o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

E O FOGO LEVOU

Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe. (Deleuze)



A obra de Hélio Oiticica pertence agora ao fogo e as cinzas. E não há nenhuma metáfora nem trocadilho possíveis depois do incêndio que nos arrancou de vez uma obra que jamais nos pertenceu. Hélio não coincidia em nada com a cena artística que irrevogavelmente domina o Rio de Janeiro e o Brasil inteiro. Tudo está pior. Corroído pela mediocridade obvia e ululante imposta pelas “políticas culturais”. Pela razão indolente dos “funcionários da cultura”, que não agenciam e não mais desejam, que nada têm a pensar de novo. A obra de Hélio era demais pra eles. Ele queria os fluxos, as ruas, as intensidades da vida. Ultrapassava os espaços pretensamente chiques e esnobes que cada vez mais dispensam as manifestações afetivas da arte pelo fervor do lucro e do marketing. Hélio odiava coisas que nos são próprias, que circulam por aí como infalíveis, tipo: “política cultural”, “plano nacional de (saúde da) cultura”, “conferência”, “seminário”, “fórum” etc. Hélio se colocava a postos, ativo, em combate, do outro lado, sacava seu revólver. Girava o mundo em torno de si. E, justamente por isso, afastava-se, lançava-se aos devires para fora de si. Pertencia realmente ao seu tempo, ao tempo nômade da arte, das evasões, dos riscos. Sem que tudo em sua vida fosse uma determinação ou uma origem. Teve o lance, por exemplo, da Tropicália. Uma tentativa possível de ziguezaguear a realidade e o território. Das velhas categorias que arte não soube ainda descartar, nem nós. Desde então tudo está pior. A arte, o artista, o público. A mente, o corpo. A vida. Ficamos agora sem este acervo positivo e múltiplo, móbile e móvel. Porque ainda somos uma cultura sedentária. Apequenada ainda mais que finalmente o fogo nos atingiu a alma. Tornamo-nos o que se é. Sublimados por mais uma novela das oito. Glorificados por uma olimpíada em que não poderá concorrer a angústia de uns poucos. O dogma segregativo da brasilidade não nos redimirá. E a esperança, nossa antiga vilã, fará o seu trabalho.


NEY FERRAZ PAIVA

Nenhum comentário:

Postar um comentário