o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 21 de agosto de 2010

Os Conjurados, Jorge Luis Borges


César

Aqui, o que deixaram os punhais.
Aqui, essa pobre coisa, um homem morto
que se chamava César. Aberto;
nas crateras da carne, os metais.
Aqui o atroz, aqui a detida
máquina usada ontem para a glória,
para escrever e executar a história
e para o gozo pleno da vida.
Aqui também o outro, aquele prudente
imperador que declinou medalhas,
que comandou barcos e batalhas
e que regeu o oriente e o poente.
Aqui também o outro, o que virá
cuja grande sombra o mundo inteiro será.

Tríade

O alívio que terá sentido César na manhã de Farsalia, ao
pensar: hoje é a batalha!
O alívio que terá sentido Carlos Primeiro ao ver o amanhecer
no cristal e pensar: hoje é o dia do patíbulo, da coragem e do machado.
O alívio que tu e eu sentiremos no instante que precede a morte, quando a sorte
nos desate do triste costume de ser alguém e do peso do universo.

A trama

As migrações que o historiador, guiado pelas desafortunadas relíquias da cerâmica e do bronze, trata de fixar no mapa, e que não compreenderam os povos que as executaram.
As divindades do amanhecer que não deixaram nem um ídolo nem um símbolo.
O sulco do arado de Caim.
O sereno na grama do Paraíso.
Os hexagramas que um imperador descobriu na carcaça de uma das tartarugas sagradas.
As águas que não sabem que são o Ganges.
O peso de uma rosa em Persépolis.
O peso de uma rosa em Bengala.
Os rotos que se pôs uma máscara que guarda uma vitrine.
O nome da espada de Heengist.
O último sonho de Shakespeare.
A pena que traçou a curiosa linha: He met the Nightmare and her name he told.
O primeiro espelho, o primeiro hexâmetro.
As páginas que leu um homem cinzento e que lhe revelaram
que podia ser Don Quixote.
Um ocaso cujo escarlate perdura em um vaso de Creta.
Os brinquedos de um menino que se chamava Tibério Graco.
O anel de ouro de Polícrates que o Destino recusou.
Não há uma só dessas coisas perdidas que não projete agora uma extensa sombra, e que não determine o que fazes hoje ou o que farás amanhã.

Relíquias

O hemisfério austral. Sob sua álgebra
de estrelas ignoradas por Ulisses,
um homem busca e seguirá buscando
as relíquias daquela epifania
que lhe foi dada, há tantos anos,
do outro lado de uma numerada
porta de hotel, junto ao perpétuo Tamisa,
que flui como flui esse outro rio,
o tênue tempo Elemental. A carne
esquece seus pesares e seus êxtases.
O homem espera e sonha. Vagamente
resgata umas triviais circunstâncias.
Um nome de mulher, uma brancura,
um corpo já sem rosto, a penumbra
de uma tarde sem data, a garoa,
umas flores de cera sobre um mármore
e as paredes, cor rosa pálido.


 São os rios

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.

A jovem noite

Já as lustrais águas da noite me absolvem
das muitas cores e das muitas formas.
Já no jardim as aves e os astros exaltam
o regresso esperado das antigas normas
do sonho e da sombra. Já a sombra selou
os espelhos que copiam a ficção das coisas.
Melhor disse Goethe: o próximo se afasta.
Essas quatro palavras cifram todo o crepúsculo.
No jardim as rosas deixam de ser as rosas
e querem ser a Rosa.

Elegia de um parque

Perdeu-se o labirinto. Perderam-se
todos os eucaliptos ordenados,
os toldos do verão e a vigília
do incessante espelho, repetindo
cada expressão de cada rosto humano,
cada fugacidade. O suspenso
relógio, a entretecida madresselva,
o arvoredo, as frívolas estátuas,
o outro lado da tarde, o trino,
o belvedere e o ócio da fonte
são coisas do passado. Do passado?
Se não houve um princípio nem haverá um término,
se nos aguarda uma infinita soma
de brancos dias e de negras noites,
já somos o passado que seremos.
Somos o tempo, o rio indivisível,
somos Uxmal, Catargo e a apagada
muralha do romano e o perdido
parque que comemoram estes versos.

A suma

Ante a cal de uma parede que nada
nos veda imaginar como infinita
um homem se sentou e premedita
traçar com rigorosa pincelada
na branca parede o mundo inteiro:
portas, balanças, tártaros, jacintos,
anjos, bibliotecas, labirintos,
âncoras, Uxmal, o infinito, o zero.
Povoa de formas a parede. A sorte,
que de curiosos dons não é avara,
lhe permite dar fim à sua porfia.
No preciso instante da morte
descobre que esta vasta algaravia
de linhas é a imagem de sua cara.


Nuvens (1)

Não haverá uma só coisa que não dê ideia
de uma nuvem. O são as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o templo renderá. O é a Odisséia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.


Nuvens (2)

Pelo ar andam plácidas montanhas
ou da sombra de cordilheiras trágicas
que obscurecem o dia. São as mágicas
nuvens. As formas podem ser estranhas.
Shakespeare observou uma. Parecia
um dragão. Essa nuvem de uma tarde
em sua palavra resplandece e arde
e a seguimos vendo todavia.
Que são as nuvens? Uma arquitetura
do azar? Deus, talvez, as necessita
para a execução de Sua infinita
obra e são fios da trama obscura.
Talvez a nuvem seja não menos vã
do que o homem que a olha de manhã.


Tradução: Pepe Escobar

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