o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A MERETRIZ IMAGINÁRIA

Robert Stock



Por Ney Ferraz Paiva


A Meretriz Imaginária, como se nomeou esta pequena antologia, é um conjunto significativo de seis poemas de Robert Stock, traduzido por Mário Faustino, na década de 1950, e destinava-se a ser publicado na Revista NORTE, dirigida por Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Max Martins. A revista, que circulou entre 1951 e 1952, com sua Rosa dos ventos (desenhada por Peter Hilbert) estampada na capa, pretendia servir de guia para o que de mais inventivo se produzia na literatura feita em Belém do Pará e em toda a região Norte do Brasil, mas fechou as portas na 3ª edição. Depois, as traduções perfizeram trilhas paralelas, sobretudo depois da morte de Mário Faustino em novembro de 1962. E chegaram até mim em 2000, pelas mãos do poeta Max Martins. Umas "folhas de ofício datilografadas" pelo próprio Mário Faustino, constando de ligeiros mas preciosos comentários de Max Martins. Cópias que infelizmente se extraviaram. Seguiram o desvio.

O espaço literário é por excelência o ambiente em que as coisas desaparecem para reaparecer outra vez com maior força e potência. A presença lendária do poeta norte-americano Robert Stock em Belém revela uma paisagem incrível que estava sendo conquistada, como um espaço novo de criação e pensamento, sem nenhum controle convencional. Nele, tratava-se de se fazer as conjunções estéticas de um sistema aberto, mantido por diálogos e conversações. Aí a escrita, mais do que assegurar o lugar, o abrigo doméstico onde se pode circular com desenvoltura e proteção, aproximando o escritor e todo artista de um cão se enovelando nas pernas do dono – promove outra vez a variação, o revezamento, a dispersão. Amar, fazer, destruir.


Robert Stock promoveu na Amazônia um ambiente de cultura de potência sempre transformada e renovada e por fazer. Aprendeu, ensinou, conviveu e compartilhou um saber que permite ao homem chegar a um lugar, algum que seja, e daí se retirar a outro, sempre fazendo, refazendo, multiplicando o saber nômade. Seguindo o lema “A man must build a house” (um homem deve construir uma casa). Robert Stock deixou ali essa casa. Uma arquitetura da diferença. A escrita, na verdade, sem-casa, sem-arquitetura nenhuma, que atinge um ponto de indiscernibilidade – de paisagem rasgada, lacerada, inconclusa. A linguagem estrangeira e da ruptura. Em permanente reinvenção. E que sempre volta.

Rosa dos ventos, capa revista Norte.

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ALGUNS POEMAS/Robert Stock

Por Mário Faustino


Desde o impulso ordenador que Ezra Pound lhes deu no princípio deste século, são os poetas nascidos em terras de América os que contribuem com o maior contingente desse exército de grandes artistas que fazem da poesia contemporânea em língua inglesa a mais importante do Ocidente: o próprio Ezra e mais Eliot, Hart Crane, William Carlos Williams, Wallace Stevens, E. E. Cummings, Marianne Moore, John Peale Bishop, Kenneth Patchen e tantos outros, velhos e moços, têm escrito muito do que de melhor se há feito em verso em nosso século. Talvez provenha desse fato não só dos poderosos motivos que fornecem meio e raça jovens, estudantes, imprevisíveis dos Estados Unidos, como, ainda mais, da atitude honesta, artesanal, científica mesmo, com que os americanos se aproximam do ato poético: desenvolver a eficácia da língua antes de tudo, e renová-la, torná-la sempre mais e mais cantabile, deixando para um plano indispensável mas imediatamente secundário as questões de posição pessoal, de mensagem e profecia, de escolha entre a torre de marfim e o matadouro...



Um desses poetas, considerado entre seus pares, embora inédito em livro, como um dos primeiros valores da geração de trinta anos da poesia norte-americana, habitou entre nós durante mais de dois anos: esse grande Robert Stock, o publicano Bob de nossas rodas de Central Café e de El Marrocos... Esse Bob que é o especimen típico da fauna variegada de Greenwich Village, o heroico bairro boêmio que forma inexpugnável recife de caridade, liberdade e anarquia no farisaico oceano da América de hoje. Pobre quase no sentido da lei, vivendo, num dos subúrbios mais miseráveis de Belém, com a família de cinco pessoas, apenas de seus esquálidos recursos de professor – por sinal incomparável – de inglês, vestindo como um asceta e parecendo em tudo com um deles (por fora; por dentro era dos que acreditam ser preciso perder-se primeiro para depois achar-se...), conseguiu ele emprestar a alguns de nós, aos que queriam aprender, um pouco de sua maravilhosa experiência, de sua unidade de espírito, de seu dar-se inteiramente à oração contínua da poesia e, também, algo de sua extensa cultura, de seu equilíbrio crítico, de sua justa escala de valores, de seu exato senso poético.


Bob já partiu, de volta a Nova York. Deixou-nos entretanto, além de sua indelével lembrança, a sua grande poesia, tão revolucionária, tão coalhada de experimentações existenciais e de laboratório, ao mesmo tempo, que acumulando em si mesma todas as conquistas seculares de uma língua incomparável, de Chaucer a Landor, dos cancioneiros e tradutores isabelinos a Browning, de Jonson a Emily Dickinson, de Donne a Hopkins, de Blake a Dylan Thomas, reunida num livro a ser em breve publicado em Nova York e cujo título bem exprime seu escopo e seu destino: “Some Signs Visible Before Judgement”, “Alguns Sinais Visíveis Antes do Juízo”. Os mais relevantes poemas desse livro (“The Wandering”, “The Dance”, “Jeremiad” etc.) são além de dificílimos de traduzir, longos demais – alguns de mais de dez folhas de ofício datilografadas – para uma revista como “NORTE”. Preferimos, assim, destacar uns poucos exemplos de sua lírica menor, aqueles, dentre todos, mais fáceis de traduzir sem ensombrar em demasia a glória lúcida do original.




A MERETRIZ IMAGINÁRIA
ou, REFLEXÕES EM TORNO DA POSIÇÃO ONTOLÓGICA DOS UNIVERSAIS

Então é isto comum a todos? Tomá-la, essências, fitas, laços,
para juntos subir a escada louca tão de mansa gasta
que tiramos os sapatos, para exilá-los com Deus!
Seus braços curvos como balaústres agarrados para impedir a queda
através dos mutáveis sinais do tempo – e o beijo dela
arrancando-me, mãos vermelhas, de seus braços invulneráveis.
Beijos perdidos em florestas natais enquanto suas coxas selvagens
são lavadas pelo eclipse da lua – oh, Sônia, Sônia,
é comum isto, a todos? Encontrar-te, luminosa e corroída
como janelas se abrindo para a vitória bárbara da aurora,
e contigo lutar corpo a corpo, supremo
num cemitério, entre ossos secos, despir tua paixão.
Tamanha fome é contemplada friamente pelos anjos de pedra.
Pois esta ordem, simetria, a brilhante quadrilha, estará tudo em guerra?
E jamais uma nódoa de sangue para turbar essa mudez glacial?



ARCO DO TRIUNFO

A noite
arqueia a cidade
com dez pelicanos escuros.

A noite é silente, profunda.
A criação dorme um sono
profético de nosso fim
na noite – tão silente, tão profunda.

Os pelicanos
traspassam a pompa de osso;
belonaves iradas
geram parábolas de ódio
numa lua cinemática.

Com dez pelicanos escuros
a noite
entra na cidade.



TRANSFIGURAÇÃO

Eu, um dia envergonhado
de minha própria voz se arrebentando

contra a punhal de sua corda única;
envergonhado de minha boca, retorcido

peixe-estrela encalhado na maré;
deste corpo grotesco envergonhado,

deste corpo gauche, despido de esperança,
nos próprios ossos crucificado;

com vergonha do cabelo de espinheiro
e dos joelhos de canivete –

Eu, mirabili dictu, eu
até eu transfigurado

este todo que sou
(por obra da mulher indiferente

conspurcado como qualquer estrela-cão
atirada nos pântanos)

transfigurado na maravilha da ressaca

pelo menor, mais vagabundo olhar ou gesto.





ALBA

Lua
nácar de Endimião
olha! Por que vem tão cedo
a aurora?

Fêmea de cera
Oh tu que na ressaca de nossas atrações
és pérola boiando,
evita, dispensa a aurora.

Que farás se a teia maligna do sonho
falhar em te apanhar inteira?
Jamais terás de novo outro suborno
de escuridão tão grande quanto este
por onde tombas, esta noite.


ANTÍPODAS À VISTA

Fiel à farsa, chega-se afinal
a cavar vidro adentro o seu marasmo
cavando em nada, em esperança de
desvendar o derradeiro espasmo

onde lançar da cidadela o nojo.
Esta tumba persegue essa encantada hora
em que dois inocentes enfrentam Deus
e saltam antes de vir embora

saltam sem saber por que nem como
por que pendia o pássaro, como o marasmo
se espreitava por trás de seus calcanhares.
Quem mandou a serpente acamar o espasmo?

Alas, poor Yorick – esses dinamarqueses!
E quando ele erra até aquela hora
onde o dia termina o seu breve passeio,
a própria noite arrasta o corpo embora.



POEMA SOBRE O SÁBADO DE ALELUIA  
                                        Para Harriette

agora também conhecemos a excelência deste pilar que
esta chama brilhante aqui ascende. Para a Glória de Deus!
                                                                                                      – Bênção das Velas da Páscoa
The cistern contains; the fountain overflows
                                  William Blake

I
Esta noite, quando tudo que floresce
No ar e no recuo imenso das marés menstruais
Dilata além de seu limite os nossos fôlegos;
Quando o órgão crescente contraponteia
A grama ereta, a escuridão pesada
De pólen, esta noite surge pleno
O Gral do Espaço, o Gral vegetativo.

Lançadeira, Pacífico une e isola
Ásia e América; uma visão fluindo
Sobre a carne mitrada, enlaçando
O vigor verde dos divididos
Atolls de amor, num continente só.

II
Nalgum lugar, pilar após pilar, se acende
O triplo castiçal, desnudam-te profana
Em minha carne às hóstias consagradas.
                QUE DESÇA SOBRE AS ÁGUAS DESTA FONTE
                TEU PODER, SANTO ESPÍRITO
                QUE FAÇAS FÉRTEIS PARA A REDENÇÃO
                A SUBSTÂNCIA INTEIRA DESTAS ÁGUAS.
Esta noite, o fogo entra na água, se renova
Pirosoma rampante (cobra oca
Juntando à tua fonte a chama em sangue!)
Confirmando Jesus erecto sobre o lago:
Aquela mesma luz verdadeira que o amante
Tristão, de leme gasto e remo roto, quando
“O que era rasto era centelha de ouro”
Espalhou no quadrante dos Sete Mundos
Equilibrados, diurna luz trancada
Em pedra de palavras, aguardando
A volta da Palavra.

III
Constelada como a Puta de Cristal
Rumo-norte bordel do cérebro, semeia
A Madalena, amadurecer o ar
No ano eunuco; o inverno rebenta,
Noivo e noiva de flor;
Apertados os céus são pródigos de estrelas
Que brilham fora das dimensões: não são.
Ah nem no tempo nem no espaço existe
Espaço para nós; só podemos entrar um no outro
Na flor apenas, de noivo e noiva.





ROBERT STOCK
Imagens: Saul Leiter


2 comentários:

  1. Eu me pergunto: por que nunca ouvi falar em Robert Stock, mesmo morando em Belém e tendo cursado uma faculdade de Letras? Há alguma coisa muito corroída e não é na alfaiataria do Ney Ferraz...

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  2. Ney! Maravilhoso o teu espaço! Admiradíssima com teus versos, enfim, vou até seguir-te (coisa rara!)rss. Um abraço.

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