o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 31 de maio de 2010

luz, tautologia derradeira








ao Luiz Cláudio no dia de seus anos

parei as ondas dos meus sonhos
para o teu corpo carregar
ao meio dia te quero
procuro sobre as águas
em cima das árvores
respiras o que respiro, segues no meu sangue,
por ti mudei, cabelo, corpo
e trago outro sorriso
pensando que o tempo possa voltar
traz-me um pouco do sereno
que a noite reserva a poucos
e que guardas no teu coração
coloco vestidos noturnos
apago os vestígios, suspendo
um verbo caído
que serenamente inventei
na sazonalidade líquida
de cada inverno
segues, às vezes não me reconheço em ti,
outras nem tanto
mãos que transportam desequilibradamente
a geografia e olhos
que esqueceram ouro em praias longínquas.


Juliete Oliveira
 

mau olhado


vendedor de livros usados
fotógrafo de bebê porta-a-porta
humilde abnegação
poderosa capacidade de cultura
pra enganar o olho


ney ferraz paiva

sexta-feira, 28 de maio de 2010

declive do tempo


o medo de não ter medo pode ser a moradia segura do escuro
quando os pecados do mundo desfilam diante de ti
em silencioso espetáculo
teu coração inabitável, trilha em mata fechada
sem perspectiva suplicamos a direção
caminhamos, pisando em metáforas monstruosas como orquídeas
a tua língua desenha a geografia do fim
dizes: viveu tua mais bela tragédia
no círculo da patética inutilidade do martírio
errei estive em tantas portas.



Juliete Oliveira

quarta-feira, 26 de maio de 2010

OS ESTUDANTES BRASILEIROS E A LITERATURA UNIVERSAL
A primeira entrevista de Clarice Lispector


Série de reportagens com universitários, no final de outubro de 1941, opinando sobre literatura. A ilustração é de uma garota bonita, com bolsa embaixo do braço, cercada por cinco rapazes e a legenda “Futuros advogados falam sobre literatura”. Lá no final da primeira matéria vem o seguinte trecho:

“Na Faculdade de Direito subimos ao primeiro pavimento do edifício da Rua Moncorvo Filho. Descemos novamente e vemos chegar uma jovem a quem abordamos. Chama-se Clarice Lispector e tem traços da raça eslava. É terceiro-anista e acede prontamente em responder às perguntas do repórter. “Leio de preferência livros, diz Clarice. Quanto à literatura nacional, em minha opinião, temos ótimos escritores, capazes de rivalizar com qualquer outro de qualquer literatura. Sobre a moderna literatura nacional, conheço alguma coisa; mais talvez do que a antiga”.

Pode destacar algum vulto?

Vários, como Graciliano Ramos, que me parece o maior, Rachel de Queiroz, Augusto Frederico Schmidt etc.

Na literatura moderna nacional existe algum escritor que em sua opinião possa se nivelar a Machado de Assis ou Euclydes da Cunha?

Não se pode tomar para comparação um Machado de Assis, tão pessoal na sua obra. Mas em intensidade literária, dentro do seu próprio gênero, há escritores atuais que podem até superá-lo. Aliás, em minha opinião, seria mais fácil superá-lo do que igualá-lo. Machado tinha muita personalidade. Como romancista, ele não é seguro, não obedece a normas; por isso me parece fácil superá-lo, mais que igualá-lo. Euclydes da Cunha não me agrada…

Qual o livro nacional ou estrangeiro que lhe tenha deixado mais impressão?

Esta é uma pergunta difícil… Porque eu sempre passo épocas em que tal ou qual livro me impressiona. Depois o esqueço e outro toma o seu lugar. Às vezes o que me agrada num livro é o “tom”, o plano em que o autor se move. E se em outro livro o autor muda o “tom”, eu perco o interesse. É um estado d’alma.

Acha que a Guerra possa influir sobre a literatura?

Pode. Talvez um certo ceticismo se apodere da literatura do pós-Guerra. Também os motivos humanos ocuparão seu lugar. Mas ao certo não se pode prever.

Qual a sua opinião sobre a “coleção das moças”?

Corresponde a uma necessidade da idade. Há uma fase na vida da moça em que tal literatura é indispensável. Mas apesar de eu já ter sofrido essa necessidade, hoje tenho pena das moças que leem exclusivamente esta literatura.

E sobre literatura infantil?

Monteiro Lobato é sozinho uma literatura neste gênero. Suas obras compõem o que há de melhor a este respeito no Brasil. Além disso, temos Marques Rebelo. Ainda não se pode, todavia, confiar em uma literatura infantil no Brasil.

E sobre a poesia?

Eu nunca procurei a poesia. Gostei sempre mais da prosa. Admiro particularmente Augusto Frederico Schmidt.

Qual o maior poeta nacional em sua opinião?

Eu diria Castro Alves porque sei que é o melhor. Mas não tenho apreciação por condoreiros. Se a pergunta se refere aos que gosto, posso falar de Augusto Frederico Schmidt, com o seu Cântico de Adolescente que muito me impressionou há anos atrás.

Quais os melhores livros da literatura universal, na sua opinião?

Humilhados e ofendidos, Crime e castigo, de Dostoievski, Sem olhos em Gaza, do Huxley, Mediterrâneo, de Panait Istrati e as obras de Anatole France em geral. Mas isto é só do que já li.

Depois a própria Clarice se encarrega de nos apresentar a um colega. Augusto Baêna, quarto-anista e presidente do Centro Cândido Figueiredo da Faculdade de Direito.

(Na foto da reportagem, Clarice aparece com saia xadrez bem miudinho, blusa gola role reta de manga comprida, bolsa tipo carteira embaixo do braço e cabelos em quase coque.)


Diretrizes 71, 30 de outubro de 1941


quarta-feira, 19 de maio de 2010

aspecto do cinema português
lançamento hoje 19 de maio as 21 h
organização: andré queiroz
local: centro cultural justiça federal
av. rio branco, 241 centro rio de janeiro

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Contusão



A mancha invade o lugar, púrpura suja.

O resto do corpo está todo pronto,
Cor de pérola.

No vão da rocha
O mar traga obsessivamente
O vazio-oco - o cerco de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
A marca do azar
Escorre muro abaixo.

O coração se fecha,
O mar reflui,
Espelhos encobertos.



Sylvia Plath
Trad. Ney Paiva
Imagem: Stephan Opitz


terça-feira, 11 de maio de 2010

O livro, veneno e antídoto
Discurso de abertura da Feira do Livro de Leipzig, que teve a Romênia como tema principal, em 1998.



No país de onde eu venho, nos anos 80, quem tivesse uma máquina de escrever era tratado como um criminoso - em potencial. Todo ano era obrigado a copiar uma página do texto de um discurso de Ceaucescu sobre os prazeres da vida sob o regime comunista. O possuidor da máquina devia comparecer diante de uma repartição policial com esta página datilografada, que servia para a imediata identificação dos tipos, e com a própria máquina, para obter a permissão para o seu uso, que era válida por um ano. Se você não tivesse essa permissão, que lhe conferia o direito de usar a sua própria máquina de escrever, era passível de sanções penais. Esta é uma das muitas possíveis explicações para a inexistência de uma literatura de samisdats na Romênia.
A ironia, a amarga ironia encerrada nesta situação, consistia em que um tal absurdo só foi possível devido à autoridade conquistada na Europa por um texto altamente explosivo, um livro extremamente subversivo: O Manifesto do Partido Comunista. O ódio diante de todo e qualquer texto foi incentivado pela idolatria de um determinado texto. O texto ao qual estou me referindo começa com a famosa frase: "Há um fantasma que vagueia pela Europa, o fantasma do comunismo..." Ora, graças ao êxito retumbante deste texto, no mundo comunista tudo se tornou sombrio, fantasmagórico - tudo, menos o próprio fantasma. A cultura tornou-se uma quimera, a propriedade também. O materialismo levou ao desaparecimento da matéria; a ideologia levou à repressão das ideias; o culto à liberdade revolucionária levou à supressão de todas as liberdades. Um punhado de livros de Marx e Engels, Lenin e Stalin, pôs finalmente em questão todo o universo do livro. Dizem que uma mulher de verdade, por sua mera atitude, pela sua presença, neutraliza todas as outras. Mas quando se trata de livros, a situação é, na minha opinião, exatamente a oposta. Um livro legítimo, um livro de verdade, abre o caminho de todos os outros livros. Mas se, pelo contrário, um livro assume o objetivo de se tornar o livro único, o único habitante das bibliotecas e das almas, então este é um livro perigoso. Um livro que contradiz a própria essência do livro.
A partir desse ponto de vista, o comunismo pode ser considerado como o motivo de uma guerra gigantesca e invisível, a guerra do livro de livre escolha contra o livro imposto. Dito de outra forma, sob o comunismo, nós todos fomos testemunhas dos esforços desesperados dos livros para readiquirir o seu rosto, para fazer justiça a sua essência. O livro-veneno, o livro envenenador, era obrigado a se apresentar com sinal invertido à sua imagem espelhada, ao livro-salvação, ao livro-salvador.
A nossa presença aqui, nesta renomada Feira do Livro de Leipzig, é justamente a conseqüência desta disputa, é a história da nossa resistência contra o livro ditatorial, através do livro amistoso, libertador, salvador. Combater o livro com o livro, vencer o livro com o livro... Essa foi a nossa salvação, a nossa ressurreição. O livro bom contra o livro mau. O livro conseguido e lido clandestinamente contra o livro imposto, arbitrariamente prescrito, detestado. O comunismo – como, aliás, toda ditadura – é uma espécie de esquizofrenia do livro. A própria nomenclatura tem uma peculiar relação de amor e ódio pra com o livro.
Aquele que mal domina a escrita torna-se chefe – do Partido ou do Estado – e quer aniquilar o intelectual. Antes, porém, ele tenta seduzir os intelectuais, trazê-los para o seu lado, imitá-los. Ele, que quase não sabe ler, quer virar autor, quer ver o seu nome nas lombadas da longuíssima série de volumes de uma Obra Completa.
Os quadros da nomenclatura esforçam-se constantemente em provar a si mesmos e aos outros que podem medir-se com as elites intelectuais. Têm um pavor quase que supersticioso diante da palavra escrita. E, como o livro de propaganda pode exercer influência, fica mais do que claro que também o livro de protesto é eficiente. É por isso que precisa ser introduzida a censura. A censura é, paradoxalmente, um sinal do respeito do ditador diante da palavra e do livro em geral.
A vida cultural sob o domínio das ditaduras caracteriza-se por um significativo encadeamento de atitudes equívocas. Quase ninguém lê os livros obrigatórios. Depois da guerra, os clássicos do marxismo-leninismo foram lidos mais intensamente no Oeste do que no Leste. Pelo contrário, a leitura dos livros proibidos é o prazer arriscado e plenamente degustado de todos, inclusive dos quadros do Partido, que podem se permitir o privilégio de ter acesso a estes livros. Por seu lado, os escritores aperfeiçoam a arte de espreitar a censura – ou de barganhar com ela. Aos censores resta a recôndita satisfação de passar por cima de algumas licenças políticas... e assim, sentem-se no papel de dissidentes.
Também a relação entre proibição e reabilitação caracteriza-se por um dinamismo dificilmente previsível. Autores que ontem eram indefensáveis amanhã serão astros ideológicos – e vice-versa. Mesmo o discurso anti-russo que Ceaucescu pronunciou em 1968 foi incluído em fins da década de 70 – devido à diligência do aparato – na categoria dos textos “não acessíveis” (textos que ficaram protegidos num fundo secreto). Mas, em fins da década de 80, Heidegger tornou-se “acessível”. Ninguém menos do que a Editora Política publicou a tradução, com uma tiragem de perto de 40.000 exemplares!
Falei dos livros-veneno e dos livros-salvação. Do jeito como um país, ou uma região inteira do mundo, podem ser assassinados por um livro, e do jeito como a ressurreição é possível através de outros livros. Às vezes, porém, um mesmo livro foi tanto veneno quanto antídoto, tanto perdição quanto salvação. Um livro bom, lido e emprestado de boa fé para outros, podia se transformar em passagem para o inferno para todos os seus leitores. No fim da década de 50, um comentário manuscrito da Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie dês Geistes), ou uma carta de E. M. Cioran, lida em voz alta a um grupo de amigos, eram elevados à categoria de complô contra a segurança nacional. Os culpados eram presos e condenados rapidamente a longas penas de prisão. A mais inocente das leituras podia, portanto, ter as mais sangrentas conseqüências.
Na prisão, contudo, a salvação vinha também através dos livros. Através daqueles livros que cada prisioneiro contava sussurrando aos seus companheiros de cela, quando eles não estavam sendo interrogados ou executando trabalhos forçados.
Cabe acrescentar que, na prisão, o livro também podia servir de castigo. Pouco antes de sua soltura, concedia-se aos intelectuais o direito à leitura, com a finalidade de sua “reeducação”. Claro que não era um direito a ler qualquer coisa, mas apenas Marx e Lenin. Após longos anos de abstinência, é claro que tudo era devorado com avidez. Para um filósofo, mesmo que fosse um idealista, a oportunidade de compulsar O Capital prometia ser uma benção. Afinal, tratava-se de um especialista.
Às vezes, porém, este tipo de castigo também dava errado. Um teólogo, ao qual foi ministrado semanalmente um volume das obras completas de Lenin, sofreu um colapso nervoso. Preferiu um prolongamento da pena a mais um volume de Lenin. “É uma loucura”, ele me disse mais tarde, depois que foi solto, “usar milhares e milhares de páginas para dizer uma coisa só...”
Agora, as coisas estão se encaminhando para a normalidade. Não sem a ajuda dos livros. O espírito cidadão – como outrora, durante a Revolução Francesa – é um produto colateral da leitura. É verdade: lemos menos do que antigamente. Surgiram novas tentações, a Internet, por exemplo, e desapareceu a volúpia da leitura às escondidas e da escrita ambígua, que poderia enganar a censura. Além disso, o livro ficou caro. Alguns escritores viraram parlamentares, outros, editores, outro, Ministro das Relações Exteriores.
Mas estamos felizes de esquecer por um instante as nossas dignidades passageiras, assim como as dificuldades deste tempo de transição, as crises, os aumentos de preços e os conluios políticos. Estamos felizes de podermos encontrar os nossos colegas de tudo quanto é lugar aqui, em Leipzig, numa cidade que tem uma posição chave no mercado livreiro europeu desde há três séculos. Em maior medida do que em Estrasburgo, Bruxelas ou Maastricht, em Leipzig a unidade europeia não se apresenta apenas como projeto, com processo, como ambição. Aqui, a unidade europeia é um fato consumado. Os livros sempre estão na dianteira dos homens.
Na proximidade dos livros, nós, que viemos do Leste, nunca chegamos à ideia de que temos que “nos integrar”, de que a Europa deveria estar em algum lugar diferente do que nas nossas bibliotecas, no nosso sangue e no nosso espírito. Agora nos está sendo dito que a realidade não seria exatamente assim. Que haveria uma distância entre nós e a Europa, um pequeno deserto, que temos de atravessar. Nós vamos atravessá-lo, provavelmente por sobre uma ponte de livros.
Antes de encerrar, permitam-me chamar a sua atenção para o fato de que nos estandes da Romênia desta notável feira não há apenas livros propriamente ditos. Também estão os livros invisíveis, os livros não escritos de todos aqueles cujo destino foi, de uma ou outra forma, abolido pela história. Todos aqueles que, como não podiam publicar, perderam a coragem de escrever. Todos aqueles que tiveram que cuidar de sua subsistência executando trabalhos modestos e extenuantes e que não tiveram mais tempo nem forças para as atividades criativas, assim como todos aqueles cujos textos foram confiscados e destruídos. Assim como todos os livros não escritos daqueles que morreram nas prisões antes de poderem dar o que lhes era dado dar.
Permitam-me que dedique a participação romena nesta feira – na qual perambulam sombras impressionantes por entre os livros – a todos aqueles destinos que não se cumpriram e aos seus livros ausentes.

Andrei Plesu foi o primeiro ministro da Cultura da Romênia pós-comunista, até 1992, ocupando depois o cargo de ministro do Exterior.

terça-feira, 4 de maio de 2010

PARA A MINHA FILHA/Brodsky
                                                                                               Veza Manuela
Dai-me outra vida e estarei no Caffè Rafaella
a cantar. Ou estarei sentado a uma mesa,
simplesmente. Ou de pé, como um móvel no corredor,
caso essa vida seja menos generosa que a anterior.

Contudo, em parte porque nenhum século daqui em diante
conseguirá passar sem jazz nem cafeína, aguentarei esse desplante,
e pelas minhas rachas e poros, verniz e todo de pó coberto,
observarei, daqui a vinte anos, como a tua flor se terá aberto.

De um modo geral, lembra-te de que estou por ali. Ou melhor, que
um objecto inanimado pode ser o teu pai, sobretudo se
os objectos forem mais velhos do que tu, ou maiores. Não
os percas de vista, pois, sem dúvida, te julgarão.

Seja como for, ama essas coisas, haja ou não encontro.
Além disso, pode ser que ainda te lembres duma silhueta, dum contorno,
ao passo que eu até isso perderei, juntamente com a restante bagagem.
Daí estes versos, algo toscos, na nossa comum linguagem.

Paisagem com Inundação, Cotovia, Lisboa, versão de Carlos Leite