o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

terça-feira, 21 de abril de 2009

CORAÇÕES SELVAGENS


Por Ney Ferraz Paiva

"o mal, para mim, não foi uma entidade literária, ou uma sombra apenas entrevista no horizonte humano. Soube com pungente intensidade o que ele significa em nossas vidas, e muitas vezes toquei seu corpo com meus dedos queimados... já que a dura contingência humana me fez tão propício ao seu fascínio".
Lúcio Cardoso, Diário Completo

"(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.”
Clarice, A Paixão Segundo G. H.


Você escreve carta não pelo prazer do grande texto, mas para mobilizar alguém, acreditava Ana Cristina César. Essa mobilização do outro bem que Clarice Lispector tentou nas cartas enviadas a Lúcio Cardoso – ela que quando escrevia carta utilizava, graças a seu olhar multiplicador de imagens, “um anzol compridíssimo, cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta”. Resposta sempre avara. Lúcio assumira uma legenda de mistérios e incógnitas para manter-se distante ou talvez perto, muito perto com seu coração selvagem. Estranha proximidade contra a qual Clarice freqüentemente protestava: “Lúcio, como vai você? Responda...”.
São vinte as cartas conhecidas de Clarice endereçadas a Lúcio, num período que vai de 1941 a 1947, de diferentes cidades: Belo Horizonte, Belém, Nápoles, Rio de Janeiro. Quase todas cartas de amor, de um amor que ficou suspenso, mudo, em face às intermitentes palavras de Clarice, desafiadoras, latentes ou, efeito contrário, a bloquear qualquer possibilidade de relacionamento amoroso, quando todas as tentativas resultaram vãs.
Clarice e Lúcio se conheceram em 1940, no Rio de Janeiro, na sede da Agência Nacional, onde ela trabalhava como redatora. Tinha 19 anos, ele 28. E esse não é um fato externo que importa apenas à biografia e à lenda dos dois escritores. Para eles o tempo começa a contar-se por esse encontro. Por vezes a realidade dissolve-se em ambigüidades, ironias, nuanças devastadoras, de tal forma que a história pessoal passa a importar pelos oblíquos e indiretos jogos de motivações, ainda que incompletos, como marca do estilo e da vida do artista. Uma vida “não relatável” e “não vivível”, diria Clarice.
Os impedimentos de mobilizar/pescar o receptor – de quem apesar de tudo se pensa reconhecer a “silhueta” –, pressupondo-se (talvez falsamente) que ele deve estar algures no espaço físico, são recorrentes na escrita, e reúnem assim os signos que permitiram à Clarice e a Lúcio usar aquela espécie de crueldade que algumas vezes é interpretada como desejo de representar a verdade. Porém toda verdade é indiscernível.
A primeira carta, datada de Belo Horizonte, junho de 1941, narra uma paixão de perder-se e também de perder, retiradas as possibilidades de se afirmar a presença do outro: “quanto ao teu fantasma, procuro-o intimamente pela cidade”. O pulso do amor batia forte, mas Lúcio insistia em não pegá-lo na travessia – grande dissipador. Para ele, nada mais sórdido do que a proximidade. E o silêncio, a imediata recusa.
Existe sempre algo mais como parte do enredo da história e da vida de todos nós. Esse “mais” é o que está sempre vindo, porém Clarice nem sempre soube sentir-se livre em meio a essa disposição dialética. Em 1943 casa-se com Maury Gurgel Valente, diplomata, que não havia entrado na história, nem nas cartas de Clarice que, endereçadas a Lúcio, ainda assim se avolumavam. O interesse afetivo e intelectual pelo amigo não se desfez, surpreendentemente se manteve intenso. Ela então lhe mostra um manuscrito que considerava um esboço despretensioso; ele o lê e percebe um romance pronto; escolhem juntos o título joyceano “Perto do Coração Selvagem”.
O livro seria publicado no início de 1944, dez dias depois, Clarice se transfere com o marido para Belém, onde residira por seis meses. O mundo imerso na irrealidade e no desnorteamento de uma guerra imprevisível, enquanto os combates pessoais prosseguem. A necessária deriva. “Belém, 6 de fevereiro de 1944. Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei procurar trabalhar e começo de novo a me torturar, até que resolvo a não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas, e me volto também contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Caiu-me plenamente nas mãos “Madame Bovary”, que reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que tive e as que não tive. – Eu nunca tive propriamente o que se chama “ambiente”, mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem “mutuca”, (isso é besouro, mas por que não chamar tudo mutuca logo de uma vez?)".
A presença de Clarice em Belém é mais do que uma vaga referência emocional. Foi ali que toda a repercussão de sua estréia revolucionária vai encontrá-la, entre as paredes de um quarto no Central Hotel, na Presidente Vargas.
É o caso do artigo de Lúcio, no Diário Carioca: “Poucas vezes temos visto um tão exacerbado individualismo, uma tão lenta e obstinada sondagem do seu próprio eu, como faz a autora de ‘Perto do Coração Selvagem’. Deste mundo essencialmente feminino, cheio de imagens, de sons, de claridades azuis, brancas e esverdeadas, de folhas novas e manhã ainda cheirando a mato, Clarice Lispector consegue nos transmitir uma imagem poderosa e viva: não há dúvida de que estamos diante de uma singular personalidade, que sabe captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da sua fusão, uma vida perfeita. Nesta estranha narrativa, onde o romance se esfuma para converter muitas vezes numa rica cavalgada de sensações, a poesia brota como uma fonte nova e pura”.
O artigo valeu como se Lúcio tivesse respondido a sua primeira carta, mas ela sabia não se tratar de uma resposta, e sim da voz selvagem dos demônios, entre exílios e expulsões, silenciando o coração de Lúcio. “Imagine que eu estava junto à mesa, pronta para escrever para você e contar coisas, quando bateram à porta e trouxeram-me, vindo do Rio, o que você publicou no Diário Carioca... Fiquei assustada com o que você diz – que é possível que o meu livro seja o mais importante. Tenho vontade de rasgá-lo e ficar livre de novo (é horrível a gente estar completa). Sei que não é isso que você quis dizer. Quanto ao meu meio sucesso me perturbar, às vezes, ele me deixa saciada e cansada. Ás vezes, embora possa parecer falso, me desanima, não sei porquê. Parece que eu esperava um começo mais duro e, tenho a impressão, seria mais puro. Enfim, tudo isso é tolice minha”.
Mestre de bruxarias incrustadas na carne e na palavra, Lúcio lhe faria amar qualquer coisa viva, talvez mesmo uma barata, desde que em silêncio. O inexprimível nada a oscilar: “Alô Lúcio, isto é apenas para perguntar como você vai. O quê? Ah, estou bem, obrigada. O quê? Ah, sim, você talvez tenha razão. Que você tem me escrito muito? Sim, recebo sempre suas cartas; até ia lhe dizer que não me escrevesse tanto porque você pode se cansar. O quê? Que você faz isso por amizade? É claro, pois foi o que pensei. Que você me mandou seus livros? realmente, todos os dias recebo um. Se eu li seu poema ‘Miradouro’? sim, li e gostei tanto, tanto. O quê? desculpe, não estou mais ouvindo, a distância é grande, minha ‘aura’ está acabando e o esforço desta comunicação é tão sobrehumano que mal tenho força de assinar”.
Lúcio fazia um mínimo de gestos, reduzia tudo a quase nada, não fossem as palavras de Clarice a narrar uma paixão em que o caso amoroso não era do outro mais (+) o outro, mas do outro menos (-) o outro. A própria reversão das iniciais do nome de Clarice Lispector (CL) e de Lúcio Cardoso (LC) talvez insinuasse a impossibilidade de se tocar sequer as extremidades “queimadas” dos dedos, numa despedida. Não realizada na pessoa amada a alquimia única e vibrante que o tempo ousa ser. Ainda que, de um jeito ou de outro, nem a beleza, nem o amor escapem a ele. Paixão de perder e não de exceder. Excesso também é vazio, sabeis.
Clarice seguiu acompanhando o marido por diversos postos diplomáticos. De Nápoles, a 26 de março de 1945, estica ou condensa outra carta/isca: “Lúcio, me escreva e conte coisas. Ou então não escreva, que posso eu fazer? Um dia desses fui ver a lava do Vesúvio. Tenho um pedaço feio de lava para você. Depois de um ano ainda estava quente; é uma extensão enorme, negra, de vinte a trinta metros de altura; a gente anda sobre casas, igrejas, farmácias soterradas. A erupção foi em março de 1944 e quando chove sai fumaça ainda.”
Mesmo sem querer – avessa que era a dar pistas sobre seu texto –, Clarice faz aqui uma das mais belas descrições de sua obra. Passados mais de 30 anos de sua morte, ocorrida a 9 de dezembro de 1977, essa escritura permanece “quente” e “é uma extensão enorme” de um território engendrado por ausências e vazios, que não se captura, quando muito se rivaliza pelos subterrâneos inventivos da palavra, atravessados por poucos: um Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Osman Lins, Raduan Nassar. Quem mais? Tanto que, nas tardes de chuvas intensas como as que caem sobre Belém, “sai fumaça ainda” de suas palavras.

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