-crítica de aspectos de uma vida regional, como fazem os rapazes do norte (entre parênteses: como escrevem mal!), nem essa literatura ‘restaurada em Cristo’ com que nos aporrinham os pequeninos gênios marca Lúcio Cardoso.”
(04 de agosto de 1936)


Ney Ferraz Paiva, Salgueiro-PE, fevereiro 2011.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011


Um pedaço de poesia no bolso – e nos lábios



Em “Olhos de Barro”, José Geraldo Neres associa imediatamente o corpo à terra, como signos que contaminam o espaço. Pedaços que se juntam do mundo inteligível a outros – “esses que nos acenam da outra margem”, como diz Mia Couto na epígrafe de abertura –; uma vez que o livro logo se lança a variadas margens de enunciações, lugares e portos, e outros tantos anúncios de itinerários – música, sonho, noite, chuva, voz, espelho. Signos extraviados como o próprio livro se extravia a um encontro com o leitor, numa viagem entre parêntesis, sem acertos prévios. “Molhado caminho a costurar corpos”, a evocar as misturas que não podem esperar – uma à margem da outra, “ombro a ombro” expostas, abertas, a circular por uma tipografia de lugar nenhum onde só os “corpos se inclinam em resposta”, que pode ser mesmo a mais insignificante, corriqueira, modesta, (um aceno). Que mais se pode dizer? Se a poesia está nos lábios, também pode se enfiar no bolso, como um tipo especial de objeto de família. É por esse duplo movimento que José Geraldo Neres nos mostra a fotografia antiga (ainda que breve) de sua poesia. Sem arremedar ou traduzir paisagens. Antes, a esgarçar significativamente e de forma plural a vida. Lançado à terra, o corpo livra-se das barreiras do estereótipo. “As casas caem com o passar do tempo”. E a poesia (nomes, cheiros, sombras) põe o mundo num novo princípio, ainda que uma vez mais prevaleça caprichosamente as imagens fixas da fadiga. Sendo antiga, a poesia escapa da perspectiva do futuro, sem os danos colaterais das outras linguagens. E por isso mesmo ela é sempre o frescor irrefreável do novo, num momento: “corpos de terra, agora pó, parede, casa”.



os que acenam da outra margem II

Os pés crescem a brincar ladeira abaixo. Meu nome. Carrinho
de barro sem palavras. As marcas da chuva na terra sequer acompanham
nossas sombras. A rua deságua nas raízes das casas.

Espreitado por portas e janelas, o céu se arrepia. Molhado caminho
a costurar corpos. Ladeira abaixo, fome não existe. O tempo, língua de
outra língua, desenha outros carrinhos. Corpos se inclinam, verdes olhos
acenam em silêncio. A força do vento causa inveja aos anjos.


Ney Ferraz Paiva
Olhos de Barro, José Geraldo Neres, Editora Multifoco, Orpheu poesia, 2010
imagem: Sigmar Polke, primavera

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011


Luiza menina espantalho






Sartre conta que a morte do seu pai, devolveu sua mãe à prisão e deu-lhe liberdade, porque se tivesse sido de outra forma, confessa “não há bom pai, é a regra... houvesse vivido meu pai deitar-se-ia sobre mim durante muito tempo e esmagar-me-ia”.

Para Luzia, personagem do curta-metragem “Menina Espantalho”, do diretor Cássio Pereira dos Santos, de 2008, o pai é um peso a esmagar as tentativas da menina de ler o mundo através dos livros. Limitada ao universo feminino que o pai reconhece, com a anuência da mãe, Luiza se entrega às artimanhas da invencionice infantil. Já com uma leve pitada de malícia feminina ela convence o irmão – único a receber o benefício da educação formal, por ser menino – a ensiná-la a ler.

Tudo feito na calada da noite, sob a luz trêmula da lamparina; a menina é iniciada nos sussurros das sílabas-senhas do alfabeto. Como contraponto a tentativa da mãe em adestrar a pequena Luiza nos afazeres domésticos e pouco fetichizados, como é o caso do bordado para o qual a menina não denota nenhuma habilidade. Uma alegre visão é a mãozinha dela passeando nas cerdas do arroz novinho, recém-nascido com o seu verde tenro, que no vigor da cena lembra Manuel de Barros: “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:/Que o esplendor da manhã não se abre com faca”.

Todas as coisas atadas bem naquele ponto de junção em que a verdade dos fatos quer ser tão somente a verdade de um mundo que almeja explodir geografias, destinos, mapas – espécie de gramática expositiva do chão – descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas (Manuel de Barros). Incansavelmente a vida é lavrada em uma alegoria de que o tempo da leitura pode ser o mesmo da lavoura, uma trajetória que pode brotar em qualquer ponto entre preparar o solo e colher o alimento. Muito menos que isso compreendido, visto habitar a repetição e a intensidade de dias banais: a mãe e o seu silêncio – onde para a mulher falar é prata, calar é ouro; o pai e o semblante enraizado, endurecido – estudar é coisa para homem, embora ele mesmo não tenha podido fazê-lo.

Está tudo ali, sem ser uma definição, nem mesmo em partes menores, da vida e do mundo; sequer uma sublevação: nenhum ato é mais importante do que outro, mesmo no momento em que o pai é tomado de emoção com a leitura inesperada da carta do irmão feita por Luiza; não há ambivalências aí, há a simplicidade do ato, residindo aí toda beleza do filme: ele não quer recuperar uma cronologia histórica, nem desfraldar a bandeira iluminista. Fala apenas das coisas como elas são com a inflexão próxima de quando se lê um belo romance ou se descobre um bom poema – ou um filme singular.

Juliete Oliveira

Salgueiro-PE, janeiro 2011