o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

sábado, 11 de abril de 2009

Um livro: encontros que não se pode evitar




Falemos apenas disto, eminentes sábios, mesmo que nos apoquente. Pior é o silêncio; as verdades sufocadas tornam-se peçonhentas.
Assim falou Zaratustra, Nietzsche


Como se organiza um livro? Um livro como uma obra de Beuys; um livro como uma história em quadrinhos; um livro como uma novela das oito... Um livro que nem fosse livro. Um livro nascido outra coisa. Brinquedo, jogo, coro de vozes. “Barthes/Blanchot – Um encontro possível” (7Letras) é um livro destes, um não-livro, uma vez que põe a falar dois grandes pensadores sem que isto se torne um enfadonho tratado de filosofia. Um livro-encontro que resulta de um Colóquio na Maison de France no centro do Rio de Janeiro. Muito da naturalidade desse conluio se deve a um dos organizadores do livro, o escritor e professor da UFF, André Queiroz; quem já leu um de seus textos de ficção ou mesmo um ensaio sabe que, da sua escrita, espreita-nos tantas falas essenciais como as que vão, neste livro, capítulo por capítulo, engendrando, tornando possível entre Barthes & Blanchot, não o olhar frontal dos tribunais, mas o toque sutil e erótico dos que seguem pelos desvãos, margens, desvios. O homem pensa, Deus ri, diz um ditado judeu. Em todo caso, nossos dois protagonistas pensaram, pelo menos como ficção, um mundo mais intenso e diferente que o de Deus e não menos cômico. Barthes colocou sob suspeita toda criação que não leva em conta a fragilidade do corpo, sua emoção e seu desespero; Blanchot deixou toda a arte em suspenso, ela é uma criação que ainda não acabou, fora dela nada acontece ao homem.

Pensar é uma ação que nos desloca de onde estamos; é uma dor; um exercício de crise; “pensar é estar doente dos olhos” (Alberto Caeiro), e por isso não temos nem podemos nos limitar a existir. Foi contra todas as tentativas de silêncio ou barulho ou rumores de verdades que excluem a vida, que nossos protagonistas se deteram, se recolheram, e se tornaram íntimos do mundo, e agora outros se põem a falar, aqui, em torno deles, a partir deles, numa polifonia que não ensurdece e não resulta em cartase, mas outra vez pensamento, escrita infinita, que nunca acaba porque dá conta das nossas dores, é autêntica ferida. Pode-se pensar a cidade a partir do espaço literário. Pode-se pensar a violência dos dias que correm a partir do discurso amoroso. Entre Barthes/Blanchot não há apenas teoria e literatura. Existe uma intimidade de escrita que desconstrói estruturas, refaz mapas, reorganiza territórios, e se constitui mais que uma visada fortuita – diálogo tenso, interseções incessantes e corrosivas pelo que têm de força oscilante e desestabilizadora.

Um livro se organiza para ser lido? Mas como se lê um livro? Um livro que não tem por tarefa dizer as coisas. Um livro que desaparece nas falas-intervenções de Leyla Perrone-Moisés, Peter Pál Perbart, Jorge Vasconcellos, Luís Alberto Brandão, Christophe Bident, entre outros. Um encontro-multidão a que não podem faltar ainda Sartre, Melville, Kafka, Artaud, Brecht, Deleuze, Foucault, Camus, Derrida. Trajetos imaginários que não se assemelham de todo, e cada vez mais se distinguem e se distanciam até um declínio-esgotamento que se dará então, como todas as vias e todos os nomes, que não é de vias e de nomes que se trata, nem de identidades, porções, partidos, mas de contínua peleja. E um dia talvez se possa encerrar todo e qualquer dis-curso sobre história, política, filosofia e os ambientes de cultura com a fábula do homem o dia inteiro na biblioteca; ele pega mais livro do que qualquer um; e nem sabe ler; diz que gosta de pensar nos livros, mas sem os ler; tem sempre um debaixo do braço... Um livro que nos leia.

Ney Ferraz Paiva
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Maurice Blanchot em um belo ensaio sobre Antonin Artaud, em seu O livro por vir, afirma algo de enigmático acerca daquilo de que se trata quando se trata de pensar: a impossibilidade mesma de. Afirmação esta de Blanchot que parece truncada, fechada em si própria como um jogo em curvas nas que o corpo o que pode de si num à frente, o seu lançar-se, é já este o voltear sobre si, o passo atrás, o vergar das juntas em desequilíbrio. Outra vez será Blanchot a dizer: da impossibilidade de pensar que é o pensamento. É bom que se esclareça que pensar não é o mesmo que ‘ter pensamentos’, ou que destes se ocupar a todo tempo e instante. Talvez aqui estivéssemos justo no que o paralisasse, dizendo do que pensar este ‘ter pensamentos’ como aquilo que o deixasse de tal forma assentado a um estado de coisas, de tal modo, nestas enredado, nas coisas que se lhe dessem ao trabalhar de seu trabalho que o que ele promovesse fosse mera liturgia pela qual e na qual aquelas coisas, ou a modalidade delas no arranjo estratificado que vem a ser o real dominante, acabassem por se insurgir contra ele depositando-o no inteiro de uma função outra – a da narrativa (um seu engendramento)...

Ecerto de "Como Fazer Funcionar um Corpo sem Rastro", André Queiroz

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