o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A MERETRIZ IMAGINÁRIA

Robert Stock



Por Ney Ferraz Paiva


A Meretriz Imaginária, como se nomeou esta pequena antologia, é um conjunto significativo de seis poemas de Robert Stock, traduzido por Mário Faustino, na década de 1950, e destinava-se a ser publicado na Revista NORTE, dirigida por Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Max Martins. A revista, que circulou entre 1951 e 1952, com sua Rosa dos ventos (desenhada por Peter Hilbert) estampada na capa, pretendia servir de guia para o que de mais inventivo se produzia na literatura feita em Belém do Pará e em toda a região Norte do Brasil, mas fechou as portas na 3ª edição. Depois, as traduções perfizeram trilhas paralelas, sobretudo depois da morte de Mário Faustino em novembro de 1962. E chegaram até mim em 2000, pelas mãos do poeta Max Martins. Umas "folhas de ofício datilografadas" pelo próprio Mário Faustino, constando de ligeiros mas preciosos comentários de Max Martins. Cópias que infelizmente se extraviaram. Seguiram o desvio.

O espaço literário é por excelência o ambiente em que as coisas desaparecem para reaparecer outra vez com maior força e potência. A presença lendária do poeta norte-americano Robert Stock em Belém revela uma paisagem incrível que estava sendo conquistada, como um espaço novo de criação e pensamento, sem nenhum controle convencional. Nele, tratava-se de se fazer as conjunções estéticas de um sistema aberto, mantido por diálogos e conversações. Aí a escrita, mais do que assegurar o lugar, o abrigo doméstico onde se pode circular com desenvoltura e proteção, aproximando o escritor e todo artista de um cão se enovelando nas pernas do dono – promove outra vez a variação, o revezamento, a dispersão. Amar, fazer, destruir.


Robert Stock promoveu na Amazônia um ambiente de cultura de potência sempre transformada e renovada e por fazer. Aprendeu, ensinou, conviveu e compartilhou um saber que permite ao homem chegar a um lugar, algum que seja, e daí se retirar a outro, sempre fazendo, refazendo, multiplicando o saber nômade. Seguindo o lema “A man must build a house” (um homem deve construir uma casa). Robert Stock deixou ali essa casa. Uma arquitetura da diferença. A escrita, na verdade, sem-casa, sem-arquitetura nenhuma, que atinge um ponto de indiscernibilidade – de paisagem rasgada, lacerada, inconclusa. A linguagem estrangeira e da ruptura. Em permanente reinvenção. E que sempre volta.

Rosa dos ventos, capa revista Norte.

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ALGUNS POEMAS/Robert Stock

Por Mário Faustino


Desde o impulso ordenador que Ezra Pound lhes deu no princípio deste século, são os poetas nascidos em terras de América os que contribuem com o maior contingente desse exército de grandes artistas que fazem da poesia contemporânea em língua inglesa a mais importante do Ocidente: o próprio Ezra e mais Eliot, Hart Crane, William Carlos Williams, Wallace Stevens, E. E. Cummings, Marianne Moore, John Peale Bishop, Kenneth Patchen e tantos outros, velhos e moços, têm escrito muito do que de melhor se há feito em verso em nosso século. Talvez provenha desse fato não só dos poderosos motivos que fornecem meio e raça jovens, estudantes, imprevisíveis dos Estados Unidos, como, ainda mais, da atitude honesta, artesanal, científica mesmo, com que os americanos se aproximam do ato poético: desenvolver a eficácia da língua antes de tudo, e renová-la, torná-la sempre mais e mais cantabile, deixando para um plano indispensável mas imediatamente secundário as questões de posição pessoal, de mensagem e profecia, de escolha entre a torre de marfim e o matadouro...



Um desses poetas, considerado entre seus pares, embora inédito em livro, como um dos primeiros valores da geração de trinta anos da poesia norte-americana, habitou entre nós durante mais de dois anos: esse grande Robert Stock, o publicano Bob de nossas rodas de Central Café e de El Marrocos... Esse Bob que é o especimen típico da fauna variegada de Greenwich Village, o heroico bairro boêmio que forma inexpugnável recife de caridade, liberdade e anarquia no farisaico oceano da América de hoje. Pobre quase no sentido da lei, vivendo, num dos subúrbios mais miseráveis de Belém, com a família de cinco pessoas, apenas de seus esquálidos recursos de professor – por sinal incomparável – de inglês, vestindo como um asceta e parecendo em tudo com um deles (por fora; por dentro era dos que acreditam ser preciso perder-se primeiro para depois achar-se...), conseguiu ele emprestar a alguns de nós, aos que queriam aprender, um pouco de sua maravilhosa experiência, de sua unidade de espírito, de seu dar-se inteiramente à oração contínua da poesia e, também, algo de sua extensa cultura, de seu equilíbrio crítico, de sua justa escala de valores, de seu exato senso poético.


Bob já partiu, de volta a Nova York. Deixou-nos entretanto, além de sua indelével lembrança, a sua grande poesia, tão revolucionária, tão coalhada de experimentações existenciais e de laboratório, ao mesmo tempo, que acumulando em si mesma todas as conquistas seculares de uma língua incomparável, de Chaucer a Landor, dos cancioneiros e tradutores isabelinos a Browning, de Jonson a Emily Dickinson, de Donne a Hopkins, de Blake a Dylan Thomas, reunida num livro a ser em breve publicado em Nova York e cujo título bem exprime seu escopo e seu destino: “Some Signs Visible Before Judgement”, “Alguns Sinais Visíveis Antes do Juízo”. Os mais relevantes poemas desse livro (“The Wandering”, “The Dance”, “Jeremiad” etc.) são além de dificílimos de traduzir, longos demais – alguns de mais de dez folhas de ofício datilografadas – para uma revista como “NORTE”. Preferimos, assim, destacar uns poucos exemplos de sua lírica menor, aqueles, dentre todos, mais fáceis de traduzir sem ensombrar em demasia a glória lúcida do original.




A MERETRIZ IMAGINÁRIA
ou, REFLEXÕES EM TORNO DA POSIÇÃO ONTOLÓGICA DOS UNIVERSAIS

Então é isto comum a todos? Tomá-la, essências, fitas, laços,
para juntos subir a escada louca tão de mansa gasta
que tiramos os sapatos, para exilá-los com Deus!
Seus braços curvos como balaústres agarrados para impedir a queda
através dos mutáveis sinais do tempo – e o beijo dela
arrancando-me, mãos vermelhas, de seus braços invulneráveis.
Beijos perdidos em florestas natais enquanto suas coxas selvagens
são lavadas pelo eclipse da lua – oh, Sônia, Sônia,
é comum isto, a todos? Encontrar-te, luminosa e corroída
como janelas se abrindo para a vitória bárbara da aurora,
e contigo lutar corpo a corpo, supremo
num cemitério, entre ossos secos, despir tua paixão.
Tamanha fome é contemplada friamente pelos anjos de pedra.
Pois esta ordem, simetria, a brilhante quadrilha, estará tudo em guerra?
E jamais uma nódoa de sangue para turbar essa mudez glacial?



ARCO DO TRIUNFO

A noite
arqueia a cidade
com dez pelicanos escuros.

A noite é silente, profunda.
A criação dorme um sono
profético de nosso fim
na noite – tão silente, tão profunda.

Os pelicanos
traspassam a pompa de osso;
belonaves iradas
geram parábolas de ódio
numa lua cinemática.

Com dez pelicanos escuros
a noite
entra na cidade.



TRANSFIGURAÇÃO

Eu, um dia envergonhado
de minha própria voz se arrebentando

contra a punhal de sua corda única;
envergonhado de minha boca, retorcido

peixe-estrela encalhado na maré;
deste corpo grotesco envergonhado,

deste corpo gauche, despido de esperança,
nos próprios ossos crucificado;

com vergonha do cabelo de espinheiro
e dos joelhos de canivete –

Eu, mirabili dictu, eu
até eu transfigurado

este todo que sou
(por obra da mulher indiferente

conspurcado como qualquer estrela-cão
atirada nos pântanos)

transfigurado na maravilha da ressaca

pelo menor, mais vagabundo olhar ou gesto.





ALBA

Lua
nácar de Endimião
olha! Por que vem tão cedo
a aurora?

Fêmea de cera
Oh tu que na ressaca de nossas atrações
és pérola boiando,
evita, dispensa a aurora.

Que farás se a teia maligna do sonho
falhar em te apanhar inteira?
Jamais terás de novo outro suborno
de escuridão tão grande quanto este
por onde tombas, esta noite.


ANTÍPODAS À VISTA

Fiel à farsa, chega-se afinal
a cavar vidro adentro o seu marasmo
cavando em nada, em esperança de
desvendar o derradeiro espasmo

onde lançar da cidadela o nojo.
Esta tumba persegue essa encantada hora
em que dois inocentes enfrentam Deus
e saltam antes de vir embora

saltam sem saber por que nem como
por que pendia o pássaro, como o marasmo
se espreitava por trás de seus calcanhares.
Quem mandou a serpente acamar o espasmo?

Alas, poor Yorick – esses dinamarqueses!
E quando ele erra até aquela hora
onde o dia termina o seu breve passeio,
a própria noite arrasta o corpo embora.



POEMA SOBRE O SÁBADO DE ALELUIA  
                                        Para Harriette

agora também conhecemos a excelência deste pilar que
esta chama brilhante aqui ascende. Para a Glória de Deus!
                                                                                                      – Bênção das Velas da Páscoa
The cistern contains; the fountain overflows
                                  William Blake

I
Esta noite, quando tudo que floresce
No ar e no recuo imenso das marés menstruais
Dilata além de seu limite os nossos fôlegos;
Quando o órgão crescente contraponteia
A grama ereta, a escuridão pesada
De pólen, esta noite surge pleno
O Gral do Espaço, o Gral vegetativo.

Lançadeira, Pacífico une e isola
Ásia e América; uma visão fluindo
Sobre a carne mitrada, enlaçando
O vigor verde dos divididos
Atolls de amor, num continente só.

II
Nalgum lugar, pilar após pilar, se acende
O triplo castiçal, desnudam-te profana
Em minha carne às hóstias consagradas.
                QUE DESÇA SOBRE AS ÁGUAS DESTA FONTE
                TEU PODER, SANTO ESPÍRITO
                QUE FAÇAS FÉRTEIS PARA A REDENÇÃO
                A SUBSTÂNCIA INTEIRA DESTAS ÁGUAS.
Esta noite, o fogo entra na água, se renova
Pirosoma rampante (cobra oca
Juntando à tua fonte a chama em sangue!)
Confirmando Jesus erecto sobre o lago:
Aquela mesma luz verdadeira que o amante
Tristão, de leme gasto e remo roto, quando
“O que era rasto era centelha de ouro”
Espalhou no quadrante dos Sete Mundos
Equilibrados, diurna luz trancada
Em pedra de palavras, aguardando
A volta da Palavra.

III
Constelada como a Puta de Cristal
Rumo-norte bordel do cérebro, semeia
A Madalena, amadurecer o ar
No ano eunuco; o inverno rebenta,
Noivo e noiva de flor;
Apertados os céus são pródigos de estrelas
Que brilham fora das dimensões: não são.
Ah nem no tempo nem no espaço existe
Espaço para nós; só podemos entrar um no outro
Na flor apenas, de noivo e noiva.





ROBERT STOCK
Imagens: Saul Leiter


sexta-feira, 16 de julho de 2010

Essa poesia é pra tocar no rádio


1. a leitura

Lê sem ler, o que só é possível num certo de-lírio. [Jacques Derrida]


O inútil de fazer, segundo João Cabral de Melo Neto, vale mais que não fazer. Fazer está na ordem das debulhadas, fazer o pensamento pensar, fazer a escrita começar seu desconhecer – escolher seus escolhidos. José Inácio Vieira de Melo é um desses tais que vêm ao mundo pra não ter outras virtudes, que não as de poeta, o mais inútil dos fazeres. Por que outro motivo alguém se colocaria a cultivar rosas escarlates em pleno sertão – sem ter como manejar mais do que palavras? Ato de sensualidade, mostrar a escrita ao outro. Tocar, esfregar, afrontar. Múltiplos lances-movimentos que desejam trocas, reverberações de um sentir novo, aberto, total. Nada mais inútil, e não menos imoral, fazer frente aos narcisismos, às individualidades com a leitura. Instintivamente, o texto vai se adestrando no hábito de não se dirigir a ninguém, ou, por outro, de simular ao menos o receptor incauto. Se há uma escrita que escolhe, há uma voz que se quer ouvida, distinguida, ampliada, mesmo que por seu obscuro assovio. Josefina não canta, ela apenas assobia pior. É pela voz que o texto começa seu devir animal. Ler-escutar é uma metamorfose. E por esse duplo ato o poeta opera rebeliões entre dois mundos: o mundo irreal, o mundo cotidiano. Lança seus temas numa rede de repetições e variações intermináveis. Se de um lado enfatiza a literatura que circula nas comunidades centrais do sertão – literaturas bem menores que as menores, como cordel, cordões, reisados; de outro, se lança num circuito aberto de voo estético sem fronteira, que inclui Gertrude Stein, ecos de Carlos Drummond, o formalismo precioso e raro de João Cabral de Melo Neto, a essência marítima de fazer viajar as viagens em Herberto Helder e Gerardo Mello Mourão – tudo atravessado pelos ritmos inumeráveis a que aludiu Manuel Bandeira, e por isso mesmo arrisco dizer que ao fundo dessa poesia há lances embrionários de bossa nova, escutem, escutem, escutem... Mas que ninguém se engane: não se trata de uma escrita meramente submetida aos processos cultos dos grandes centros, de que muito se tem servido certa poesia desmunida de vigor e originalidade. A cópia sem o rigor dos ensinamentos, que se reduz à má sorte dos aprendizes sem talento, sempre entregues a itinerários determinados com antecedência. Música & escrita como que numa apresentação sussurrada, rouca e de assovios dissonantes, que talvez se pudesse tocar no rádio, como num delírio de escuta-e-leitura que manipulasse o sistema de recepção da poesia, quase nunca conflitante e alterado – convencional a não mais poder. Dos influxos do sertão às conjunções do ser-tudo, a poesia é convivência, vida comum, reimpressão dos caminhos dos homens a que Jorge Luis Borges bifurca, na ausência de mapas e atlas mais precisos, com o uso desproposital de um espelho e uma enciclopédia. José Inácio Vieira de Melo, algo que numa contraleitura dos lugares e paisagens a que se ajustam expectativas reais e sonhos de paraíso, movimenta sua poesia às direções remotas dos sentidos dos homens, aos seus desenfreados horizontes, às rotas empoeiradas a que uma suposta rosa-dos-ventos indicou o futuro – ou terá sido o passado? Com todas as variações e permutações iminentes.


2. o livro


Se um homem atravessasse o Paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que lá estivera, se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... o que dizer então? [Coleridge]

José Inácio Vieira de Melo, em “Roseiral”, empreende o ato de fazer o outro perceber/perceber-se nos duplos e nas transmutações de si: despertar “a vontade de plantar pedras em outras cabeças”, como consequência de uma linguagem que joga, brinca, viaja – e não se faz trocar por fichas neutras. Daí que, desde os poemas iniciais, o poeta evoca o retrato de cabeças como um gravurista que não se basta à representação. “Eu jogo uma pedra em tua cabeça para que ela cresça em dor”, ou: “A tua cabeça é um precioso amuleto dentro da minha cabeça”. A iconografia que o poeta quer é outra. Uma que fizesse circular um retrato que fosse o menos comum, do quanto que deste lugar existe, se é que existe o lugar e se pode  falar por si ou de sua cópia, ou de seu vulto – e, assim, não mais ter que estampar uma mesma e única fisionomia no imediatismo precipitado da pergunta: o que é o sertão? Isto não mais. O retrato falado a que certo cinema, certa literatura, certa música não cessam de nomear, fixar. Uma sociologia que não se sabe se das artes, se das suspeitas, se das discriminações. Por certo nunca a das diferenças, das singularidades, das ramificações. Que esses clichês se abram em outros nomes-imagens não como buquês que ornam e celebram uma vida passivamente administrada; buquês que logo murcham nas mãos daqueles que já estavam mortos. Contra isto a potente investida dessa poesia multiplicada, transmutada, saída do silêncio e da solidão – num estrondo, numa pancada: “Para que, plantada em tua cabeça, a pedra frequente a tua existência”.


“Roseiral” tem como horizonte a amplidão. Requer conversa, diálogo, fala amigável, alegre e incessante. E isto é mais do que tentar uma ênfase. O livro todo nos afeta o imaginário com a vivacidade das coisas cuidadosamente feitas, e não arrefece o impulso de subida nas cinco seções em que se divide. Sem sacrificar a complexidade das temáticas, e sem cair na exterioridade do genérico, chega aos pontos de tensão em áreas de sensibilidade que pra muitos pareciam esgotadas, exauridas. Aqui, a “pedra”, a “rosa”, a “odisséia” – ou a viagem e o nomadismo – abrem espaço pra uma cena maior, de acentuada potência elocutória: um fluxo, um nascimento, uma torrente de coisas sendo devidamente despertadas em simetrias secretas. Não é mais o livro numa combinação híbrida de Rilke, Lorca, nem mesmo Celan, mas o livro inaudito. Um que se volta aos segredos como se de um álbum de família vertiginoso e nada dócil, de nomes-imagens travejados; livro que ativa toda a penúria que somos no instante impreciso das horas e descobertas. É o menino, a infância, a casa, o homem – aquele cadinho que somos, pra quem as coisas acontecem e, a uma só vez, escapam, multiplicam-se. “Eu não sei nem pra onde ir com a minha diferença”. O que somos é algo que criamos – somos nossa própria criação e não cessamos de fazê-la aqui e alhures. Formas de criação em linhas, trânsitos, direções fundamentais e intermediárias. Aventuras secretas e prazeres comuns. O aberto. O fechado. A favor disso o poeta adverte de seu modesto e imenso propósito: “E agora eu só sei te falar desse labirinto”.


Ney Ferraz Paiva
imagem: janet & george

quinta-feira, 15 de julho de 2010

                               Eva


Adormecera à beira do riacho
e o sonho e a flor dessa maçã
da primeira saudade – do primeiro desejo do mundo
habitavam seu sono.
Despertara – e dela despertaram
um tato uns olhos um perfume – e o véu
dos cabelos cobria ancas
seios nunca vistos:
Eva bailava sobre chão de folhas
desde então
desde sono e sonho se incorpora sempre
ao homem sonhador o sortilégio
da primeira mulher
coisa e criatura e criadora
de seus tatos seus aromas – aflição e festa
de estrelas na pupila.

Gerardo de Mello Mourão
imagem: Tunga 

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Grafite toma conta da cidade

                   “O melhor é viver a cidade sem o compromisso de enquadrá-la"


Em Belém, as paredes pintadas com spray se multiplicam numa velocidade impressionante. E com uma agilidade ainda superior essa prática vem se reinventando, ganhando novos sentidos e transformando sensivelmente a relação entre homens e muros, em um fenômeno cuja complexidade não cabe em delimitações simplórias: pichação, grafite, subversão, arte (ou não) – os conceitos se misturam em uma discussão que parece inesgotável. A única certeza que se tem é que os desenhos - seja provocando curiosidade, encantamento ou estranheza – transformaram a cidade em uma imensa galeria a céu aberto e jamais passam despercebidos.

“A galeria agora é a cidade, e os grafites uma de suas manifestações penduradas pelas ruas”, diz Luizan Pinheiro, doutor em Artes pela UFRJ e professor da Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte da UFPA. Autor da tese de doutorado “Pixação: arte contemporânea”, ele dedica-se há anos ao estudo do tema.

Para os grafiteiros, é inegável que as pessoas hoje têm outra percepção acerca do grafite. “Em Belém, os artistas estão evoluindo muito no traço e no conceito, o que se reverte em reconhecimento. Há quatro anos havia muito preconceito; agora é bem mais admiração pela arte”, diz Esmael Raymon, 26, o “Ralado”. “Antigamente tinha gente que passava e olhava com cara feia, o pessoal gritava do ônibus: ‘Ei pichador!’. Isso mudou, e agora o grafite faz parte da rotina da cidade. A evolução do trabalho fez com que ele fosse reconhecido como arte”, diz.

Para George Pantoja, 36, integrante do grupo Cosp Tinta, esse reconhecimento se traduz em uma lógica no mínimo curiosa. O grafite, que já há algum tempo adentrou as galerias, ganha o interior das casas com cada vez mais freqüência. “Hoje as pessoas estão aprendendo a diferenciar grafite e pichação, elas veem na rua e querem em casa. Quando estamos pintando, as pessoas param e pedem o contato. Eu estou sempre com meu cartão no bolso”, diz. É dele o personagem negro,com um olho aberto e outro fechado, que se tornou presença constante em várias ruas da cidade.

A grafiteira Adriana Chagas, 24, a “Dri-k”, também é frequentemente procurada para ilustrar paredes de quartos,salas e escritórios. Ela mesma reconhece que hoje tem muito mais trabalhos em ambientes fechados do que ao ar livre.No início do mês, Drik lançou a elogiada ‘Encômodos’, exposição que segue até o dia 30 no Bar Taberna São Jorge. “É um processo muito normal,já que o grafite se consolidou como um movimento artístico, mas não podemos esquecer que o grafite verdadeiro está nas ruas e atingir outros suportes é só mais um dos vários desdobramentos da técnica do grafite atualmente”, defende “Essa boa receptividade acaba servindo de estímulo à busca por novidades”, completa.

Anderson Souza “Gaspar”, 26, do grupo Explosão Crew, quer ir ainda mais longe.Ele,que desenvolve um trabalho com jovens do bairro do Telégrafo, onde também reside,quer transformar o grafite em empresa.Literalmente. “Quero legalizar a crew (grupo), transformá-la numa microempresa, profissionalizar os garotos. As pessoas ainda rejeitam a ideia, mas já existe um reconhecimento. Quero representar a comunidade, e mostrar que na periferia não existe só coisa ruim”. Ralado, George, Drika e Gaspar - todos eles hoje vivem da tinta, aplicando o grafite ao design de interiores. Para Luizan, no entanto, é impossível denominar essa prática de “grafite”. “Nem tudo que se faz com spray ou aerógrafo é arte, assim como com tinta e pincel ou outra técnica qualquer. Decorar um interior e chamar de grafite é equívoco”.

P: Como tu avalias a evolução do grafite em Belém?

R: O grafite surgiu como arte de gueto, os negros e latinos em Nova York nas décadas de 60/70.E como a maior parte das manifestações, cresceu e tomou rumos diversos. Nos anos 70 rumou para as galerias, chegando ao MOMA. A questão é que a perda de potência se dá por essa formatação exigida na galeria, o transporte de uma forma de expressão que tem sua densidade marcada pela rua e que se fecha.Então é preciso sacar que ganha um outro sentido. Dilui aquilo que a rua dá: sua exposição a uma efemeridade fundamental, porque está na rua sujeito a tudo, principalmente ao desaparecimento; conecta diversas matérias e texturas; é substituído por propaganda, sofre interferências de cartazes de shows, etc. Essa “apatia” de um certo modo marca a perda de um princípio de transgressão do espaço, isto é, de sua maculação e pulsação que insere outros signos que produzem o pensamento, a reflexão dos que habitam a cidade. Mas não é uma apatia generalizada. Existem muitos grafiteiros que sacam essa liga da galeria e pulam fora. Por outro lado, rola essa insistência em se levar a expressão da rua para o fechado do museu, da galeria, é meio chapação da política cultural ou do evento midiático. Isso está ficando insuportável. O sentido de cidade-galeria, cidade- museu dá conta. Ela está aí cheia de possibilidades de interferências.

P: O grafite também vem sendo cada vez mais usado como design de interiores. Essa percepção de “domesticação”, de ausência de subversão, também é válida se considerarmos esta outra realidade?

R: Também. A questão é que a arte tem uma ampla possibilidade de conexão com diversas formas de expressão e produção. Veja o caso da publicidade, do cinema do vídeo, da fotografia, da moda.São formas que interagem e se complementam numa multiplicidade de concepções.Não há mais esses limites. Nem deve haver. Tanto as formas funcionam como arte no sentido mais estrito, quanto como mídia, técnica. Nem tudo que se faz com spray ou aerógrafo é arte. Assim como com tinta e pincel ou outra técnica qualquer. Decorar um interior e chamar de grafite é equívoco. A força da arte não tá apenas na exterioridade de suas manifestações, mas naquilo que ela propõe como forma de pensar o tempo e o espaço. Não sou purista, mas a liga do grafite é a rua onde sua dimensão ontológica explode criando uma corporeidade que investe o expectador de comunicação, vozes, gritos, sarro, etc. Onde se acirra um conflito inevitável entre a imagem e a retina, o corpo. A galeria agora é a cidade, e os grafites uma de suas manifestações penduradas pelas ruas.

P: Segundo alguns grafiteiros, é sensível a mudança do olhar das pessoas sobre o grafite em Belém. O olhar de reprovação agora dá lugar à admiração. Tu concordas com isso?

R: Pode ser. Isso está mudando. Uma questão que levou a essa percepção foi o fato da insistência dos grafiteiros em afirmar sua arte, se organizar a partir do movimento hip hop ou não, discutir, reivindicar incentivo e apoio. Ainda falta de finir uma política cultural para os movimentos de rua, mas é notória a aceitabilidade do grafite. De uma certa forma porque o grafite é colocado em oposição à pixação - não com ‘ch’, mas com o ‘x’ das ruas - pelo fato dele ter sido alçado ao status de arte, e isso foi e é importante. Mas uma coisa é importante assinalar: o fato do grafite se tornar arte não anula a importância da pixação para a visualidade contemporânea. Como possibilidade de se pensar a cidade. Aliás, a pixação tem um disparo que o grafite vem eliminando: a potência de ser ruído, incômodo pela lógica da sujeira, arte da perversão do espaço e o desaparecimento como dado. São aspectos que percebo e que aponto na pixação. Minha tese de doutorado foi sobre a pixação afirmada como arte contemporânea na tradição mesmo da arte parietal desde a pré-história. As paredes sempre foram importantes na História da Arte, então porque não pensá-las na sua condição artístico-estética? Não há hierarquia na arte, todas as formas estão aí. O pixo tem uma potência que o grafite vem perdendo. A Bienal de São Paulo vai discutir o pixo, tem que se ficar atento aos novos modos de reflexão e intervenção nas cidades.Por isso não dá mais para pensar no pixo só como o lugar do vandalismo, do crime. Por outro lado, a legislação na cidade banca sua condição de lei e aí fica aberto o estado de tensão que é próprio no contemporâneo. Não tem essa de um lugar para o grafite como arte e outro para a pixação como crime. São conexões explícitas, e não distinções tolas. Tudo se conecta, se atravessa, se corta e explode num vazio-pulsar.

P: Para sermos bem didáticos: como diferenciar pichação e grafite?

R: A quem interessa o didatismo e a diferença? A uma lógica sistêmica que enquadra o tempo todo as manifestações e os signos para um controle de sua potência? Na arte,quanto mais se escapa da condição de encarceramento, domesticação, classificação, melhor. Não há diferença entre grafite e pichação e há diferença entre grafite e pichação. Todas as respostas são possíveis e nenhuma é. Mas você teria que perguntar a todos os envolvidos. O policial não quer saber se o cara está vindo de um trampo, se ganhou a grana dele honesta co m as latas de spray, porque para ele tanto faz, e baculeja o cara. Se o morador vê o muro pixado ou grafitado sem autorização, se é com cores brilhantes, é grafite; se é só traço, é pixo. A quem interessa a diferença? Melhor não diferir nada e sentir a cidade pulsar sob o frêmito de riscos, traços, cores e compulsão. Equivalência fundamental da explosão do pensamento pela i-lógica da arte. “A cidade é como um livro de um rabiscos de um maníaco”(Jonathan Raban). Então melhor é viver a cidade sem o compromisso de enquadrá-la, mas de torná-la habitável.


Jornal Diário do Pará

quinta-feira, 8 de julho de 2010


Caçar em vão

Ás vezes escreve-se a cavalo.
Arrebentando, com toda a carga.
Saltando obstáculos ou não.
Atropelando tudo, passando por cima sem puxar o freio – a galope – no susto, disparado
sobre as pedras, fora da margem feito só de patas, sem cabeça
Nem tempo de ler no pensamento o que corre ou o que empaca:
Sem ter calma e o cálculo de quem colhe e cata feijão.
 
Armando Freitas Filho
imagem: Beuys

terça-feira, 6 de julho de 2010

Se se pudesse somente provar o seu nada,
se se pudesse repousar no seu nada,
e que esse nada não fosse uma certa forma de ser,
mas também não fosse pura e simplesmente a morte.
É tão duro deixar de existir, deixar de estar dentro de alguma coisa.
A verdadeira dor é sentir em si o seu pensamento a deslocar-se.
Mas o pensamento como um ponto não é certamente um sofrimento.
Cheguei a um ponto em que não me agarro já à vida,
mas levo comigo todos os apetites e a titilação insistente do ser.
Já só tenho uma atividade, refazer-me

Antonin Artaud, O Pesa-nervos, tradução Joaquim Afonso
imagem: Graeme Mitchell

domingo, 4 de julho de 2010

UM HOMEM SEM TROCADO - POETA NUM PAÍS DEFUNTO!

que merda saber que o ROBERTO PIVA morreu! que merda saber que este país de merda nem se deu conta disso. que não lê PIVA na escola, nem nas universidades. que não lê quase em lugar nenhum - será que por se tratar de um poeta da cultura das drogas e do homossexualismo? - êta país cafona! ou será pela burrice? idiotice daqueles que se deixam sacanear pelo lixo massificado do mercado livreiro-editorial desse país de merda. esse mercado escroto, que controla as escolas e a cabeça da juventude - e lucra sem mais poder, incontrolavelmente.
e o poeta grandioso, culto, que melhora o mundo vive e morre à mingua, sem plano de saúde, completamente desfavorecido. até quando vamos ter que vender nossos livros (e por vezes a alma) por míseros 5% do valor de capa - entre tantos desprestígios que nos são reservados? uma bosta mesmo esse país que chora todo domingo gols perdidos e desconhece o que de fato é negado, arrancado a todos nós. e não vê nisso violência, aviltamento, falência múltipla do corpo social. tô puto disso! ROBERTO PIVA, VALEU! ir de volta às paisagens noturnas da carne a que devoras...