o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Teatro-leitura
será que hoje o que ainda não sei que nome tem vai irromper e arrebatar, será?
João Gilbeto Noll, Harmada
Santiago do Chile, 1973 não é texto de dramaturgo, sequer de encenador ou homem de teatro – trata-se de um conto do escritor e filósofo André Queiroz, que o “Grupo de Dois” encena o labirinto inexaurível de leitura, sem que o fato de ir ao teatro corresponda a ir à biblioteca retirar um livro. Leitura como jogo interativo e explícito pra desorganizar as formas de expressão de um teatro que não leva em conta as sociedades da era digital, que mais faz palestra do que encena, mais refugia do que lança ao inferno, e depois de um mês em cartaz está fora do prazo de validade – por não ter como criar outra coisa à parte a essa máquina de encenar estática e sempre confiante nos Manuais de instrução. O texto “pra teatro” não é mais o ponto propulsor do ato cênico. Há outro ar em torno dele, nem do campo nem da cidade, que mesmo Brecht e Müller não souberam precisar, mas aí sufocaram antigos maneirismos e elementos. Santiago é o êxtase do deserto. A sufocação fica gravada em nossas feições. De um percurso árido. De vários patamares de tempo-espaço, sucessivos cortes, zonas e entradas. O ar fica especialmente abafado. O público chega, toma assento, “circula” nos domínios coletivos de uma escrita que avança par a par com a estranha órbita dos discursos de dor como resultado do mal que cada um pode fazer ao outro. Isto tanto pode estar em Rei Lear, de William Shakespeare, quanto nos textos-poemas pra vozes de João Cabral de Melo Neto (dentre eles Morte e Vida Severina, com que infelizmente seus encenadores ainda almejam alcançar uma eficácia social pra palavra encenada, sem que tal aspecto jamais tenha sido uma lei de funcionamento do texto). A questão por inteiro é que mesmo em seus poemas João Cabral encena a palavra que não pretende fingir nada – a forma pode ser atingida, se romper, mas a Palavra tem que permanecer intacta seja qual for o enredo. Santiago continua sendo um teatro da palavra que perpassa por essas linhas e se prorroga em suas nuances infinitas. Palavra dita por vezes em minucioso silêncio ou a plenos pulmões, gritos-sopros que não recorrem à metáfora pra ativar ali na sala quase escura um enredo que nos humanize ou dê consciência (sempre muito de acordo com o incentivo comercial dos patrocinadores). Seu encenador e também ator Tiago Fortes é quem nos dá essa versão alterada dos Manuais ao mudar as linhas de ataque destas “anotações” de dor. Menos até como teatro e mais, muito mais, como experimentação de estados de invenção, de sons e imagens desterritorializados – ondas de memória e lapsos que vão se alternando e variando em camadas sucessivas de vozes, como rasgos na pele em que se tenta remendar o que há anos ou há pouquinho se passou bem ali na tela onde se projetam as fadigas e os ultrajes do corpo, intensificando sempre o fato de que a protagonista não merece aquilo. Se por um lado o sofrimento dela não pode ficar encoberto, sequer os danos a sua vulnerabilidade, por outro lado, não se pode presumir daí algum reembolso, mesmo a vingança. O clímax aqui não traz a resolução do conflito. Talvez mesmo ele não exista de modo clássico e esteja presente como uma espécie de litígio pelo fato de que tudo aqui avança pra se constituir como “anotações” não só do que a protagonista sabia e vivia, mas do que todos sabem, ainda que dentro de cada um nada pareça despertar. A “leitura” de Tiago Fortes  da narrativa de André Queiroz é de que não há o Segredo. Todos sabem. Está diante dos olhos e mesmo se pode sentir na própria carne, metido aí como uma espécie de morte, extraordinariamente condensado. Seria este o elemento que faltava detectar? Ação a que se tem que recorrer pra se completar este jogo suspeito? Lembrar de lembrar o que se sabe?

ney ferraz paiva
salgueiro - pe outubro 2010 

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