o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 19 de dezembro de 2009

Ó ASPÉRRIMO DEZEMBRO!

(duas ou três coisas que posso falar sobre a Bolsa Maximiano só espero que alguém tenha coragem de escutar)


Escrivaninha de Machado de Assis


Não pretendo cumprir com este texto um parecer, muito menos a função ou repressora ou tirana daquele que afirma que leu e não gostou. Porque li com interesse e atenção (eu me reservo à surpresa). Faço questão de deixar isso claro. E enquanto lia as obras a mim entregues para avaliação neste certame de 2009 da Bolsa de Publicações Dr. Maximiano da Mata Teixeira, categoria "Obras de Ficção", passava pela minha cabeça e pelos meus ouvidos Adília Lopes, assim: “Não gosto tanto/ de livros/ como Mallarmé/ parece que gostava/ eu não sou um livro/ e quando me dizem/ gosto muito dos seus livros/ gostava de poder dizer/ como o poeta Cesariny/ olha/ eu gostava/ é que tu gostasses de mim...” ou: “Um desgosto de amor/ atirou-me para um/ curso de dactilografia/ consolo-me/ a escrever automaticamente/ o pior são os tempos livres” e ainda: “A vida/ é livro/ e o livro/ não é livre/ Choro/ chove/ mas isto é Verlaine/ Ou:/ um dia/ tão bonito/ e eu/ não fornico”. Eram essas guinadas que eu esperava encontrar, ler, ouvir em alguma página: a liberdade de criar o que se quer, um livro a seu jeito, quase outra coisa, esquisito, misturado ao disfarce da própria coisa que se inventa indiferente a quem cria, ao lugar, ao tempo – sua esquivança e deriva. Um livro que não tivesse a tarefa de dizer as coisas. Defender uma verdade. Comprar-vender. Um livro que desaparecesse nas suas fendas, nos trajetos tortuosos da imaginação. Ir à praia, ir à marte, não ir, rir disso tudo. Que escrever, é bom que se diga, não é o mesmo que ter pronta uma escrita. Ainda que todos almejem ser escritor. Ainda que haja quem escreva para vencer um certame e se acredite apesar de tudo em vitórias literárias. Ainda que se publique aos montes por aí o menor, o ruim, o impublicável. Mas não é disso que se trata quando se trata de escrever. Aí nem o limite da escrita pode delimitar o que se tem a fazer. Passa-se para o outro lado, o aberto. Para “fazer ouvir a linguagem”, como diria Michel Foucault. Mas preciso dizer que quase nada desse esgarçamento, da distensão das vozes poéticas e narrativas reverberaram nos textos que me chegaram às mãos – antes o estético se me escapou. Claro, houve o fazer da forma, da rima, de uma habilidade ou outra. Por vezes o personagem era tão sedentário que a narração mais que paralisada dava-se paralítica. Máquinas de escrever e ouvir a escrita que se emperram. E eu me voltava a meus autores em fúria, de tanto que os quero ler pelas noites e dias, sempre. A voz nômade de Vergílio Ferreira. “Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordado-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olha para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome.” A essa voz que se propaga na estepe e no deserto dei ouvidos aos tons estáveis, idênticos e constantes, sem surpresa e espanto da fala que menos que documenta desloca o leitor de uma mesma direção, do ambiente fechado na mediocridade dos dias que correm. E do raro e difícil ofício que é a escrita sei, penso que sei, quero acreditar que seja possível que eu saiba, por insistir, perseverar, obstinar-me em ser leitor e em escrever, que a questão primeira da escrita não é nem será o publicar, o arquivar, o tornar memória, mas o ir inventando com a escrita um território, abrir em seus nervos uma marca. E a esse lugar não se pode premiar antes que ele exista, nem eu, nem o Estado, nem os amigos, nem a família, nem o jornal, nem a academia. Ter na escrita o seu lugar, que ele exista e que por ele se transite, se jogue e se aventure. Palavra por palavra, os lugares a mim apresentados neste certame ficaram inconclusos, incertos, indefinidos. No sentido de que infelizmente não foram inventados. Lugar da beleza ou lugar bárbaro, transitável ou de difícil acesso. Tecido em grosso tear. Continuaremos a procurá-lo. Todos. Eu. Vocês, outros. Sabemos: alguém está a escrevê-lo, a inventá-lo. Onde? Quando? Refazem-se os mapas da arte com energia, mas em silêncio.


Ney Ferraz Paiva

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