o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

SISTEMA HUMILHATÓRIO E OBRIGATÓRIO DO LIVRO


Dessa vez não vou direto às estatísticas – antes, interessa pensar o ambiente e as práticas a que o escritor está entregue, e de cara sabemos, ele quase sempre vive preso a uma camisa de força, sem que seja levado a sério. Isso tanto que cada escritor deveria mandar seu animal de estimação à conferência setorial do livro leitura literatura, ao invés de comparecer pessoalmente. Causaria mais respeitabilidade e sensibilizaria muito mais os Senhores burocratas. Penso mesmo que tudo ficaria mais fácil para o escritor se a Sociedade Protetora dos Animais o representasse.

Talvez assim se conseguisse perceber as nuances e mesmo as diferenças gritantes entre os livros e suas respectivas leituras. Uma vez que, como os cães, eles não são da mesma raça. E cumprem funções variadas no ambiente de cultura e de saber. Temos, por exemplo, os livros clássicos. Estes obedecem à exigência de um alto padrão de pensamento, cognição e conhecimento. Devem cair na mão das crianças antes que o controle remoto da televisão e do video game comande seus corpos e mentes.

Depois, há os livros modernos, estes para vir sedimentando uma realidade cada vez mais reconhecível, diante da qual se possa ir refletindo e ampliando suas intensidades ao invés de sepultá-las. Vejam que há um jogo de modalidades aqui, mas nunca um exercício aberto de simplificações. A simplificação, executada em larga escala no ambiente da cultura, na escola e mesmo nas faculdades, tornou-se sinônimo de uniformização da mediocridade.

Livros supostamente didáticos, para didáticos e de auto-ajuda funcionam menos do que um regime de linguagem que remeta verdadeiramente a alguma coisa do mundo natural e do pensamento e mais, muito mais como uma escrita de programação, um manual das funções internas da vida que apontam para um mesmo e único sentido. Palavras de ordem. Máquinas e não livros. E ter essas máquinas na escola torna ainda mais eficiente o rígido sistema de controle e da idiotização das massas.

Por isso mesmo que a leitura deixou de fazer parte de uma experiência intelectual para tornar-se lazer e diversão. Uma ocupação menor a que a mídia, o sistema escolar e os governos insistem em empobrecer ainda mais, a ponto de o livro hoje preencher apenas duas funções na socieade: oprimir o leitor e envergonhar o escritor.

Agora estamos mobilizando um amplo aparato psicanalítico a fim de discutir este imenso mal. Uma empreitada que infelizmente não sabemos se resultará plena de consequências. A conferência setorial do livro leitura e literatura reunirá no mês que vem, em Brasília, escritores, livreiros, editores, contadores de história de todo Brasil. Ela consiste em acreditar que, no interior do problema, encontraremos uma lógica salvadora. É possível, é possível. Pena não ter um animal de estimação para enviar no meu lugar. Seria mais garantido. O artista belga Francis Alys mandou um pavão vivo para a Bienal de Veneza. Na impossibilidade de um pavão, será que serve um papagaio? Sempre considerei o papagaio menos passivo do que muitos escritores.

Ney Ferraz Paiva

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Fala Também Tu



Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala —
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?

Sobe. Tateia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais sutil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para embaixo nadar, embaixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.

Paul Celan, in "De Limiar em Limiar"
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno

sábado, 23 de janeiro de 2010



todas as mulheres gostam de tudo

tudo está em nossos corações

tudo em nossos corações

todas as estrelas voam no ar

pra falar tudo

as estrelas estão em nossos corações

...
mesmo fazendo o trabalho todo mal

está em nossos corações

o mal está nos corações

tudo está em nossos corações

pares de meia sumindo


Dante Ferraz completou hoje 05 anos, ele dita
poemas no ouvido da mãe como uma brincadeira, um jogo, um segredo.


sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

da série DIÁRIO DE VIAGEM - BIENAL DE SÃO PAULO 2008


meu deus do brazil moderno, que será isso? uma escada?
um armário? uma figura geométrica? uma metáfora?


bem, deixa pra lá, a maria luiza mendonça me fez lembrar 
que as metárofas nunca são inocentes


o itinerário da arte deve passar em algum momento por uma boa mesa

ney ferraz paiva

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

MORRER PARA NÃO SAIR DO INFERNO


Sylvia é dessas artistas que não conseguem viver muito tempo. Sua escrita não pulsa, não respira, não é representação das coisas belas do mundo – sem chegar a ser um discurso fúnebre, embora mantenha laços estreitos com a morte. Se você a ler sentirá o embaraço que para ela a vida se tornava a cada dia. Algo que proliferava, sem escolhas e controle. A mulher com todas as contas por acertar. Com o pai, a mãe, o marido, e, principalmente, com ela própria. Poetas assim não esperam pela cegueira  Sylvia enfiou a cabeça no forno e aspirou até o torpor final. Uma encruzilhada. Um emparedamento. Sem ter como fazer interrogações à sorte, muito menos ao azar, simplesmente não faltou ao encontro. Colaborou obsessivamente até o instante fatal. Essa mãe que atravessa o Atlântico para abandonar os filhos na outra margem. Nem mesmo eles a poderiam impedir. Desde sempre a morte rondava, espreitava seus passos. E a morte a encurralou numa manhã de domingo dentro de casa. Mas é preciso que se diga e eu mesmo me corrija: a poeta sucumbiu ante o confronto encarniçado com a poesia. Escrevia com fúria, num ato crescente, que se distendeu e revelou, nos dias derradeiros, toda potência do mal. Sylvia chegara lá. No instante em que não era aguardada por ninguém. Eis como o cotidiano funcionava para ela, sem disfarces e reviravoltas surpreendentes. Aos trinta anos de idade tudo seguia de acordo com o que iria acontecer pouco depois. Não teve como escapar à loucura. O medo a empurrou para dentro de um mundo inabitável, composto de aves, abelhas, estações gélidas. Sylvia não quis, não soube negociar com a hiper lucidez que a tudo quer decifrar, mesmo quando nada mais resta sob a redoma. Resolveu não movimentar mais o tradicional mercado da mulher bonita, bem- sucedida e feliz. E a rotina de suas inúmeras farsas. Enfiou a cabeça no forno. Aspirou o gás. A velha cozinha mal-adaptada às necessidades do corpo.

Ney Ferraz Paiva
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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Os três melhores livros de 2009
segundo André Queiroz

a leitura, não qualquer leitura, nem qualquer livro, o livro - relevos da paisagem que se vai contemplando (prefiguração), essa mesma paisagem que será alterada, cortada, penetrada. por vezes, túneis são construídos em meio ao desfiladeiro. noites de trabalho duro. escavações. uma usina imaginária. camadas sobre camadas de pedra. é disso que trata esta listagem nada contábil, competitiva, obrigatória. quem a envia sabe que leitura é engenharia, construção - pensamento.

1) "Para Sempre", Vergílio Ferreira




Trata-se do homem que regressa ao lugar da infância quando já da sua morte próxima. Vergílio Ferreira faz intercalar os tempos narrativos de forma belíssima - como se a caça do tempo perdido nos tomasse de assalto no tanto que do tempo que nos retorna. Forma também de investigar a finitude, a solidão ontológica inscrita no homem. Eduardo Lourenço diz de forma pontual do romance de Vergílio Ferreira: quando o romance começa tudo já se encerrou, todos estão já mortos...

2) "Os Afogados e os sobreviventes", Primo Levi


Outro dos livros do memorialismo de Primo Levi acerca da experiência do Lager (os campos de concentração nazista). Primo Levi - para além de apenas narrar o que se deu, o que se experienciou - busca refletir sobre a própria experiência do contar, o valor do testemunho. E será ele quem dirá que, no caso do Lager, aquele que testemunha o faz porque não chegou ao fundo do acontecimento, que não comporta a palavra. Questão então será: o testemunho é necessariamente dos que não viveram ao fundo o acontecimento, ou noutros termos, o testemunho é d'algum modo e sempre uma impostura por trazer consigo o feito que não lhe é delegado pelos que não voltaram para dizer de si o que seria de se dizer.

3) Trilogia autobiográfica de Elias Canetti - 1) A Língua absolvida; 2) Uma Luz em meu ouvido; 3) O Jogo dos olhos



Belíssimo depoimento de Elias Canetti desde a infância remota aos anos de sua maturidade. E imensamente bela é a descrição dos afetos os mais diversos que se lhe servem à construção daquele que ele é. A morte do pai ainda à primeira infância. Canetti dirá que o desaparecimento do pai lhe custou a imortalidade na forma daquele assalto - a forma abrupta do colapso. O corpo do pai morto pela manhã, ao escritório. E então será o horror o que se experimenta. Toda forma, criança que se era, se brinca como quem distrai em si a perda. E será a mãe à janela

quem lhe dirá as palavras que lhe custarão os anos de sua vida à memória: "Elias, tu aí a brincar, a brincar, a brincar, e teu pai morto, e tu a brincar, a brincar". Para além desta narrativa, toda as andanças da família, os países cruzados: Bulgária, Inglaterra, Áustria. As relações literárias: Musil, Hermann Broch, Veza, entre outros.



André Queiroz é filósofo, escritor, ensaísta e professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de "O sonho de nunca”, “Outros nomes, sopro”, “Em direção a Ingmar Bergaman” e do inédito “Patchwork”.
Com o livro “O Sonho de nunca”, ganhou o prêmio de melhor romance do ano da Academia Paraense de Letras. O livro “Outros nomes, sopro” foi indicado pela crítica literária no Jornal “O Rascunho”, de Curitiba, como um dos melhores livros de ficção publicados no Brasil no período de 2000 a 2005. Licenciado e mestre em Filosofia (Uerj e Puc/Rio, respectivamente), é doutor em Psicologia Clínica pela Puc/SP e professor adjunto da UFF (Departamento de Estudos Culturais e Mídia), atuando no Instituto de Artes e Comunicação Social e no Programa de Pós-graduação em Comunicação.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

chove sobre a cidade neste primeiro dia do ano] será um primeiro dia do ano em que nos perdemos num silêncio a que exploramos sem saber, como no dizer de Elias Canetti para quem os exploradores jamais regressam dos mapas obscuros em que adentram. A chuva a cidade o silêncio perfazem uma cartografia abismal de um livro, de um poema que já nem sei mais. Este ano será tempo de poesia? De galerias abertas e bibliotecas que não fecham nos fins de semana, nem feriados? Para que aqueles que não leem, ainda que saibam, voltem a ler? Voltem às livrarias, senão para comprar, pelo menos para "namorar" os últimos e recém chegados livros nas estantes? Ah, aquele cheiro de novo... Não queria perguntar, não queria, acreditem. Sei que ainda há festa e alegria no coração de todos. Mesmo que a chuva nos feche numa cidade onde nos equilibramos sobre o vazio do mundo. Que ano será este? Que cidade? Seguiremos solitários e erráticos, separados, excluídos e amesquinhados em sonhos que se vende, mas que não se cumprem? Se o poder e os políticos têm seus mundos paralelos – cessarão de empobrecer, controlar e aviltar o único que temos? O pouco que nos resta? A cidade que escolhemos para viver e criar nossos filhos? Pela retórica ficcional declinada pelos Espectros da Morte em suas mensagens de fim de ano, o abismo nos espera. À espera da queda, desse outro desabamento (que não aquele agorinha noticiado de Angra dos Reis e que vai virando rotina), o primeiro dia do ano nos empareda sob a chuva e suas imagens monótonas, suas elipses desmotivadoras, a implacável indolência. Mas não fiquemos à espera. É preciso que, sob esta chuva, espremidos em algum canto da casa, em algum lugar da cidade, se possa de repente tocar o inalcançável. Não é possível que uma cidade inteira aceite terminar-iniciar o ano como a abobalhada plateia frente ao palco a regurgitar a mediocridade, a despeito de estar feliz. Que cidade é essa? O que quer terminar? O que começará? Pensa celebrar o novo e está atada indelevelmente ao ruim, aos desarranjos todos. Celebra e protagoniza, ritualmente, os contornos de sua própria indigência moral, social e intelectual. À espera que as coisas desabem. Os espectros anunciam, inventam uma história fatal, e todos a encenam na realidade. Não celebram o novo, mais desaparecimentos e ausências. Perdas. Recuos. O jeitinho. O improviso. O precário. O caos. A cidade às escuras. Buracos. Lixo. Desemprego. Postos médicos sem médicos; doentes sem remédios e leitos. Ensino público cada vez pior. Que não reprova para ficar "bem" na estatística e garantir mais recurso. Ensino que vende a qualquer preço qualquer diploma. “Pagou-passou”. Só o pior não passa nesse passe de mágica a que nos habituamos. O pior, o pior, o pior. O pior que só pode melhorar se quisermos. Já que os políticos não querem. Se nem mais sabem que ser político, fazer política é antes de mais nada cuidar da cidade. Cuidar do outro que mais necessita para que o outro se torne todos. A polis, a cidade, aniquilada, celebrando o show da miséria. Que vota em ladrões de túmulos, uma vez que a mão do político mata sonhos, esperanças e desejos há demasiados anos, não apenas no que passou ou neste que inicia – inicia? Terá terminado algum ciclo? Mudamos nós, senão o destino, ao menos a rotina? Querem fazer acreditar que o ano inicia. Sim, o calendário se alterou, mas os males e as dores prosseguem, se expandem pela cidade. Agora mesmo há um campinho de futebol na 1306 sul, vulgo “Portelinha”, em que meninos enlameados “começam” a explorar os abismos da infância em que sempre perdem. Isso ou a casa popular que o avilta. Ou o ônibus que não passa. O esgoto que escorre solto em meio à rua. E ontem, indagorinha era o show da virada na praia da Graciosa. Mas que graça tem isso? se nada se fará para mudar a cidade em que a miséria se expande – “cresce” a cidade, não é? E nela cada vez mais se oculta o sujeito, “o obscuro irmão gêmeo de um homem”, nas palavras de Faulkner. Cresce a cidade e a indiferença solta seus fogos de artifício!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


[Certas coisas você deve ser sempre incapaz de aguentar. Certas coisas você nunca deve parar de se negar a aguentar. Injustiça e afronta e desonra e vergonha. Não importa se você é muito jovem ou se está muito velho. Nem por prestígio nem por dinheiro: nem por seu retrato no jornal nem pela conta no banco. Simplesmente se negue a aguentá-las. William Faulkner]

Ney Ferraz Paiva
Palmas 01.01.2010