o verão envelhece, mãe impiedosa (Sylvia Plath)

quinta-feira, 23 de abril de 2009


Dona Clarice

Por Benedito Nunes


Conheci Clarice Lispector, antes de conhecer a escritora e a pessoa, por um outro nome: “Dona Clarice”, que é como a chamava, sempre que a ela se referia, o Professor Francisco Paulo Mendes, seu amigo de primeira viagem. Encontraram-se em Belém, no início da década de 40, acho que em 44, ela, com o marido Amaury Gurgel Valente, então a serviço do Itamarati, hóspedes do Central Hotel. Viam-se frequentemente no Café Central, um verdadeiro Café, que dava para a rua, e onde, muito mais tarde, juntei-me ao grupo que ali se reunia, liderado pelo referido professor. Em 44 ainda tinha 14 anos e Clarice Lispector, que acabara de publicar Perto do coração selvagem, começara a escrever O lustre, a sair em 1948. Foi somente nesse ano que comecei a ouvir o “Dona Clarice”, recordação da romancista, bela mulher, nos fins de tarde ou à noite resplandecendo na terrasse do Café Central, ao lado dos amigos de Francisco Paulo Mendes, que depois foram meus, Ruy Barata e Cléo Bernardo, ambos já falecidos.
O professor revelou-lhe Sartre, me diria, mais tarde, “Dona Clarice”. E a ele dirigiria o súplice recado de Um sopro de vida: “Cadê o desaparecido Francisco Paulo Mendes? Morreu? Me abandonou, achou que eu era muito importante.” Antes da Clarice real e da Clarice ficcionista, conheci a mítica, dona estelar de memorável brilho no passado do grupo. Comecei a ler a ficcionista pelos contos de Laços de família. Mas foi em 64, com A paixão segundo G. H., que os laços da sedução literária e filosófica à ela me amarraram. Dois anos depois escreveria sobre essa obra uma série de cinco artigos, publicados no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, e que incluiria, em 70, em O dorso do tigre, sob o título geral de O mundo imaginário de Clarice Lispector, abreviado para O mundo de Clarice Lispector, na oletânea de 66 que o precedeu, editada em Manaus, por iniciativa de Athur Cézar Ferreira Reis. O fervor da sedução levou-me a aceitar convite de Nelly Novaes Coelho para participar da coleção Escritores de hoje, de sua editora Quíron, com volume dedicado à escritora. Então, para escrever Leitura de Clarice Lispector (1973), voltei de Laços de família a Perto do coração selvagem, percorri O lustre, A cidade sitiada, A maçã no escuro, A legião estrangeira e o último, até aquele momento, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. (Mais tarde reveria e passaria a limpo esse livro, que se tornou O drama da linguagem (1995) acrescentando-lhe capítulos sobre Água viva, A hora da estrela e Um sopro de vida).
“Ele vai me considerar uma existencialista?”, teria ela, receosa e desgostosa, perguntado sobre as minhas intenções à Nelly, quando esta lhe anunciou o Leitura. A preocupação da escritora era justificável. Nos cinco artigos da série havia exagerado a dose da náusea sartriana, corrigida na publicação seguinte à custa da acentuação sobre a tendência mística em G. H. Tinha conhecido antes a Clarice real numa visita à casa dela, no Rio pelas mãos de Aloisio Magalhães, quase uma visita de cerimônia. Depois de saída a Leitura, encontrei-a novamente, desta vez no casamento de sua amiga Eliane Zagury. Não me lembro de termos conversado nessa ocasião. A primeira conversa deu-se em Brasília, até onde eu fora, nos fins do período Geisel, para participar do Congresso de Crítica Literária, ali realizado em 1974. Era tarde da noite, já tinha me deitado, quando ela, que tinha vindo a Brasília por outro motivo, hospedada no mesmo hotel, telefonou para o meu quarto. Estava angustiada, com problemas de consciência. Deveria entrevistar o Ministro Ney Braga? Repugnava-lhe aproximar-se dessa gente do governo militar. Mas como poderia agir diferente, se era jornalista e precisava ganhar a vida? Tinha sido recentemente demitida do Jornal do Brasil e preparava o livro de entrevistas, De corpo inteiro.
Ainda não se completara um ano depois disso, quando ela escreveu para Francisco Paulo Mendes, àquela época ainda em atividade como professor de Língua Portuguesa, pedindo ao amigo que conseguisse da Universidade Federal do Pará a ventura de poder voltar a Belém. Pagaria a viagem e a estadia com uma conferência; dispunha-se, também a conversar com os estudantes do curso de Letras. Clóvis Malcher, o reitor de então, mandou-lhe passagem e hospedou-a. Ouvimo-la na leitura hesitante de seu conhecido e belo texto sobre o sentido vanguardeiro da sondagem do real pelo aprofundado uso da língua portuguesa, já lido em Austin. (Literatura de vanguarda no Brasil, 63) e em muitos outros centros universitários. Esteve no campus, enfrentou grandes e buliçosas platéias.
Veio aqui em casa para um jantarzinho, convidados os antigos amigos dela e meus. Confessou que estava se sentindo bem entre nós. O retorno a Belém teria sido o seu tempo reencontrado. Acho que a partir de então surgiu entre nós uma afetuosa relação, extensiva à minha mulher. Depois que regressou, telefonava frequentemente e, sem falta, no período natalino, uma ou outra vez angustiada com o que fazer e com o que pensar, porque não raro pendia de um “se”, de uma eventual e dilacerante interrogação.
Em 77 passava por São Paulo, voltando de Campinas (lecionava na UNICAMP durante o segundo semestre), quando interei-me de sua morte. Não haveria telefonema no Natal desse ano.


Dois ensaios e duas lembranças, Belém: SECULT-UNAMA, 2000.

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